Discurso no Senado Federal

AS AMBIGUIDADES DAS DECISÕES ECONOMICAS DO ATUAL GOVERNO. HOMENAGENS A MEMORIA DO PENSADOR FLORESTAN FERNANDES.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • AS AMBIGUIDADES DAS DECISÕES ECONOMICAS DO ATUAL GOVERNO. HOMENAGENS A MEMORIA DO PENSADOR FLORESTAN FERNANDES.
Aparteantes
Marina Silva.
Publicação
Publicação no DCN2 de 02/09/1995 - Página 15077
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, DUALISMO, GOVERNO, PROVOCAÇÃO, CRISE, PAIS.
  • HOMENAGEM POSTUMA, FLORESTAN FERNANDES, PROFESSOR, SOCIOLOGO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP).

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, são tantos os assuntos que nos obrigam a trazer a nossa colaboração a esta tribuna! E é tão angusto, estreito e angustiante o tempo que podemos utilizar, como Senadores de terceira categoria! Temos que ter a paciência de esperar que os Senadores de primeira categoria usem e abusem desta tribuna. Os Líderes têm suas prioridades; a cada momento os oradores inscritos são postergados por comunicações urgentes, inadiáveis, que não têm nada de urgentes e nada de inadiáveis. E nós vamos ficando para depois, para uma sexta-feira, para um final de sessão.

Pois bem, deveríamos, obrigatoriamente, nos ater aos grandes problemas que avassalam a sociedade brasileira e que conturbam a conjuntura mundial. Deveríamos mostrar como a dúvida, a ambivalência, a ambigüidade, a dualidade e a imprecisão constituem as principais características do Governo atual, que aponta uma hora para a elevação da taxa de juros e outra hora para a sua queda; uma hora para o aumento das exportações e outra hora para o privilégio das importações necessárias para fazer o falso, o limitado combate à inflação, à alta de preços. Uma hora o Governo quer o equilíbrio orçamentário e, no momento seguinte, quer uma reforma tributária para aumentar a sua receita. Os Estados devem mais de US$100 bilhões; os devedores privados, as famílias dos consumidores, consumidos, muitos deles desesperados, suicidando-se, devido às dívidas impagáveis a que foram levados pelo consumismo de uma sociedade que teve o seu impulso consumista frustrado pela elevação da taxa de juros e pela restrição ao crédito de modo geral.

Tantas coisas deveríamos abordar, e, principalmente, deveríamos perguntar ao Governo Federal: qual é o elo condutor, qual é o fio que liga todas essas medidas tão vacilantes, tão opostas? Qual é o fio condutor, qual é o diagnóstico fundamental que os nossos dirigentes têm para a crise brasileira, para a crise da saúde, a crise da educação, a crise do desemprego, a crise financeira, a crise das grandes empresas, como a Mesbla, como as Casas Pernambucanas, como as Casas Centro, para a crise das grandes empreiteiras, da Mendes Júnior, que se encontra ameaçada devido às restrições dos gastos do Governo, que atingem os seus fornecedores e as empreiteiras que têm nele, no Governo falido, no Governo equilibrista, no Governo ausente o seu principal comprador? Mas não vamos hoje tocar nesses assuntos conjunturais, porque um dever maior nos obriga a usar este momento, já com muito atraso, para falarmos daquilo que, do ponto de vista individual, é para mim o principal.

Quero falar hoje de Florestan Fernandes. Quero falar hoje do grande mestre que eu conheci nos anos 60. Quero falar hoje daquela criança, filha de uma imigrante portuguesa, que foi obrigada a conhecer a realidade fundamental e básica da nossa sociedade, que trabalhou desde cedo, mas nem por isso se tornou uma criança marginalizada - ao contrário. Florestan exerceu a função de padeiro, exerceu funções hoje consideradas subalternas, posto que trabalhava com as mãos para sustentar a sua vida. Mas nem por isso se revoltou contra as condições que o excluíam do acesso ao ensino, do acesso à saúde, do acesso à vida. Nem por isso ele se revoltou. Esse terreno seco e duro de sua infância serviu para que as raízes de sua sabedoria se fincassem com mais vigor e que a árvore de sua integridade se elevasse acima da floresta.

Florestan Fernandes, nos anos 40, já traduzia uma das principais obras de Karl Marx, na Editora Flama, onde se reuniam autodidatas, onde se reuniam pessoas que procuravam transferir um pouco de sua luz para aqueles que se encontravam igualmente ávidos de esclarecimento, ávidos de clareza. E se constituiu, em torno da Editora Flama, um grupo importante, que iria crescer e influenciar as gerações futuras.

