Discurso no Senado Federal

SITUAÇÃO FUNDIARIA DO PAIS.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • SITUAÇÃO FUNDIARIA DO PAIS.
Publicação
Publicação no DCN2 de 31/08/1995 - Página 14874
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, IMPORTANCIA, REFORMA AGRARIA, PROGRESSO, PAIS, MUNDO.
  • COMENTARIO, EFICACIA, RESULTADO, PROJETO, ASSENTAMENTO RURAL, TRANSFORMAÇÃO, MUNICIPIO, ESTADO DE MATO GROSSO (MT).
  • DEFESA, NECESSIDADE, REFORÇO, PROGRAMA ESPECIAL, CREDITOS, REFORMA AGRARIA, INICIATIVA, CONSELHO MONETARIO NACIONAL (CMN), OBJETIVO, ASSISTENCIA, NATUREZA CREDITICIA, AGRICULTOR, FINANCIAMENTO, PROJETO, ESTRUTURAÇÃO, CAPACIDADE, PRODUÇÃO, COLONO, AREA, ASSENTAMENTO RURAL, APROVAÇÃO, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRARIA (INCRA).
  • DEFESA, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA, GARANTIA, RETOMADA, DESENVOLVIMENTO, SIMULTANEIDADE, PROMOÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL, PAIS.

           O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB-MT) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, certas idéias, seja por encontrarem resistência de setores poderosos das sociedades, seja por não serem devida e imediatamente acolhidas pelas consciências, precisam ser proclamadas tantas vezes quantas forem necessárias para que arrebatem as mentes e os corações das nações, daí se fazendo vontade, ato, realidade.

           Assim se deu, por exemplo, com os ideais da Democracia, reclamados insistentemente, nos tempos do autoritarismo militar, pelos homens e mulheres que se reuniram sob a bandeira do Movimento Democrático Brasileiro. Naqueles anos, enfrentando os mastins da ditadura sob o comando do intimorato Doutor Ulysses, nosso Partido deu à Nação um exemplo inolvidável de idealismo e de resistência à tirania.

           Intrinsecamente ligados ao ideal da Democracia, Senhores Senadores, estão os de Liberdade e de Justiça. A democracia não subsiste onde impera o arbítrio; falece onde assoma a desigualdade. O atual PMDB, herdeiro dessa tradição de resistência, jamais poderá recuar dessas frentes de combate.

           Senhor Presidente: as mais isentas análises históricas e sociológicas da formação da sociedade e da economia brasileiras apontam invariavelmente para a concentração da propriedade fundiária como causa fundamental dos terríveis contrastes sociais que tanto debilitam esta Nação. A exclusão da maior parte de nossa gente dos menores direitos da cidadania tem origem, sem qualquer dúvida, na injusta repartição das terras que nos marca desde a instituição colonial das capitanias hereditárias.

           Essa é uma tradição no sentido negativo do termo, uma história com que teremos de romper se quisermos realmente construir um Brasil coeso e próspero. Precisamos tornar nosso País uma sociedade capaz de realizar a tal inserção competitiva no mercado mundial sem estabelecer, para dentro de suas fronteiras, essa espécie de apartheid social que constatamos hoje na favelização de nossos centros urbanos.

           De país agrário com economia fundada no latifúndio monocultor o Brasil passou, em poucos decênios, ao estágio de economia industrial voltada para a produção de artigos de consumo. Durante esse processo, o campo se especializou em algumas culturas de exportação, que demandam muita terra e pouca mão-de-obra. Os dois fenômenos contribuíram para o acotovelamento da população nacional em torno desses centros urbanos, infelizmente incapazes de oferecer emprego para os trabalhadores sem especialização expulsos do campo.

           Os demógrafos e economistas, diante dos números dos recenseamentos decenais que atestam esse processo, dizem que o País sofreu um forte processo de urbanização desde 1930. Ouso contraditá-los, Senhor Presidente: o que vem acontecendo, para quem tem olhos de ver, é uma suburbanização do País. As pessoas deixaram o campo, sim, mas não vieram para cidades. Não mais podemos chamar assim esses burgos apodrecidos. Antes, a migração da população rural para as periferias dos centros urbanos, ocorrida sem que essas áreas pudessem absorver o acréscimo populacional, fez a qualidade de vida nesses centros decair abaixo de qualquer nível do que possamos chamar urbanidade.

