Discurso no Senado Federal

CRITICAS AO PARECER DO SENHOR FERNANDO BEZERRA SOBRE O PROJETO DE LEI DE PATENTES.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PROPRIEDADE INDUSTRIAL.:
  • CRITICAS AO PARECER DO SENHOR FERNANDO BEZERRA SOBRE O PROJETO DE LEI DE PATENTES.
Aparteantes
Marina Silva, Romero Jucá.
Publicação
Publicação no DCN2 de 31/08/1995 - Página 14870
Assunto
Outros > PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
Indexação
  • CRITICA, PARECER, AUTORIA, FERNANDO BEZERRA, SENADOR, RELATOR, PROJETO DE LEI, REGULAMENTAÇÃO, PROPRIEDADE INDUSTRIAL, APRESENTAÇÃO, SUBSTITUTIVO, AUTORIZAÇÃO, PATENTE DE INVENÇÃO, ANIMAL, VEGETAIS.
  • DEFESA, INDEPENDENCIA, AUTONOMIA, CONGRESSO NACIONAL, VOTAÇÃO, LEGISLAÇÃO, PROPRIEDADE INDUSTRIAL, AUSENCIA, ACEITAÇÃO, IMPOSIÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, GARANTIA, INTERESSE NACIONAL.

A SRª. BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Como Líder. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, costumo falar de improviso porque penso ser melhor para o comportamento que tenho em tribuna. No entanto, hoje não o farei porque o assunto é de tal ordem importante e sério que não quero perder sequer o que imagino e penso com relação à decisão que foi tomada pelo Relator dessa matéria, pois o improviso iria prejudicar consideravelmente o que tenho a expor.

Vou tentar ser sucinta na minha leitura, até porque acredito que esta Casa já se tenha inteirado dessa situação, mas não poderíamos deixar passar no dia de hoje a matéria conhecida como Lei de Patentes da qual tivemos conhecimento hoje do parecer do Senador Fernando Bezerra.

Quanto vale a vida? Poderia alguém proclamar-se detentor de algum direito sobre qualquer forma de vida existente, ou que venha a existir na terra? Estas são algumas das questões que nos têm preocupado ao longo das discussões que estão se dando em torno da lei de patentes. Se para alguns parece absurdo tais questionamentos, demonstra apenas que a ética que se constrói a partir do raciocínio meramente mercantil das relações entre pessoas e povos pode estar passando por cima dos conceitos mais elementares da existência humana. Houve um tempo no Brasil quando se pensava que a vida de alguns poderia ser vendida, trocada ou leiloada em praças para servir àqueles que controlavam a produção e os negócios. A ética econômica justificava plenamente a escravidão e a sua eliminação foi postergada devido a necessidades econômicas.

Agora não temos mais a escravidão, pelo menos oficialmente, mas a ética dos negócios continua querendo fazer-nos crer que a vida, seja ela de pessoas, plantas ou animais, pode ter um dono, um senhor de engenho moderno. É certo que o acordo do GATT determina o patenteamento de microorganismos. Como signatários do acordo, não poderíamos deixar de contemplar esta nova realidade na legislação que estamos discutindo. Mas o próprio acordo assinado demonstra a complexidade desta questão, pois se absteve de dar uma definição definitiva para o patenteamento de microorganismos, incluindo uma cláusula que impõe a revisão da matéria daqui a quatro anos. Concedeu, ainda, 5 anos de prazo para que os países adequassem suas leis nacionais ao patenteamento de microorganismos, mas o Governo brasileiro empenhou todos os esforços para reduzir o prazo de transição para apenas um ano, a partir da aprovação da lei. Procuramos, na Comissão de Constituição e Justiça, conceituar com a maior precisão possível os microorganismos, para não permitir o patenteamento de plantas e animais, mas o Governo interferiu decisivamente no sentido de manter a questão em preocupante indefinição.

Tivemos conhecimento hoje do parecer do Senador Fernando Bezerra, que apresentou um substitutivo cujo teor representa um retrocesso marcante não só com relação ao acordo que o próprio Governo assumiu com o relator do projeto na CCJ, Senador Ney Suassuna, mas com relação até ao acordo obtido depois de anos de discussão na Câmara dos Deputados. Se, relativamente a este tínhamos críticas, pois deixava brechas que poderiam vir a ser aproveitadas para o patenteamento de plantas e animais, o substitutivo do Senador Fernando Bezerra elimina qualquer dúvida que poderia existir quanto a essa possibilidade. A começar pela redação dada ao inciso IX do § 10º, que não considera invenção "o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos, tal como encontrados na natureza".

