Discurso durante a 124ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO URGENTE CONTRA O USO ABUSIVO DE MEDIDAS PROVISORIAS.

Autor
Gilberto Miranda (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AM)
Nome completo: Gilberto Miranda Batista
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
MEDIDA PROVISORIA (MPV).:
  • NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO URGENTE CONTRA O USO ABUSIVO DE MEDIDAS PROVISORIAS.
Publicação
Publicação no DCN2 de 17/08/1995 - Página 14020
Assunto
Outros > MEDIDA PROVISORIA (MPV).
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, EXCESSO, EXECUTIVO, EDIÇÃO, REEDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), NECESSIDADE, LEGISLATIVO, REDUÇÃO, UTILIZAÇÃO, PRESERVAÇÃO, COMPETENCIA LEGISLATIVA, CONGRESSO NACIONAL.

              O SR. GILBERTO MIRANDA (PMDB-AM.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, desde Aristóteles e Políbio, a reflexão política ocidental confere um lugar de destaque à questão do "governo misto". Esses dois pensadores acreditavam que o regime baseado num princípio único -- fosse ele monárquico, aristocrático ou democrático -- seria mais frágil e menos adaptável às mudanças histórico-sociais do que aquele surgido da combinação desses princípios, que se controlariam e moderariam mutuamente.

              No século dezoito de nossa era, a finesse de Montesquieu e o pragmatismo institucional dos federalistas americanos atualizaram e enriqueceram essa velha noção. Para o autor d' O Espírito das Leis, o gênio da constituição britânica, que, aliás, nunca foi escrita! consistia no sutil equilíbrio entre a Coroa, a Câmara dos Lordes e os Comuns.

              Transplantando esse insight para o jovem e generoso solo da América recém-emancipada, os artífices da Carta de 1787 combinaram os princípios do "governo de um" (personificado no Presidente), do "governo de poucos" (transfigurado no Senado) e do "governo de muitos" (encarnado na Câmara de Representantes), acrescentaram-lhes um mecanismo de controle de constitucionalidade (confiado à Suprema Corte) e, assim, legaram aos seus compatriotas da posteridade e ao mundo civilizado em geral uma obra jurídico-política admirável por sua concisão, durabilidade e capacidade de ajustamento à dinâmica econômica, social e cultural própria da grandeza americana. Um edifício assentado no alicerce, a um tempo sólido e flexível, dos checks and balances. 

              Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores:

              Se fizermos, agora, um rápido corte para focalizar a cena brasileira contemporânea, veremos até que ponto os mais sublimes princípios constitucionalistas liberais podem ser desvirtuados pela sufocante herança do patrimonialismo pombalino, prolongada pelo cartorialismo corporativo da era Vargas e aperfeiçoada em duas décadas de regime militar. O vírus intervencionista provou-se de desapontadora durabilidade: sobreviveu à Nova República e operou mutações genéticas que hoje lhe permitem uma sólida expectativa de vida, mesmo diante de substanciais transformações no ambiente ideológico e institucional dentro e fora do Brasil, com a onda de privatização, desregulamentação e reengenharia do setor público.

              Ora, esse novo avatar do estamento tecnoburocrático é propiciado pelo ritmo vertiginoso e acachapante com que o Executivo publica e republica suas famigeradas Medidas Provisórias, sucedâneas dos Decretos-Leis das ditaduras de 1937 e de 1964.

              Não vou afrontar a paciência dos presentes, que me honram com sua atenção, recapitulando o acúmulo de vicissitudes em razão das quais a Constituição brasileira de 1988, híbrido monstruoso de Parlamentarismo e Presidencialismo entrou para os anais da teratologia política mundial. Quero apenas chamar sua atenção para as graves conseqüências institucionais da invasão indiscriminada da esfera de competência do Legislativo por uma burocracia arrogante e usurpadora. Insinuante e astuciosa, ela subverte as hierarquias e tenta instrumentalizar presidentes da República legitimamente eleitos, na ânsia de mais e mais poder, acumulado às expensas do Congresso Nacional.

              Vejamos as estatísticas dessa assustadora escalada.

              - Governo Sarney, 147 MPs em 17     meses;

              - Governo Collor, 160 em 30 meses;

              - Governo Itamar, 505 em 27 meses;

              - Governo Fernando Henrique, 244 em    menos de 7 meses.