           Do outro lado, lá no campo, as tensões sociais não diminuíram com o êxodo dos camponeses para as capitais. Relatos de conflitos armados, invasões de terras, assassinatos de posseiros e denúncias de trabalho escravo surgem com freqüência em noticiários dos meios de comunicação de massa. Tudo está a nos indicar que o problema reside no campo e clama por solução, que tem somente um nome: reforma agrária.

           Reforma agrária, Senhores Senadores, não é um refrão demagógico, como muitos querem fazer crer. Não é uma bandeira de cunho ideológico ou politiqueiro, mas uma condição necessária ao próprio desenvolvimento capitalista autônomo de nosso País. Essa é uma convicção que trago da juventude, daquele tempo em que atuava no movimento em defesa das reformas de base. Desde então, em meus trinta anos de atividade política, mantive a coerência entre idéias, palavras e ações, sempre me postando ao lado dos trabalhadores rurais e dos pequenos produtores. Não será agora que mudarei, menos ainda havendo aplicado parte desse tempo ao estudo da história das soluções encontradas para esse problema pelas grandes potências de todos os tempos e, em particular, pelos países que lideram hoje a economia mundial.

           Quem pensa, por exemplo, ser "reforma agrária" uma idéia que surgiu com a agitação marxista, está completamente enganado. Na verdade, a primeira grande reforma agrária de que se tem notícia teve lugar na Grécia, no sexto século antes da era cristã. A reforma agrária de Psístrato foi, para muitos estudiosos, o que propiciou a base econômica para as grandes realizações culturais dos períodos clássico e helênico, que até hoje admiramos. Antes dela, a reforma política de Sólon havia estabelecido as bases para a edificação dessa forma de governo cujo nome haveria de passar para todas as línguas do mundo como um modelo a se perseguir: a democracia ateniense.

           O caso de Roma foi, num certo sentido, diametralmente oposto. Desde cedo unificado e centralizado, o Estado romano foi uma organização "burocrática" tão revolucionária que viria a criar esse instituto indispensável a qualquer grande organização humana posterior: o Direito. O caráter impessoal e soberano que a instituição jurídica adquire, a partir de Roma, é a marca definitiva de seu grau de avanço cultural. Por outro lado, o declínio de Roma pode ser entendido, em parte, como conseqüência do malogro das reformas dos irmãos Graco, no segundo século antes de Cristo, ainda na República.

           A História ensina, Senhores Senadores, que o latifúndio escravista foi uma das desgraças de Roma. Fornecer pão às classes despossuídas tornava-se mais difícil; o circo sozinho, por outro lado, já não as satisfazia. Acrescentar terras à produção implicava a necessidade de se conquistarem novos territórios e se escravizarem mais povos, mas também - e isso encerra outra grande lição - a de deslocar mais gente dos setores produtivos para o efetivo militar. O colapso, uma vez excluída a solução possibilitada pela reforma agrária dos Gracos, era inevitável.

           Na Idade Moderna, são dignas de nota as reformas inglesa e francesa. Na Inglaterra, o Governo promoveu a passagem da propriedade das terras da nobreza empobrecida para as classes comerciais cujo poder econômico crescia. Grande parte dessa reforma, aliás, foi realizada com a redistribuição das terras da Igreja Católica Romana, expropriadas após a ruptura de Henrique VIII com o Papa. A reforma inglesa, na verdade, consistiu numa reconcentração da propriedade rural para as mãos da nova classe capitalista. Ao romper a estrutura da servidão medieval, deslocou para as cidades o contingente de mão-de-obra que tornaria possível a Revolução Industrial.

           Na França, a estrutura fundiária feudal manteve-se intocada até o último quartel do século dezoito. A Revolução Francesa viria sacudir violentamente o quadro: as terras da nobreza foram expropriadas e entregues aos camponeses; planos de pagamento parcelados foram instituídos para que esses novos proprietários pudessem ressarcir o Estado com sua produção. Essa reforma foi revertida, em parte, durante o Império napoleônico e no período de restauração monárquica, de 1815 a 1848.

           A partir da metade do século passado, no entanto, os vestígios da estrutura fundiária feudal desapareceriam definitivamente, na França como em outras nações européias. É somente nesse tempo que tais mudanças ocorrem em países relativamente atrasados na superação do servilismo medieval, como Alemanha e Itália.