Ao retirar a referência ao genoma, que nada mais é do que a soma dos nossos genes, permite o patenteamento de qualquer gene, inclusive o humano, desde que não esteja tal como encontrado na natureza.

Qualquer alteração que se faça em uma parte de um ser vivo, por exemplo, na codificação genética bovina, poderá ser objeto de patente. Como a engenharia genética se desenvolve a passos largos, a partir desta parte alterada e patenteada, pode-se gerar o todo, ou seja, a vida.

Este simples exemplo não pretende esgotar um assunto tão complexo como este, mas tem o objetivo de chamar atenção para a importância da decisão que estamos prestes a tomar. Nesta questão não pode haver governo ou oposição, pois as implicações éticas, morais, econômicas ou jurídicas transcendem os nossos compromissos imediatos.

O SR. ROMEU TUMA - E religiosas, Senadora Benedita da Silva.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Religiosas, também, como lembra o Senador Romeu Tuma.

Por que não nos utilizamos das salvaguardas introduzidas no GATT, negociadas durante anos entre mais de 160 países? Por que estamos recebendo ameaças de retaliação se não o fizermos? Explica-nos o Ministro das Relações Exteriores, Sr. Luiz Felipe Lampreia. Mas retaliações contra o que, se estaríamos cumprindo com todas as exigências do acordo internacional que regula a propriedade industrial?

A única resposta que encontro é a retaliação pela nossa insistência em defendermos os interesses do País.

Temos exemplos marcantes que podem sugerir alternativas que não a simples aceitação de imposições descabidas. O Congresso argentino aprovou a sua lei de patentes concedendo um prazo de transição de oito anos para entrada em vigor dos direitos patentários sobre produtos e processos até então não aceitos. Chegou mesmo a exercer, com toda a plenitude, sua independência ao derrubar o veto do Presidente da República a esta decisão.

O Parlamento indiano deu demonstração de alta relevância ao mundo quanto à reciprocidade, e não à ameaça, que deve reger as relações internacionais entre povos autônomos. Em sua lei de patentes, introduziu cláusula que determina que as patentes a microorganismos passem a vigorar quando os Estados Unidos ratificarem a convenção de biodiversidade, prevendo o pagamento de royalties a transferência de tecnologia pelo uso da biodiversidade existente nos territórios do país de origem dos recursos genéticos.

Este é o convite que faço: que reflitamos e que votemos esta matéria com independência e autonomia, aprovando aquilo que considerarmos mais adequado ao País e não aquilo que tentam nos impingir.

O Sr. Romero Jucá - V. Exª me concede um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Com muito prazer.

O Sr. Romero Jucá - Senadora Benedita da Silva, V. Exª traz à baila, hoje, uma questão extremamente complexa. Quero também aqui externar a minha preocupação quanto à rapidez e contra as pressões que estão surgindo para que o Congresso brasileiro vote rapidamente essa questão. Sem dúvida nenhuma, esse é um tema que merece e precisa, em nome do País, ser debatido exaustivamente, no sentido de que vençamos não só todos os prazos, mas que tenhamos defendido a nossa legislação, os mecanismos necessários para que, amanhã ou depois, não se tenham dado passos em relação aos quais não se possa mais voltar atrás. Sem dúvida nenhuma, essa é uma questão seriíssima. Desse modo, deixo, nas minhas palavras, também a posição de que temos que realmente abrir os olhos do Congresso, abrir os olhos do Senado e lutar para que esse tema seja mais debatido e não aprovado a toque de caixa, porque representa uma questão extremamente complexa para o futuro da Nação brasileira. Quero parabenizar V. Exª pelas colocações e dizer que faço minhas também as palavras de V. Exª, no sentido de que possamos debater melhor, com mais prazo, vencendo todas as carências necessárias para que, a nível internacional inclusive, essa questão possa ser melhor esclarecida e para que as legislações internacionais inclusive se complementem, esclareçam-se no sentido de que tenhamos uma lei pertinente no futuro e que defenda os interesses brasileiros. Meus parabéns pela sua fala.

