Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MATERIA INTITULADA 'EXECUTADOS, TORTURADOS E HUMILHADOS', DA JORNALISTA MONICA BERGAMO, PUBLICADA NA REVISTA VEJA, DESTA SEMANA.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MATERIA INTITULADA 'EXECUTADOS, TORTURADOS E HUMILHADOS', DA JORNALISTA MONICA BERGAMO, PUBLICADA NA REVISTA VEJA, DESTA SEMANA.
Aparteantes
Geraldo Melo, Osmar Dias.
Publicação
Publicação no DCN2 de 05/09/1995 - Página 15406
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • ANALISE, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, MONICA BERGAMO, JORNALISTA, PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DENUNCIA, OCORRENCIA, MORTE, POSSEIRO, TRABALHADOR RURAL, CONFLITO, PROPRIETARIO, TERRAS, MUNICIPIO, CORUMBIARA (RO), ESTADO DE RONDONIA (RO).
  • DEFESA, IMPLANTAÇÃO, REFORMA AGRARIA, ASSENTAMENTO RURAL, EXECUÇÃO, DESAPROPRIAÇÃO, TERRAS, APURAÇÃO, RESPONSABILIDADE, MUNICIPIO, ESTADO DE RONDONIA (RO).
  • ANALISE, TRECHO, ESTUDO, AUTORIA, BERNARDO MANÇANO FERNANDES, PROFESSOR, UNIVERSIDADE ESTADUAL, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), RELAÇÃO, HISTORIA, GRILAGEM, PAIS.

O SR. EDUARDO SUPLICY (PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmº Sr. Presidente, Senador José Sarney, Srªs e Srs. Senadores, agrava-se sobremodo a situação no campo. Volta e meia vemos o anunciado Plano de Reforma Agrária adiado causando problemas cada vez mais sérios para o País. Não é a primeira vez que se adiam projetos e metas de reforma agrária.

Logo após o final do regime militar, no Governo do Presidente José Sarney, em outubro de 1985, foi elaborado o Plano Nacional de Reforma Agrária estabelecendo como meta o assentamento, isto é, a fixação em terras próprias de 1 milhão e 400 mil famílias numa área de 43 milhões hectares, no período de 1985 a 1989. Até o final de 1988, haviam sido assentadas 10.505 famílias; ou seja, em quatro dos cinco anos previstos, apenas uma mínima parte dos objetivos - 0,75% - foi realizada.

É preciso caracterizar ainda que, a partir da Constituição promulgada no final de 1988, a reforma agrária não teve progressos significativos. Houve dificuldades para a sua realização.

Durante o Governo Fernando Collor de Mello havia a previsão de se assentar 100 mil famílias por ano. Não foi atingida essa meta nos seus três anos de Governo, nem nos dois anos do Governo Itamar Franco.

E agora? Quais eram as propostas dos principais candidatos durante a campanha eleitoral? Aqueles que chegaram em primeiro e segundo lugar tinham propostas distintas. Luiz Inácio Lula da Silva propunha o assentamento de 100 mil famílias a cada ano para chegar ao final dos quatro anos de seu mandato com pelo menos 400 mil famílias assentadas. O Presidente Fernando Henrique Cardoso havia proposto o assentamento de 280 mil famílias - das quais pelo menos 40 mil famílias seriam assentadas no ano de 1995. Estamos praticamente no nono mês do Governo Fernando Henrique Cardoso e o que aconteceu? Foram assentadas apenas 12 mil famílias neste ano.

Anunciou-se a desapropriação de 1 milhão de hectares, o que é importante. Na verdade, para atingir a meta deste e a do próximo ano teria que se desapropriar mais 1 milhão de hectares. Entretanto, parece que algo amarra o Governo. O que será? Do orçamento previsto para a reforma agrária o Governo executou até agora apenas 3,2%.

O Presidente do INCRA disse que a reforma agrária está emperrada por falta de recursos, também está emperrada por falta de vontade política e determinação.

O Judiciário, por sua vez, tem atrasado o julgamento de todas as ações relativas à contestação de decretos de desapropriação. De quem será isso? Não será a pedido do próprio Ministro da Agricultura e Reforma Agrária? Não é o Ministro José Eduardo Andrade Vieira o símbolo da "Gente que Faz"? Que faz o Ministro da Reforma Agrária? Não estará S. Exª, em verdade, atrasando o que deveria ser meta de quem prometeu fazer justiça neste País?

