Discurso no Senado Federal

REFUTANDO CRITICAS DA IMPRENSA SOBRE SUA ATUAÇÃO EM RELAÇÃO AO DISTRITO FEDERAL. HISTORIA E CARACTERISTICA DE BRASILIA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATUAÇÃO PARLAMENTAR. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.:
  • REFUTANDO CRITICAS DA IMPRENSA SOBRE SUA ATUAÇÃO EM RELAÇÃO AO DISTRITO FEDERAL. HISTORIA E CARACTERISTICA DE BRASILIA.
Publicação
Publicação no DCN2 de 26/08/1995 - Página 14640
Assunto
Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.
Indexação
  • RESPOSTA, CRITICA, IMPRENSA, RELAÇÃO, ATUAÇÃO PARLAMENTAR, ORADOR, AMBITO, DISTRITO FEDERAL (DF).
  • ANALISE, DESENVOLVIMENTO, FORMAÇÃO, HISTORIA, MOTIVO, CONSTRUÇÃO, CAPITAL FEDERAL, BRASIL.
  • CRITICA, VONTADE, EXECUÇÃO, POLITICA, GOVERNO FEDERAL, DEMISSÃO, FUNCIONARIO PUBLICO, RETIRADA, GARANTIA, SERVIDOR PUBLICO CIVIL, SERVIDOR PUBLICO ESTADUAL, RESULTADO, AUMENTO, INDICE, DESEMPREGO, REDUÇÃO, NIVEL, CONSUMO, CRISE, ATIVIDADE COMERCIAL, RECESSÃO.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, já disseram que "o homem é um animal político". Isso disse o sábio Aristóteles. Disseram também que o homem é um bípede implume. Outro, Jean-Paul Sartre, afirmou que "o homem é o único animal que ri". Eu acho que o homem é o único animal que mente. A mentira talvez seja a característica essencial do homem como produto de nossa era, de nossa época, de nossa cultura.

Muitos dos Srs. Senadores estão vindo para Brasília como para um exílio, uma condenação. Outros começam a compreender a cidade. Eu moro aqui há 35 anos e gostaria de ser uma espécie de cicerone; gostaria de falar sobre esta minha cidade para aqueles que querem compreendê-la, compreender a sua essência e o seu significado.

A imprensa já disse que nenhum projeto meu se refere especificamente a Brasília. Não é bem verdade. Brasília é uma preocupação constante nesses meus 35 anos de brasiliense. Mas não é fácil compreender uma cidade.

A modernização urbana talvez tenha se iniciado em 1703, com Pedro o Grande, que iniciou, na Rússia, a construção de uma nova capital, Petersburgo, que para ele significava uma janela aberta para a modernidade, uma janela aberta para o Ocidente, uma janela aberta para as transformações que o capitalismo já imprimia na Europa Ocidental, onde ele foi aprender a construir navios, onde foi absorver a modernidade que queria transplantar para a Rússia.

Contudo, ao entrar pela janela, a modernidade foi como um vendaval, que ameaçou destruir toda a estrutura política, social e econômica do feudalismo russo. O despotismo modernizante de Pedro o Grande proibiu a construção em qualquer lugar que não fosse Petersburgo, levou todos os pedreiros da Rússia para essa cidade, elevando a sua população, em poucas décadas, para 200 mil habitantes; ameaçou a ordem monárquica existente, fazendo pesar sobre a classe dominante o perigo de perder seus títulos de nobreza, caso não mudassem para Petersburgo.

Os sucessores de Pedro o Grande, no entanto, perceberam que aquela modernização iria abalar os alicerces apoiados na servidão, as bases do poder, as base econômicas em que o sistema se apoiava. Portanto, uma reação contra a modernização logo se fez, de forma igualmente violenta, culminando esse processo de convulsão não apenas com a abolição da servidão, mas também com a própria Revolução de 1905.

Uma outra cidade moderna, cuja modernização tem um caráter nitidamente reacionário, como consegue conciliar esses dois conteúdos, com maestria, com elegância, com disfarce, com o sistema capitalista. Foi a grande modernização que Napoleão III, convocando Haussmann, em 1845, impôs a Paris. Antes da era do automóvel, os Champs Elysées foram abertos, uma rua com mais de cem metros aberta sobre as casas pequenas, as vielas, onde os camponeses expulsos da terra vinham trazer a sua agitação.