A SRª. BENEDITA DA SILVA - Agradeço a V. Exª pelo aparte. Alguns Senadores têm discorrido sobre este assunto, nesta Casa, com mais veemência e mais conhecimento do que eu. Mas, tenho a vontade e o meu Partido, também, de dar uma contribuição para esse debate. Não podemos deixar de nos manifestar, não só por conta da pressão que estamos sofrendo em relação a essa questão, mas pelo papel que devemos exercer neste momento. Não é uma decisão qualquer de trocas de sapatos, quem irá vender mais, importar ou exportar esse produto. Estamos falando de vida num País onde existe a fome, a miséria e onde se fazem necessárias a pesquisa de tecnologia avançada.

Se temos esse instrumento dado a nós naturalmente, como podemos abrir mão dele? Não! Temos que esgotar, como muito bem disse V. Exª, todas as argumentações, possibilidades e entendimentos, para, depois, tomarmos o caminho correto.

A Sra. Marina Silva - Permite V. Exª um aparte?

A SRA. BENEDITA DA SILVA - Com prazer ouço V. Exª.

A Sra. Marina Silva - Parabenizo V. Exª pela iniciativa de tratar de um tema dessa magnitude. O que V. Exª está denunciando diz respeito à covardia assumida, muitas vezes, em detrimento dos interesses nacionais, frente às exigências de países estrangeiros e, mais particularmente, de países como os Estados Unidos. Esse fato evidencia a síndrome que temos de sermos mais reais do que o rei, porque o Governo brasileiro está extrapolando suas atitudes em relação às exigências do GATT, está cedendo às pressões dos Estados Unidos, e, portanto, sendo mais real do que o rei. Nos demais países, essas exigências não foram cumpridas ou, pelo menos, não foram aceitas. No caso do Senado - e aqui quero fazer justiça ao Senador Ney Suassuna que tem tentado altivamente colaborar de uma forma diferente -, o atual relator tem a síndrome de ser mais real do que o rei, porque pretende ser mais real do que o Presidente da República, avançando em questões que nem o Governo havia colocado no projeto. Então, não sei por que se tem essa sede tão grande de subserviência ou de mostrar serviço para os interesses alheios aos da sociedade brasileira, particularmente, dos setores ligados à ciência e à tecnologia. Desejo, aqui, referir-me ao conhecimento tradicional adquirido pelas populações, esse conhecimento secular e, às vezes, milenar que é adquirido na relação empírica com a natureza, com o mundo, por índios, por extrativistas, por observadores, que não é incorporado a essa Lei de Patentes. Essa é, também, uma forma de burlar esse processo de conhecimento, porque se um pesquisador fosse partir da estaca zero para detectar que o chá de quebra-pedra faz bem para os rins, com certeza, iria levar anos e anos de pesquisa, investindo milhões e milhões de dólares ou de reais. Secularmente, as populações tradicionais já fizeram essa descoberta, no entanto, elas não estão protegidas no que se refere a seu conhecimento. Então, uma lei de patentes, com os defeitos que V. Exª está elencando, mais esses que estou evidenciando, não deve ser aprovada por esta Casa. Chegou a hora de não sermos mais reais do que o rei e levantarmos a cabeça e encararmos de frente a defesa da soberania do nosso País. Muito obrigada.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Abrimos mão dos prazos de transição concedidos pelo GATT, mas não é suficiente. A poderosa indústria farmacêutica americana pressiona ainda para que reconheçamos patentes que já caíram em domínio público e que, portanto, não apresentam a característica mais importante de uma invenção - a novidade. O pipeline não mais é do que a negação do princípio da não-retroatividade das leis. O GATT também não impõe a adoção desse instrumento, mas devemos aprová-lo - argumentam - para que não sejam penalizados pelo nosso exercício de soberania.

O recém-eleito presidente da Confederação Nacional da Indústria e Relator do Projeto de Patentes, Senador Fernando Bezerra, tem sobre si uma grande responsabilidade que tememos não tenha ainda percebido. Votaremos contra seu substitutivo e, se não obtivermos êxito, apresentaremos diversas emendas a ele, procurando colocar uma posição clara daquilo que acreditamos ser a única possível e que não é só nossa, mas também de vários outros Senadores, independentemente de partidos e do País: contra o patenteamento da vida. Estamos certos que muitos outros ainda irão contribuir para chegarmos a isto.

Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 31/08/1995 - Página 14870