           Um caso à parte é o do Japão. Apesar de desenvolvido e industrial, e dotado de uma população de alto nível educacional, o Japão mantinha, até o final da Segunda Guerra Mundial, uma estrutura fundiária semelhante à do feudalismo europeu. Parte dos esforços de reconstrução do país, com recursos e programas fornecidos pelos americanos, vencedores do conflito, foi dedicada à reforma agrária. Uma lei japonesa, aprovada em 1946, estabeleceu a fórmula de venda financiada das terras aos camponeses que as ocupavam até então como servos ou parceiros.

           Esses são rápidos exemplos, Senhor Presidente, que visam a ilustrar a importância da reforma agrária para o deslanchamento do progresso das nações. Pediria agora a atenção de meus nobres Pares para alguns exemplos bem sucedidos de projetos de assentamento realizados em meu Estado do Mato Grosso. Nesses quatro casos que lhes trago ao conhecimento, Senhores Senadores, os resultados socioeconômicos propiciados por simples assentamentos de pequenos agricultores são mais eloqüentes que muitos discursos. Em todos esses casos a produção foi tão grande, a riqueza gerada tão significativa, que de assentamentos passaram a municípios, e dos mais prósperos do Estado.

           Lucas do Rio Verde, onde cerca de mil e quatrocentas famílias gaúchas, provenientes de Ronda Alta, foram assentadas em 1981, tornou-se município em 1988, decorridos apenas sete anos. Seu destaque é a produção de soja, com o rendimento recordista de dois mil e setecentos quilogramas por hectare.

           Guarantã do Norte, estabelecido igualmente em 1981 com cerca de três mil e quinhentas famílias, tornou-se município ainda mais cedo, em 1986. Seu destaque atual é o algodão, que rende novecentos quilogramas por hectare. Mas o município está prestes a despontar, nos próximos anos, na criação de bovinos, de que já conta com um rebanho significativo.

           Terra Nova do Norte é outro município proveniente de um assentamento de famílias gaúchas. Ali foram oitocentas e setenta, oriundas de Nonaí, que hoje são responsáveis por uma notável produção de milho e de arroz, que rende, respectivamente, mil e quinhentos e mil e quatrocentos quilogramas por hectare.

           Nova Canaã do Norte resultou de um projeto do INCRA, implementado em 1972 para resolver uma situação de conflito por terras envolvendo mais de três mil e quinhentas famílias de camponeses. Desde 1986 é município, cuja produção principal é de café, que rende oitocentos quilogramas por hectare, seguido do milho e do algodão.

           São apenas quatro exemplos mato-grossenses de sucesso de projetos de reforma agrária. Por todo o Brasil, o INCRA já contabiliza trinta e seis municípios criados a partir de primitivos assentamentos de colonos. A produtividade exibida nesses projetos de ocupação agrária é o melhor desmentido da tese de que somente a grande propriedade rural possibilita a economia de escala necessária à obtenção de altos índices de volume colhido por área plantada.

           Um argumento freqüentemente citado contra a reforma agrária é aquele segundo o qual os colonos beneficiados com seu assentamento em áreas de redistribuição de terras, muitas vezes, incapazes de obter rendimento significativo de sua produção, terminam por revender seus lotes a grandes proprietários, o que faria com que a situação revertesse ao quadro anterior à reforma. Sabemos contudo, Senhor Presidente, que isso somente acontece se o Governo se limita, em sua política de reforma agrária, à entrega das terras, deixando em seguida desassistidos os colonos, sem lhes propiciar crédito para plantar, assistência técnica para melhorar seu rendimento nem as vias de transporte para o escoamento de sua produção.

           Por tudo isso, gostaria de chamar a atenção dos Senhores Senadores para a necessidade do fortalecimento do Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária _ PROCERA. Instituído pelo Conselho Monetário Nacional há dez anos, o PROCERA tem por objetivo a assistência creditícia a agricultores beneficiados com a política de reforma agrária, por meio do financiamento dos projetos visando à estruturação da capacidade produtiva dos colonos em áreas de assentamento aprovadas pelo INCRA. Desse modo, busca-se promover o máximo rendimento econômico desses pequenos agricultores que, sem auxílio, poderiam vir a se desfazer de suas terras.