O que ocorreu, no mês passado, em Corumbiara, Rondônia, constitui ato da maior gravidade, e que se repete na história brasileira. Ali foram executados, torturados e humilhados os trabalhadores rurais.

Mônica Bérgamo escreveu matéria imparcial, extremamente detalhada na revista Veja desta semana. É importante mencionarmos essa reportagem, que parece ser uma das mais completas publicadas pela imprensa brasileira, a qual relembra cenas ocorridas em Canudos de Antônio Conselheiro, cenas ocorridas na terra de Chico Mendes e as que continuam a acontecer no Governo Fernando Henrique Cardoso.

      "Às 4 horas da madrugada do dia 9, os 187 policiais militares iniciaram uma caminhada de 1 quilômetro. Saíram de um campo de futebol, onde haviam montado um acampamento, e partiram em direção à fazenda Santa Elina. Dividiram-se em três pelotões e, rastejando pela mata, cercaram as 600 famílias de sem-terra. Os cinqüenta policiais da Companhia de Operações Especiais, tropa de choque do Estado, usavam coletes à prova de bala e capuzes pretos. Os 137 homens do Batalhão da PM de Vilhena, cidade a 190 quilômetros da fazenda, levavam revólveres, metralhadores e escopetas. Ainda estava escuro. "O clima estava tenso. Eu não queria ir", lembra o major José Ventura, que comandou a operação. O barulho na mata alertou três lavradores encarregados de vigiar os acessos à área ocupada. Soltaram rojões, para avisar os outros que havia perigo por perto. Bum, bum, bum. O som ecoava pela mata. Começou uma correria dentro do acampamento.

      Os posseiros que integravam o grupo de segurança acordaram e foram até um barraco de lona onde ficavam as armas. Eram 28 espingardas, dois revólveres calibre 22, três garruchas, duas carabinas, cartuchos e bombas artesanais feitas de toco de bambu. Na Santa Elina, oitenta posseiros trabalhavam na segurança. No dia do massacre, apenas vinte se dispuseram a pegar em armas para resistir à PM. Os outros, como os demais posseiros, cataram paus e pedras. Correram para a beira de um córrego que circunda a área. As crianças, divertindo-se até, imitavam os pais. Os policiais dispararam rojões e gás lacrimogêneo. Havia muita fumaça. As mulheres carregavam panos e frascos de vinagre para molhar o rosto das crianças e protegê-las do gás. Os sem-terra ligaram as motosserras para assustar os PMs. Os motores roncavam. Na noite clara, só se viam os holofotes da PM, com seus fachos dançando na fumaça dos rojões. "Nem que a coisa engrossa, essa terra é nossa", gritavam os posseiros. "Reforma agrária já!"

      De repente, o estalido de tiros. Tiros vindos do barracão de segurança dos posseiros e da mata ocupada pelos policiais. Maria dos Santos Silva, 30 anos, estava preparando arroz na cozinha do acampamento, junto com os filhos Romerito, 8 anos, e Vanessa, 7. "Ô, mãe, que é isso?", perguntou Vanessa. "Fica quieta", respondeu a mãe. Dezenas de mulheres com seus filhos invadiram a cozinha. Agachavam-se e gritavam. Maria pegou os filho pelas mãos e saiu correndo para o córrego. Estavam quase saindo do acampamento quando a menina Vanessa gritou: "Ai, mãe". "O sangue saiu pela barriga dela. Peguei no colo e entrei no córrego. Quando cheguei ao outro lado, ela esticou as pernas e morreu. Eu disse "vai com Deus, minha filha". Maria correu mais 4 quilômetros, com a filha morta nos braços.