A reforma de Paris, a construção dos boulevards teve um sentido nitidamente reacionário. Queria Napoleão III usar a moderna arquitetura das grandes avenidas que se cruzam no Étoile, para desalojar os trabalhadores, para facilitar o caminho da polícia, para impedir que a escuridão das vielas permitisse o conluio; para impedir que os trabalhadores urbanos começassem a se organizar. E o processo de reconstrução e modernização de Paris, a destruição do antigo e perigoso, sobre o qual se erguia o novo, o moderno, utilizou 25% da mão-de-obra existente na capital francesa.

Belo Horizonte e Goiânia são cidades copiadas da modernização francesa de 1845. São cidades que repetem o traçado de Paris, com ruas largas; cidades que, tendo sido feitas antes da era e do século do automóvel, já anteviam a movimentação que as ruas, que os passeios, que a atividade social urbana iria, a partir de então, imprimir à nossa vida, determinar o nosso comportamento, influir de maneira profunda em todos os nossos gestos.

Em 1925, ocorre uma nova onda de modernização, também reacionária, dessa vez, chefiada por Le Corbusier, o inspirador dos urbanistas de Brasília e que tanto influiu na arquitetura moderna do Brasil. Ele dizia que era preciso matar as cidades - cidades constituem um perigo. Ele queria afastar as indústrias para 100Km do perímetro urbano. Prestou suas homenagens a Hitler e quis servir a Mussolini, mas serviu ao Governo de Pétain.

É preciso matar as cidades; é preciso construir cidades que sejam estradas, cidades rodoviárias. E Brasília é isto: uma cidade rodoviária, com 8Km de rodovia no Eixo Norte e no Eixo Sul, com as rodovias auxiliares "L" e "W". É uma cidade rodoviária, como passam a ser todas as cidades a partir da era do carro.

Brasília não precisou destruir nada; ela foi edificada no Planalto Central, em pleno cerrado, ao contrário das outras cidades, cuja modernização foi destruidora e paralisante. Brasília não veio resolver os problemas dela própria, os problemas da capital em construção - o nada não tem problema: ela veio tentar resolver os problemas do Rio de Janeiro, onde havia os calabouços, onde os estudantes já agitavam as suas bandeiras, onde os sindicatos se organizavam, onde as baixadas fluminenses já começavam a ameaçar a ordem e a calma do velho Rio de Janeiro.

Os argumentos levantados por ocasião da mudança de Brasília são todos reacionários; inclusive foi avocado o perigo de uma invasão, pela Argentina, do porto do Rio de Janeiro. Era preciso interiorizar a capital para evitar ataques também externos, não apenas os internos da população, que se transformava numa ameaça ao poder e ao seu exercício.

O processo de modernização, de rodoviarização da cidade, quando é feito numa urbe já edificada, como aconteceu, por exemplo, com Nova Iorque, tem que destruir violentamente a cidade antiga, para erguer as vias suspensas, a rodoviarização sobre a antiga cidade não preparada para a era automobilística, não preparada para ser uma cidade rodoviária.

Portanto, vemos, na época de Roosevelt, grande parte dos recursos públicos ser aplicada, inclusive sob o impulso e a inspiração de um outro judeu, Robert Moses, o grande destruidor e reconstrutor de Nova Iorque.

Em Brasília não havia o que ser destruído; Brasília não tinha problemas, porque o nada ainda não tem problemas. Brasília foi feita para resolver os problemas do Rio de Janeiro e para auxiliar, para alavancar a economia de São Paulo. Como alegrou as indústrias de Ermírio de Moraes, com as grandes encomendas de cimento, pois houve grande consumo de cimento; como ficaram alegres e satisfeitas as siderurgias de São Paulo, quando as encomendas de ferro para a construção rápida da nova cidade constituíram um novo mercado para a economia paulistana!

Portanto, pensar que Brasília é uma cidade-problema e tentar, como se tentou desde o tempo de Jânio Quadros, retirar dela a condição de Capital Federal é não ter uma visão do contexto em que estava inserida a sua construção, que era o de tentar resolver os problemas do Brasil. Obviamente, houve muita má vontade em relação a esta cidade, que tem se manifestado, desde a época de Jânio Quadros, na tentativa de retornar a capital para o Rio de Janeiro. Era uma ideologia centrada em São Paulo, nos interesses da indústria, da tecnologia, da produtividade física, do desprezo pela cultura imaterial, pelo processo administrativo, pelas relações que não eram materiais, objetivadas na produtividade física e no ganho centrado em torno da exploração do trabalho urbano assalariado.