           O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária é o executor do programa, a ele cabendo a consecução dos meios necessários ao atingimento das metas do PROCERA. O Banco do Brasil, por seu lado, é o agente financeiro e aplicador dos recursos do fundo criado para a realização do PROCERA.

           A partir de 1992, uma linha especial de crédito foi instituída por portaria interministerial, determinando normas unificadas para aplicação do PROCERA, bem como a destinação ao programa de dez por cento dos recursos dos fundos constitucionais. Desse modo, um volume maior de recursos passou a estar disponível para o financiamento de parceleiros assentados nos projetos de assentamento do INCRA.

           Uma das linhas mais importantes da atuação do PROCERA, Senhores Senadores, é a da integralização de cotas de capital de cooperativas de assentados, de modo a promover a integração dos colonos pelo cooperativismo, na certeza de que, unidos, eles terão melhores condições de se desenvolver, aprimorando a qualidade de sua produção e reduzindo os custos de sua comercialização.

           Em 1984, o Mato Grosso foi o segundo Estado da Federação em valor investido pela União pela via do PROCERA, precedido unicamente do Mato Grosso do Sul. Foram assentadas, em meu Estado, mais de doze mil famílias, que receberam do programa recursos num total de mais de sete milhões de reais, numa média de cerca de quinhentos e oitenta reais por família.

           Para este ano de 1995, os recursos previstos para aplicação montam a trinta e oito milhões de reais de recursos do INCRA, dos quais dez milhões serão dirigidos à região Norte e vinte e oito milhões às regiões Sudeste e Sul, mais cento e vinte milhões de reais de recursos provenientes dos fundos constitucionais, dos quais setenta e dois milhões serão dirigidos à região Nordeste, vinte e quatro milhões à região Norte e outros vinte e quatro milhões à nossa região Centro-Oeste.

           O significado econômico do PROCERA, Senhores Senadores, já foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação _ FAO que, em estudo sobre os assentamentos do INCRA, revela que a renda média das famílias de colonos é de dois vírgula sete salários míninos mensais, dado que se mostra mais significativo quando se sabe que tantas famílias em áreas rurais e urbanas têm conseguido _ sabe-se lá como _ sobreviver com muito menos.

           Outro resultado ainda mais demonstrativo do sucesso do plano vem do próprio Banco do Brasil. Trata-se da taxa média de inadimplência dos beneficiados, que se têm mantido abaixo de um por cento. Ora, Senhores Senadores, qualquer banco, em qualquer lugar do mundo gostaria de ter uma fração de devedores duvidosos como essa. Ninguém pode duvidar, portanto, da viabilidade da reforma agrária quando se garante aos colonos a devida assistência técnica e financeira.

           Resta, Senhor Presidente, destacar mais um aspecto da reforma agrária que deve servir para convencer os mais céticos quanto à efetividade das medidas que visam a uma justiça maior na distribuição da terra em nosso País. Um informe do doutor Marcelo Aguiar, Chefe do Departamento de Articulação e Integração Institucional da Diretoria de Assentamento do INCRA nos alerta para o fato de que, hoje em dia, reforma agrária é assunto a que se pode dar um tratamento técnico sofisticado e maximizador de resultados.

           Com efeito, as técnicas modernas de cartografia, aliadas ao uso de dados obtidos por satélite e processados por computadores de última geração, permitem aos órgãos governamentais dedicados à promoção da reforma agrária o conhecimento preciso das características geológicas, topográficas e de recursos hídricos de cada área considerada para assentamento. Desse modo, é possível saber-se preliminarmente quais as melhores culturas a serem desenvolvidas em cada área, quais as medidas necessárias para a correção dos solos, e quais as recomendações que precisam ser feitas aos colonos para obterem o máximo rendimento de suas terras.

           Não há, portanto, porque recuar de posições tão longamente defendidas. Tenho a meu lado a história econômica do mundo, a experiência bem sucedida de assentamentos no Brasil e, agora, a eficácia propiciada pela técnica moderna. O fato de que nosso País ainda apresente milhões de pessoas famintas e sem trabalho, quando a reforma agrária oferece tanta potencialidade, é uma vergonha. Nunca seremos um país competitivo no mercado globalizado se continuarmos a excluir tanta força de trabalho de nossa economia formal. A reforma agrária é, estou seguro, um dos caminhos mais garantidos para a retomada do desenvolvimento, com a promoção simultânea da justiça social.

           Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 31/08/1995 - Página 14874