      Já estava amanhecendo. Às 6h30, uma bala atingiu a testa do tenente Rubens Fidélis Miranda, que comandava um dos pelotões. Em seguida, outros dois tiros, no pescoço. Um policial pegou Fidélis nos ombros. Um último tiro o atingiu pelas costas. Fidélis, um policial muito querido pelos colegas, morreu. Pouco depois, o PM Ronaldo de Souza foi atingido no pescoço. Morreu antes de chegar ao hospital. A operação tinha pouco mais de duas horas e já havia mortos dos dois lados. Os policiais resolveram vingar-se. O batalhão de reserva de 35PMs, a 1 quilômetro da fazenda, foi acionado para reforçar o combate. "Começamos a ver companheiros feridos e perdemos o controle", diz o cabo Valdecir Ribeiro. Estava começando a pior parte.

      Em agosto é tempo de seca em Rondônia e o céu está sempre cinzento, por causa da fumaça que sobe das queimadas. Os policiais começaram a atear fogo aos barracos e, com isso, havia ainda mais fumaça no ar. Eles atiravam a esmo, sem enxergar direito. Onze policiais foram baleados, contra dezenas de posseiros. Quando ganharam o controle da situação, já sabiam em quem estavam atirando. Foi o começo das execuções. Nelci Ferreira, 23 anos, pulou da cama junto com a mulher, Ana Paula Alves, de 15, na hora do tiroteio. Estavam casados há seis meses, desde que Ana Paula fugiu de casa para viver com o namorado. Queriam um lote na Santa Elina para começar a vida. Ao sair do barraco, ficaram tontos com o gás lacrimogêneo. Apanharam um lenço com vinagre e correram para o córrego. Um posseiro caiu baleado e Nelci se abaixou para ajudá-lo. Nisso foi atingido por dois tiros na cabeça, disparados pelas costas e de cima para baixo. Caiu. Um lavrador ajudou Ana Paula a carregar o marido para a farmácia do acampamento. "Eu chamei, chamei, mas ele não falava, só gemia". Valdomiro dos Santos, 25 anos, o "Tutu", estava na farmácia, socorrendo os feridos. Viu Ana Paula chegando com Nelci.

      Em seguida, os PMs conseguiram entrar no acampamento. Ao chegar à farmácia, atiraram nos frascos de soro e nos analgésicos, destruindo toda a medicação que havia ali. Ana Paula foi arrastada pelos policiais. Nunca mais viu o namorado. Nelci, no chão, continuou gemendo. "Ele dizia que ia morrer e chorava muito", lembra Tutu. Os dois deitaram na frente da farmácia, ao lado de outros rendidos. Quem levantava a cabeça levava chute e cacetada. Nelci apertou a mão de Tutu. "Fica quieto", cochichou Tutu. Os PMs escutaram. Puxaram a cabeça de Nelci pelos cabelos e lhe deram três chutes no rosto. Ao lado deles, em pé, encontrava-se Odilon Feliciano. Estava urinando quando um PM se aproximou. "Deita aí", ordenou. O posseiro pediu alguns segundos. O policial deu-lhe um golpe na cabeça. Odilon caiu no chão".

Estou lendo aquilo que poderia ser Os Sertões, de Euclides da Cunha, aquilo que se passou em Canudos, a cidade de Antônio Conselheiro. Estou lendo aquilo que poderiam ser as cenas que levaram Chico Mendes a formar a sua consciência, quando viu posseiros, trabalhadores sem-terra, serem queimados, depois de terem sido molhados com gasolina, querosene. Pessoas queimadas vivas porque queriam o direito à terra, isso, Chico Mendes viu quando era menino. Mais tarde, Chico Mendes viu, em cenas semelhantes, o líder Wilson Pinheiro, Presidente do Sindicato dos Seringueiros de Xapuri, ser também morto. E depois a cena se repetiu com o próprio Chico Mendes, porque ele queria que houvesse direito à terra e por métodos pacíficos.