              Enxerto desajeitado do parlamentarismo italiano, as Medidas Provisórias têm seu emprego restrito pelo nosso texto constitucional a casos "relevantes e urgentes", certo? Infelizmente, não é bem assim! Uma rápida vista d´ olhos na longa lista de MPs baixadas nos últimos meses insinua critérios de prioridade no mínimo discutíveis. Assim, por exemplo, a MP nº 1056, de 28/07/95, estabelece a gratificação por desempenho a funcionários de serviços de proteção ao vôo; outra, a de nº 1060, daquela mesma data, regulamenta a cobrança de mensalidades escolares; uma terceira cria cargos de DAS na Advocacia-Geral da União...

              Certas MPs chegam a comprometer a imagem de seriedade imprescindível ao Executivo e desmoralizam esse instrumento perante a opinião pública. Em passado não muito longínquo, foi esse o caso daquela que incluía o Tiradentes na galeria dos heróis da história pátria. Ora, como defender o critério da urgência para acontecimentos de 200 anos atrás sem cair no ridículo?!

              Infelizmente, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a situação é muito mais trágica do que cômica, pois a tecnocracia teima em promover bruscas e profundas intervenções na economia a golpes de medida provisória. Os ziguezagues da política de comércio exterior dos últimos meses são exemplos de intervenção que vão assumindo, cada vez mais, as características de um poder discricionário, tal é o seu sentido unilateral , sem maiores discussões com os segmentos da sociedade e seus legítimos representantes no Congresso Nacional.

              Agindo nas sombras, abusando da confiança do Governo a que deveriam servir com fidelidade sem outro azimute que não o do interesse nacional, a burocracia compromete a credibilidade desse mesmo Governo. Ela trai, na prática, seu empenho governamental declarado de fomentar investimentos diretos nacionais e estrangeiros de longo prazo na modernização das atividades produtivas, único caminho para atender às metas prioritárias de gerar emprego, distribuir renda e corrigir nossas gravíssimas distorções sociais. Sem uma infra-estrutura legal e normativa estável é impossível pensar na consolidação de um horizonte mais límpido para o planejamento estratégico das empresas. E, na ausência desse horizonte, as perspectivas da tão almejada estabilização monetária e financeira se tornam altamente problemáticas. A instabilidade congênita dos fluxos de hot-money continuará a ameaçar nosso balanço de pagamentos, qual bomba-relógio de potência devastadora.

              Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores:

              Até bem pouco tempo atrás, os defensores dessa profusão de MPs justificaram sua postura diante da inoperância e morosidade atribuídas ao Legislativo numa quadra de urgentes definições nacionais. Antes de mais nada, cumpre questionar essa interpretação. A meu ver, o unilateralismo dos fatos consumados era o grande culpado da imagem negativa do Congresso junto à opinião pública. Há que inverter o vetor dessa relação causal: confrontados com o "prato feito" de MPs com força de lei a partir da data de sua publicação, podendo ser reeditadas ao infinito, os parlamentares passaram a sentir-se frustrados, desencorajados de exercer o nobre papel de legisladores a eles confiado pela sociedade brasileira.

              E, com o advento desta legislatura, o argumento pró-MP debilitou-se ainda mais. Sob a liderança competente e esclarecida dos presidentes José Sarney, no Senado, e Luís Eduardo Magalhães, na Câmara, e com os primeiros frutos de iniciativas como a do Grupo de Trabalho de Reforma e Modernização, diligentemente conduzido por meu colega Renan Calheiros, o Congresso Nacional reverteu sua imagem anterior. Das últimas pesquisas de opinião, emerge o perfil de um Legislativo ágil, operoso e em plena sintonia com os anseios de mudança do povo brasileiro. Um Legislativo que limpou sua pauta e credenciou-se como parceiro do Executivo num amplo e ambicioso processo de reformas constitucionais.

              Este Legislativo, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tem agora o dever moral e político de estancar a enxurrada de Medidas Provisórias, que envenena o relacionamento entre os poderes e desestimula a busca do consenso Presidência/Parlamento na formulação, discussão e aprovação de leis verdadeiramente condizentes com o interesse geral e as aspirações nacionais.

              Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 17/08/1995 - Página 14020