Florestan Fernandes trouxe, ao longo da vida, a tranqüilidade de um trotskista, de um trotskista seguro de que a experiência iniciada na União Soviética, em 1917, não tinha futuro. Florestan sabia que uma tecnoburocracia militar, muito assemelhada ao complexo industrial-militar a que se referiu Eisenhower, como contrapólo do complexo industrial norte-americano, formada para defender a União Soviética dos vinte e sete ataques sofridos e da própria revolução interna, que aqueles desvios fundamentais iriam impedir que um socialismo democrático, um socialismo humano, um socialismo semelhante ao próprio Florestan, ao seu humanismo, à sua grandeza pudesse realmente se constituir.

Impregnada da tecnologia capitalista, que lá foi produzir carros, que lá foi produzir objetos de consumo individual, que para lá levou o mercado capitalista, seria óbvio que uma distribuição desigual e injusta de renda se formasse na União Soviética também. Contra isso Florestan Fernandes lançou as suas críticas bem-fundamentadas.

Talvez Florestan Fernandes estivesse muito próximo de perceber que o mercado capitalista não tem nada a ver, por exemplo, com a distribuição do produto na cultura tupinambá, à qual ele dedicou anos de sua vida, promovendo a mais notável reconstrução de uma civilização, a civilização tupinambá, em seu livro intitulado A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.

Há cerca de quatro anos, o Governador Cristovam Buarque entrevistou na Europa o economista Celso Furtado e foi ao Chile entrevistar alguns corifeus da CEPAL procurando testemunhos sobre os anos 50 e 60. E não sei por que incluiu o meu modesto nome entre aquelas cinco pessoas que ele pretendia entrevistar, a fim de publicar a nossa opinião a respeito daquele momento da vida brasileira. Cristovam Buarque perguntou-me: "Lauro, quem você acha que dessa geração vai sobreviver, vai ficar para a História?" Respondi: "Todos nós estaremos mortos. Nenhum de nós merece a imortalidade. Só Florestan Fernandes".

Na primeira semana em que entrei aqui nesta Casa, pedi que me fosse trazida uma parte substancial dos 56 livros publicados pelo trabalho incansável de Florestan Fernandes.

A Srª Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte, nobre Senador Lauro Campos?

O SR. LAURO CAMPOS - Com prazer, ouço o aparte da nobre Senadora Marina Silva.

A Srª Marina Silva - V. Exª com o seu discurso me faz lembrar uma frase que li numa certa época de um escritor americano, parece-me. Ele fazia alusão exatamente a isso que V. Exª está dizendo. Dizia o escritor americano que livros não são livros, são como cérebros mumificados. O Professor Florestan Fernandes deixou o seu cérebro mumificado em uma grande obra que o fará imortal. Parabenizo V. Exª por este discurso à memória do Professor Florestan Fernandes. Como professora de História - e estudante de história que fui - tenho sempre tomado como referência o que escreveu o Professor Florestan Fernandes. E, com certeza, boa parte da utopia que tenho na defesa dos princípios da justiça, da liberdade, da solidariedade tem uma contribuição no que aprendi, no pouco que entendi da obra do Professor Florestan Fernandes. Muito obrigado.

O SR. LAURO CAMPOS - Agradeço à Senadora Marina Silva a generosa contribuição ao meu modesto pronunciamento e gostaria de dizer a V. Exª que são os olhos, a curiosidade e a inteligência dos leitores que despertam as múmias dos livros para a atividade humana atual.

Assim continuava Florestan Fernandes a sua vida, lutando para, dentro da sua pobreza, construir a riqueza verdadeira, não a riqueza material que ele sempre desprezou mas a riqueza do espírito, da inteligência em que ele investiu todas as suas horas, todo o seu sacrifício, todos os seus recursos. Poderá haver por acaso no mundo investimento mais eficiente nesta matéria-prima privilegiada que é o cérebro humano? E foi nela que Florestan Fernandes sempre investiu, preservando a sua pobreza material. Ele fez a opção pela simplicidade, pela pobreza e pela inteligência.

Por isso, Florestan Fernandes transformou-se em professor catedrático da Faculdade de Sociologia, Ciências e Letras de São Paulo e pôde lá enriquecer a sua consciência através de novos contactos com pesquisadores estrangeiros, com os quais inclusive escreveu em parceria algumas obras.

Florestan Fernandes introduziu, nas Ciências Sociais e na Sociologia no Brasil, um método diferente daquele que havíamos herdado da França, um método que exigia que o professor abandonasse a cátedra em busca do campo, da pesquisa de campo, dos dados que ele pessoalmente foi tantas vezes buscar e que a cada momento recordavam a ele a sua "estração" social. Entre os pobres, entre os negros, entre os marginalizados, foi aí que Florestan Fernandes continuou a colocar a serviço dessas classes mais oprimidas e mais excluídas o poder de sua inteligência.