Entretanto, a coisa continua. E o que faz o Governo? Vou pedir seja registrado o restante da reportagem notável de Mônica Bérgamo, publicada na revista Veja desta semana. No seu parágrafo, balanço final, ela diz:

      "Dez posseiros foram mortos, 125 feridos, nove estão desparecidos, 355 foram presos, 120 foram interrogados, 74 foram indiciados por desobediência e resistência. Hélio Pereira de Moraes, dono da fazenda Santa Elina, de 7.518 alqueires, e um fazendeiro vizinho, Antenor Duarte, organizaram a expulsão. Duarte foi ao Juiz Glodner Pauletto, no Fórum de Colorado d´Oeste, e saiu dali com um ofício exigindo da PM a expulsão dos sem-terra. Levou o documento para Porto Velho, a 800 quilômetros, e entregou-o em mãos ao então Comandante-Geral da PM, Wellington da Barros Silva. O dono da Santa Elina pagou R$5.200,00 para a empresa de ônibus Eucatur transportar os PMs de Porto Velho a Vilhena. O recibo foi emitido em nome da Polícia Militar. O Delegado Raimundo de Souza Filho, que conduz o inquérito civil, anuncia que vai indiciar "todos os posseiros", que ocupam a fazenda ilegalmente, desde 14 de julho. Já o Tenente-Coronel João Carlos Balbi vai investigar os PMs. Dos 187 policiais, 23 dias depois do massacre, tomou o depoimento de nove."

Em que pese à determinação anunciada do Ministro Nelson Jobim e aos editorias de todos os jornais brasileiros, dizendo que se deveria apurar com seriedade esse caso, o delegado tomou depoimento de nove, apenas.

Ora, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, será que a situação do Brasil é tão tranqüila para que o Presidente Fernando Henrique se sinta tão amarrado? Amarrado por quem? Será pelos tentáculos dos Partidos que o apóiam? O que fará o Presidente? Será que a Bancada dos Partidos que apóiam o Governo não dizem a Sua Excelência que se faz necessária a realização da reforma agrária, no mínimo no ritmo que ele próprio prometeu em campanha?

Estive, nesse final de semana, no sábado, em Pontal do Paranapanema, na região onde ocorreu ocupação de área pelos sem-terra. Quando o pelotão da Polícia Militar chegou e exigiu que, de pronto, desocupassem a área, eles disseram: "Não é preciso vir aqui com violência; vamos sair". E ali permaneceram. Lá estão acampadas mais de 900 famílias, como pude constatar.

Procurei ouvi-los, para saber qual a sua angústia, qual o seu desespero. Trabalhadores que, aos 40, 50 ou 60 anos disseram a mim: "Começamos aqui, eu comecei a trabalhar aos 7 ou 8 anos de idade". Por que razão? - perguntei. "Porque meu pai não tinha força suficiente, não tinha dinheiro, e precisei começar a trabalhar na roça aos 7 ou 8 anos".

Agora, sem terem tido formação na idade em que deveriam estar indo para a escola, para obterem oportunidade de melhor remuneração, estavam ali procurando um lugar na terra para trabalhar e ter uma remuneração mais digna. Estão aguardando naquela região a demarcação das áreas. No caso, a área fica no Estado de São Paulo, mas poderia perfeitamente o Governo Federal dizer ao Governador Mário Covas que é importante que se defina rapidamente a questão da demarcação das áreas.

O depoimento que obtive ao visitar ontem o Prefeito de Presidente Prudente, Agripino Lima, é o de que ali os proprietários de terra, por saberem que sua posse não é plena e legalmente reconhecida, estariam dispostos, num diálogo com o Governo, a ceder cerca de 30% das áreas para que logo elas fossem objeto de assentamento de milhares de trabalhadores sem-terra que estão há décadas esperando, porque no processo de concentração gradativa de terras... (Pausa)

      (A sessão é suspensa às 15h01min em decorrência da falta de energia elétrica e é reaberta às 15h02min.)

O SR. PRESIDENTE (José Sarney) - Está reaberta a sessão.

Continua com a palavra o Sr. Senador Eduardo Suplicy.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Sr. Presidente, pela primeira vez, desde que estou nesta Casa, nunca houve interrupção da sessão por falta de energia, porque o gerador sempre garantia a continuidade. Pela primeira vez, percebo isso. Talvez seja o tema da reforma agrária, o problema dos sem-terra que levou o Senado a ficar às escuras. Mas, felizmente, a energia está de volta.

Eu gostaria, Sr. Presidente, de ressaltar alguns aspectos graves da concentração da terra no País, a partir de estudo do Professor Bernardo Mançano Fernandes, da UNESP - Universidade do Estado de São Paulo, que escreveu um ensaio sobre os donos da terra e do poder, mostrando a história da grilagem das terras na área do pontal do Paranapanema.