Essa produção do pensamento, ligada à produção material centrada em São Paulo, constituiu-se, desde o princípio, em ingrediente que se opõe, que não compreende e que quer destruir a nova Capital. Proibiram os militares que as indústrias se constituíssem em Brasília. Entendiam que, se isso fosse feito, Brasília repetiria, num processo de sindicalização e de reivindicações, as perturbações que já ocorriam nas grandes capitais do Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro.

Os alunos foram afastados para uma universidade, para uma muralha despótica, erguida no campus isolado. Assim, livrava-se a comunidade de mais esse perigo, do perigo dos estudantes. Mas, apesar dessa tentativa, foi o campus universitário o pretexto para a deflagração do AI-5; a provocação contra os estudantes, a morte de um aluno que se tornou imortal na memória daqueles que viveram na Universidade de Brasília.

A invasão da universidade, como ato preparatório para o AI-5, mostra que a vida é muito mais rica do que a prancheta; a atividade humana é muito mais transformadora do que os planos feitos pelos tecnocratas. Assim, o povo de Brasília, que não se devia sindicalizar, transformou professores, que antigamente usavam beca, em trabalhadores do ensino, sindicalizados, tal como os médicos e as outras categorias profissionais que constituíam uma classe privilegiada e que não se imiscuíam nesses movimentos, tidos como espúrios, da base dos trabalhadores.

Em Brasília, fez-se a primeira greve do Brasil, em 1973, em pleno regime ditatorial. Tenho orgulho de ter participado ativamente dessa greve. Portanto, o Governo Federal, o Governo da modernidade hoje não consegue entender o papel de Brasília dentro da totalidade nacional e passa a querer que se repitam em dose dupla, em nível federal e distrital, essas medidas perversas. Cento e sessenta mil funcionários foram demitidos, numa cidade administrativa como é Brasília!

O SR. PRESIDENTE (Bello Parga)- Comunico ao orador que o seu tempo se esgotou.

O SR. LAURO CAMPOS - Muito obrigado. Vou apenas tentar resumir o que tinha a dizer.

Aqui se aplicam as medidas ditadas pelo FMI: demissão de funcionários, enxugamento da máquina, retirada das garantias dos servidores públicos. O desemprego aumenta, e o desemprego de Brasília transforma-se em um dos maiores do Brasil. Enxuga-se também para imitar, aqui, no Distrito Federal, o processo realizado em escala e em dose nacional: desempregar trabalhadores, funcionários públicos, sucateando-se os serviços sociais, a saúde e a educação, reduzindo-se os salários, os vencimentos dos funcionários, levando portanto os comerciantes a uma onda de falências, a uma crise agravada pelas taxas de juros exacerbadas. Assim fica realmente difícil a sobrevida em Brasília.

Não se percebe que Brasília constitui um grande mercado que viabiliza e sustenta a indústria montada no triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte. Retirar o papel desempenhado por Brasília dentro do contexto nacional e esquecer esse conteúdo reacionário contra o qual a população lúcida de Brasília soube lutar, soube se organizar é viver em Brasília sem compreendê-la.

Faço votos no sentido de que o Governador Cristóvam Buarque compreenda o sentido profundo da Capital da República, que ele dirige, e não venha a repetir, em dose local, essas medidas desumanas, falidas, que só podem levar ao subconsumo, ao desemprego, à "desconstitucionalização", à perda de todas as conquistas sociais. É o governo do desmando, do desfazer.

Para mim - só para terminar, pedindo a paciência da Mesa -, somos não um bípede implume, mas nos aproximamos do joão-de-barro, que não pode parar de trabalhar e que todo ano tem que reconstruir a sua casa. Por isso, sua casa só pode durar um ano. Se durasse mais de um ano, o joão-de-barro não teria o que fazer e morreria.

É preciso compreender que Brasília, infelizmente, foi tolhida de outros tipos de atividades industriais e que, portanto, precisa continuar a se reconstruir; do contrário, o desemprego levará ao desespero e levará à agressividade cega, não dirigida pela bússola da ideologia.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 26/08/1995 - Página 14640