No final, recebeu, como também o Senador João Calmon e poucos outros brasileiros, a mais alta condecoração que é dada, no domínio da Educação, a um brasileiro vivo.

Florestan Fernandes deu um passo também para fora da cátedra, a fim de transformar seus conhecimentos e democratizá-los no processo político em que se engajou.

A Srª Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte, nobre Senador Lauro Campos?

O SR. LAURO CAMPOS - Pois não, Senadora, com prazer.

A Srª Marina Silva - O que V. Exª aborda me faz lembrar as minhas primeiras aulas de Sociologia. Tratando de algumas escolas, no que se refere a essa matéria, fazia-se alusão ao pensamento idealista, ao pensamento positivista. O Professor Florestan Fernandes conseguiu criar, no Brasil, uma escola, fazendo um corte epistemológico na tradição do pensamento positivista, que atribuía ao cientista social a pretensão de querer fazer um cientista das ciências da natureza, dizendo que era possível uma neutralidade axiológica no processo de conhecimento e que o cientista social, o historiador, o sociólogo, o antropólogo deveria sair da realidade e analisá-la tal como um objeto, meramente objeto de pesquisa. O Professor Florestan Fernandes negou essa imposição do pensamento positivista e conseguiu fazer algo superior ao pensamento idealista de que, na verdade, é impossível se chegar a alguma conclusão, no processo de objetividade, na construção do conhecimento e ousou compatibilizar as duas coisas. A neutralidade do cientista que aborda os problemas sociais, o idealismo de quem acha que a história, ainda, não está completamente acabada mas, acima de tudo, o compromisso de quem quer construir a história no seu presente. Então, fico pensando no que V. Exª está dizendo e na capacidade e na ousadia daqueles brasileiros que ousaram e que foram capazes de construir a nossa Escola de Sociologia. Muito obrigada.

O SR. LAURO CAMPOS - Nobre Senadora, agradeço o aparte enriquecedor de V. Exª.

O SR. PRESIDENTE (Jefferson Péres) - Nobre Senador Lauro Campos, embora o tempo de V. Exª já esteja esgotado, V. Exª, como último orador, a Mesa será benevolente mas lembra a V. Exª para que abrevie o seu discurso.

O SR. LAURO CAMPOS - Sr. Presidente, devido, realmente, a este tempo angusto e angustiante, eu não pude me deter nas correntes francesas, inspiradas em Augusto Comte e seus discípulos e nem tampouco naquela vertente norte-americana, empiricista, com a qual, inclusive, Florestan Fernandes conviveu em São Paulo.

Neste pequeno resumo não posso, realmente, ser perfeitamente esclarecedor e a sua contribuição foi muito valiosa. Como o tempo está praticamente terminado, percebo que não posso falar da obra de Florestan Fernandes como gostaria mas Florestan Fernandes foi um exemplo maior não apenas na sua vida mas, também, na sua morte. Florestan Fernandes, com a sua morte, afirmou e reafirmou que a coerência humana é a virtude basilar e fundamental. Ele foi fiel às suas origens, ao seu diagnóstico da sociedade brasileira e aos excluídos até na sua morte, quando o seu ex-aluno, que tanto se desviou daquela fonte original, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, ofereceu-lhe a salvação, em um hospital dos Estados Unidos, da hepatite que havia adquirido devido a uma transfusão de sangue, contaminado no Brasil.

Foi a saúde pública brasileira que começou a matar Florestan Fernandes, a mesma à qual ele se dedicou tanto, procurando salvar e redimir.

Florestan Fernandes morreu a morte de Sócrates. A Sócrates também foi oferecida a chave para que ele fugisse de Atenas, mas ele disse: "Prefiro morrer ateniense do que ser bárbaro".

Se Florestan Fernandes tivesse aceitado a chave da vida, se tivesse aceitado esse privilégio, talvez perdesse a sua coerência. Preferiu, como homem comum, enfrentar o que sabia ser altamente perigoso: o nosso sistema de saúde. E foi lá, no hospital, que de novo um erro médico o castigou e, dessa vez, de forma fatal.

Florestan Fernandes, tal como Sócrates, fez em certo momento uma opção: entre uma vida privilegiada e uma morte digna, coerente, uma morte irmanada com tantos irmãos nossos, preferiu a coerência. Ele é, no fim da sua vida e como exemplo de sua morte, o grande herói da coerência, nessa sociedade de incoerências, de mentiras, dualidades e desrespeito à vida.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 02/09/1995 - Página 15077