Diz ele:

"... A mídia regional ainda não fez uma matéria sobre a história da grilagem de terras da região. Embora essa faça parte do imaginário social, principalmente dos cidadãos mais velhos, ou nos nomes das principais ruas da cidade de Presidente Prudente, como, por exemplo, avenida Manoel Goulart e avenida Coronel Marcondes. A história da grilagem de terras não é só uma triste lembrança da história de nossa região, é uma triste lembrança da história do Brasil. Desde as capitanias hereditárias até hoje, a história da propriedade da terra no nosso País é a história da grilagem e da concentração de terras. Com a abolição do tráfico negreiro e a instituição da lei de terras de 1850, o valor do escravo foi transferido para a terra. Depois, com a abolição dos escravos em 1888, o escravo que era cativo se torna livre, e desde 1850, a terra que era livre se torna cativa. Obviamente que o traficante de escravos não ficou desempregado. Ele virou grileiro ou traficante de terras. Conforme Monteiro Lobato: "nas regiões do Noroeste (do Estado de São Paulo), a palavra grilo e seus derivados, grileiro, engrilar, em acepção mais diversa da que deve ter entre os nipônicos, onde grileiros engrilam grilos de verdade em gaiolinhas, como fazemos aqui com o sabiá, o canário, o pintassilgo e mais passarinhos tolos que morrem pela garganta. Em certas zonas chega a ser uma obsessão. Todo mundo fala em terras griladas e comenta feitos de grileiros famosos".

São diversos os registros sobre processos de grilagem no Oeste do Estado de São Paulo que descrevem as "maracutaias" dos traficantes de terra. Um exemplo didático nos é dado pelo geógrafo francês Pierre Monbeig: "os falsários deram prova de imaginação e habilidades diabólicas: buscaram folhas de papel timbrado com as armas imperiais, imitaram escritas fora de uso, descolaram velhos selos, amareleceram propositalmente seus documentos, arrancaram páginas dos registros dos tabeliões. Implantavam-se à pressa cafeeiros de 20 ou 30 anos nas clareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casas velhas, que eram guarnecidas com móveis antigos, para criar um ambiente adequado e simular uma antiga ocupação de solo. Era preciso, também, presumir-se contra os adversários, pois muitas vezes dois ou três indivíduos moviam demandas em relação ao mesmo território, com algumas variantes na delimitação. Nesse caso, era indispensável cair nas boas graças do juiz de direito e dos agrimensores. E, por fim, era o assassinato uma solução levada em conta".

Em nossa região, o grilo mais famoso é o grilo da fazenda Pirapó-Santo Anastácio. Atente para o processo de demarcação da área: "...começa no Rio Paranapanema, 10 léguas mais ou menos acima de sua barra, descem por esse rio, até sua barra no Rio Paraná, sobe pelo Rio Paraná até o espigão do Rio do Peixe, seguem por esse espigão e dividindo com as fazendas Boa Esperança do Aguapeí e Montalvão, até as cabeceiras do Rio Santo Anastácio, rodeando estas cabeceiras e dividindo com as fazendas Laranja Doce e Anhumas e até as divisas com a fazenda Cuiabá, desce por estas até o Rio Paranapanema, ponto de partida dessas divisas". Com essas referências...

O Sr. Geraldo Melo - V. Exª me permite um aparte, Senador Eduardo Suplicy?

O SR. EDUARDO SUPLICY - Pois não, Senador Geraldo Melo.

O Sr. Geraldo Melo - Senador Eduardo Suplicy, eu desejava, em primeiro lugar, expressar, nesta oportunidade, minha solidariedade a quantos foram vítimas da brutalidade, da violência, da barbárie, da ausência de lei, da ausência de Estado, de quantos viveram os episódios dantescos, primitivos, brutais, que V. Exª acaba de descrever, incorporando ao seu discurso a reportagem da revista Veja. Mas desejo também dizer a V. Exª - V. Exª não tem nenhuma obrigação de conhecer minha vida pública. Há pessoas mais importantes sobre cujos passados V. Exª pode ter informações - que sou político de um pequeno Estado nordestino e disputei na minha vida apenas duas eleições. E nas duas tive a honra de receber o apoio formal, ostensivo e público do Movimento Organizado dos Trabalhadores Sem-Terra no Rio Grande do Norte. Fui candidato, com seu apoio, ao governo do Estado e agora ao Senado Federal. Tive a honra de recebê-los no último dia do meu mandato de Governador para ouvir, de uma comissão formada pelos presidentes de todos os sindicatos de trabalhadores rurais do Rio Grande do Norte, o depoimento de que eu havia cumprido, como Governador, todos os compromissos que eu havia assumido com o Movimento, ao receber seu apoio como candidato. Estou dizendo isso para que não distorçam nem interpretem mal as palavras com que pretendo concluir meu aparte. Acho doloroso o que aconteceu e penso que episódios como esse precisam receber o tratamento do peso vigoroso da lei, da autoridade, a punição exemplar, para que não se repitam ou que pelo menos sejam desencorajados no futuro. Mas vejo também o Movimento dos Sem-Terra, Senador Eduardo Suplicy, conduzido com o componente fantástico de demagogia e de irresponsabilidade. Somente na Zona da Mata do Nordeste existem mais de 200 mil hectares de terras desapropriadas à espera dos assentamentos, à espera da ocupação. Eu mesmo fui responsável pela implantação, no Rio Grande do Norte, de inúmeros assentamentos, alguns dos quais, hoje, infelizmente, viram os trabalhadores desertarem dos seus lotes. O último de que tive notícia trocou seu lote, uma casa com água e energia, um kit de irrigação para dois hectares e documentos definitivos de propriedade passados por uma bicicleta e uma antena parabólica. Acredito que, quando se transforma um trabalhador sem-terra em mais um pequeno proprietário rural no Brasil, ele descobre que não vale a pena ser pequeno proprietário neste País, chegando a essa situação por compra, por herança ou por qualquer tipo de programa de intervenção na estrutura fundiária do País. Não compreendo que existam 200 mil hectares de terra disponíveis para os trabalhadores na Zona da Mata e o Movimento dos Sem-terra esteja promovendo, na mesma região, invasão de propriedades que não estão a sua disposição. E se esse tipo de comportamento for para ter o nosso apoio, é necessário que previamente se mude a atitude, a relação das instituições jurídicas com o direito de propriedade no Brasil. Porque é preciso verificar, também, em que medida o que se está fazendo é realmente para resolver, superar, diminuir as monstruosas injustiças que a sociedade impõe ao trabalhador sem-terra no Brasil ou se é apenas para engordar algumas lideranças de um movimento que se profissionalizou, que, na verdade, transformaram a luta dos trabalhadores sem-terra na sua própria carreira e que se valem do interesse, da atenção da mídia, de pessoas de boa-fé, de lideranças políticas importantes e bem-intencionadas - como, por exemplo, é V. Exª - para ganhar uma notoriedade que outros, que igualmente a mereciam, não conseguem ter. Imagino que, se quisermos lidar com esses problemas com a responsabilidade e a seriedade que o Brasil exige de todos nós, precisaremos exigir que a lei seja aplicada, que criminosos vão para a cadeia e que sejam combatidas, com toda a firmeza e com toda a dureza, as verdadeiras quadrilhas que estão à sombra do poder, armadas pelo Estado ou pelas instituições para praticarem violência e assassinatos vulgares. Mas que não se tire daí a lição de que, de um lado, estão apenas os santos e os puros e, de outro lado, os bandidos, contra quem é justo fazer tudo o que se queira fazer e contra quem seria justo praticar tudo que se quisesse praticar. Não podemos tratar com essa generosidade um movimento organizado, para o qual não têm faltado recursos nem apoio neste País, e tratar com a severidade que transparece nas palavras de V. Exª os proprietários de terra pelo simples fato de serem proprietários.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Senador Geraldo Melo, agradeço o aparte de V. Exª.

O Sr. Osmar Dias - Permita-me V. Exª um aparte.

O SR. PRESIDENTE (José Eduardo Dutra. Fazendo soar a campainha.) - Senador Eduardo Suplicy, o tempo de V. Exª já está esgotado.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Sr. Presidente, se V. Exª permitir, eu gostaria de ouvir o Senador Osmar Dias.

O Sr. Osmar Dias - Sr. Presidente, o meu aparte será uma contribuição ao Partido de V. Exª.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Senador Osmar Dias, peço que V. Exª seja breve.

O Sr. Osmar Dias - Serei breve. Senador Eduardo Suplicy, não entenda essa questão como uma provocação, muito pelo contrário. Ao longo desses meses, eu o conheci e sei que, com sua elegância, V. Exª não entenderá a questão que levantarei como uma provocação, mas como uma contribuição ao seu Partido. O PT, que V. Exª representa muito bem, presta muita atenção à questão da reforma agrária que não está sendo feita. Mas faço aqui uma referência que eu quero que aceite como contribuição. O PT tem deixado de prestar atenção a uma reforma agrária que está sendo feita às avessas, com proporções e números muito mais significativos do que qualquer meta que tenha sido estabelecida pelo atual Governo. O atual Governo estabeleceu uma meta de assentar 60 mil famílias.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Duzentas e sessenta mil; quarenta mil neste ano.

O Sr. Osmar Dias - Exato, Senador. Um levantamento feito por entidades ligadas ao setor agropecuário dá conta de que somente neste ano, fruto da falta absoluta de apoio ao campo, 600 mil pequenos produtores abandonarão as suas propriedades, numa reforma agrária às avessas jamais vista no País. Portanto, aceite este dado. Não sei se ele está correto, mas sei que é alguma coisa de muito grave e que um número muito significativo de produtores abandonarão o campo neste ano. Aceite o aparte como uma contribuição ao discurso de V. Exª.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Eu agradeço a contribuição de V. Exª e do Senador Geraldo Melo, ambos conhecedores dos problemas da terra e da história da propriedade fundiária no Brasil. V. Exªs sabem que, durante os mais de quatro séculos de nossa História, tivemos problemas dramáticos e quase sempre com este tipo de tendência à concentração das terras. De 1970 a 1985, mais de 82 milhões de hectares passaram da União para as mãos de particulares - três vezes e meia a área do território do Estado de São Paulo - e, desse total, mais de 48 milhões de hectares foram para as mãos de proprietários com estabelecimentos com mais de mil hectares.

Aqui há um quadro preparado pelo Professor Bernardo Mançano Fernandes que indica que os 27 maiores proprietários do Brasil são donos de mais de 25 milhões de hectares. Vinte e sete proprietários são donos de uma área maior do que a do Estado de São Paulo.

É muito importante a contribuição de V. Exª, Senador Osmar Dias, porque alerta o próprio Presidente Fernando Henrique e mostra-lhe o que se está realizando, na verdade, uma reforma agrária às avessas. É isso o que tem caracterizado os nove primeiros meses de seu Governo.

Quisera estivéssemos aqui no Senado Federal ouvindo a conclamação daqueles que participaram do IV Encontro Nacional dos Trabalhadores sem-Terra, realizado em julho último em Brasília, quando disseram: "Che, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta pela terra somos todos companheiros!". Quantas vezes precisaremos ver pessoas como Chico Mendes, Zumbi de Palmares, Antônio Conselheiro e tantos outros, mortos, para que se faça justiça com a terra em nosso País?

A preocupação do Governo parece estar sendo a de espionar, contrariando o que está na Constituição. A sede da CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura foi vergonhosamente espionada por técnicos arapongas da SAE.

É preciso, Sr. Presidente, que o Secretário-Geral da Presidência, Eduardo Jorge, o chefe supremo da SAE, venha explicar isso ao Senado Federal. S. Sª disse à Veja: "se confirmada a denúncia, mandarei apurar, e se algum agente estiver envolvido será responsabilizado."

Sr. Presidente, estou ingressando hoje com um requerimento de convocação ao Sr. Eduardo Jorge, Secretário-Geral da Presidência, para que S. Sª explique a respeito do assunto, pois, parece uma ação na direção contrária de quem quer estar dialogando com os trabalhadores sem-terra. Se quiserem saber o que pensam os trabalhadores sem-terra que dialoguem com eles diretamente, escutem os seus anseios, ouçam suas sugestões e promovam, com rapidez e determinação, a reforma agrária e os assentamentos. Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 05/09/1995 - Página 15406