Discurso no Senado Federal

FELICITANDO O PRESIDENTE DA REPUBLICA POR TER ASSUMIDO A DIVIDA DO ESTADO PARA COM OS DESAPARECIDOS DURANTE O REGIME MILITAR.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • FELICITANDO O PRESIDENTE DA REPUBLICA POR TER ASSUMIDO A DIVIDA DO ESTADO PARA COM OS DESAPARECIDOS DURANTE O REGIME MILITAR.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DCN2 de 01/09/1995 - Página 14927
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • CONGRATULAÇÕES, PRESIDENTE DA REPUBLICA, IMPUTAÇÃO, ESTADO, CULPA, OCORRENCIA, DESAPARECIMENTO, TORTURA, HOMICIDIO, VITIMA, REPRESSÃO, NATUREZA POLITICA, EPOCA, REGIME MILITAR.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB- RS. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nunca me esqueci de um pensamento chinês que aprendi em meu tempo de jovem. Eu o tenho repetido várias vezes: "O homem vive. Vivendo, o homem sofre. Sofrer faz o homem pensar. Pensar torna o homem sábio. Ser sábio ajuda o homem a viver".

Creio que, de 1964 até hoje, o Brasil sofreu e sofreu muito. Seria injusto se aqueles que, como eu, ficaram do lado dos derrotados dissessem que apenas nós sofremos.

Não sinto no Brasil - e o Brasil não tem essa tradição -, o que há em outros países, ou seja, as pessoas vibrarem com a prática do arbítrio, da tortura ou da violência. Creio que não. Como político, convivi com esse longo período que parecia eterno.

A nós, do Rio Grande do Sul, que estivemos na resistência o tempo inteiro, quantas e quantas vezes parecia que éramos uns Dom Quixotes ridículos e grotescos sem razão! Quantas vezes a caminhada se tornou complicada, quando foram para a guerrilha companheiros nossos; quando foram para a luta armada; quando participaram do voto em branco; quando defenderam a extinção do nosso partido, o MDB; quando buscaram a renúncia coletiva, acusando-nos de que estávamos no guichê do fim do mês, e a razão de continuarmos na política era o guichê do fim do mês.

Foram momentos difíceis aqueles. Mas creio que, do outro lado, deve ter sido assim também.

Falo todas essas coisas porque creio que estamos vivendo - e tenho obrigação de vir a esta tribuna - um momento importante na história deste País - quando o Presidente da República faz um pronunciamento e manda um projeto que define a posição de seu governo sobre essa matéria.

Felicito o Presidente da República. Essa é uma responsabilidade que ele tinha como vítima e sofredor de ontem - ele e os que com ele conviveram -, fruto da História e dos caminhos da vida. Presidente da República, com o ato da responsabilidade de dar a palavra necessária, que a Nação esperava com relação a essa matéria!

Senti orgulho do Presidente. Foi um gesto importante. Creio que não cabe, em relação a esse gesto, indagarmos o alcance, a quantidade, o que poderia ser. Sobre essa matéria jamais será conseguida a unanimidade. Ali, no olhar e no choro da hoje viúva do Deputado Paiva, vemos e entendemos que jamais se trará de volta o seu marido, jamais se haverá de tirar da sua retina o que foram as histórias, os acontecimentos da tortura e da violência que envolveram o seu marido. O problema é olhar para frente. Quem de nós não tem, ou porque foi torturado ou porque foi vítima, ou porque a vida assim fez, convivência com esse problema? 

Quantos pais choram porque perderam filhos, mas que, ao longo do tempo, aprenderam a conviver com o drama dessa falta? Não está aqui na reparação, na quantidade exata do que foi e do que se recebe; está aqui no gesto, o gesto importante e o gesto significativo. Quando Fernando Henrique Cardoso diz: "eu, como Presidente da República, assumo, em nome do Estado, que ele é culpado pela tortura", podemos dizer que esse é o grande gesto. 

Sr. Presidente, Srs. Senadores, não estamos a indagar, não estamos tentando reabrir a Lei da Anistia. Na época, eu era Senador. Debatemos, discutimos profundamente essa matéria. Teotonio Vilela, membro da Comissão, e eu percorremos juntos o Brasil inteiro para investigar os casos de tortura, os casos de violência, os casos de cárcere. Foram dias tristes aqueles, é verdade; foram momentos dramáticos, é verdade.

Lembro-me de quantos desaparecidos no Rio Grande do Sul, quantos torturados, quantas pessoas tivemos que levar para o lado de lá, no Uruguai e Argentina, na calada da noite. Casos que ficaram célebres como o do Sargento Manoel que, com as mãos amarradas, apareceu boiando no Rio Guaíba. Recebemos a informação de que estava no necrotério, na vala comum, para ser enterrado. Fui ao Rio de Janeiro, em uma favela onde estava a viúva. Levei-a a Porto Alegre, e ela identificou o cadáver. Em seguida, levamos o caso à imprensa, conseguimos abrir inquérito e criar uma CPI, que indicou até a condenação do chefe de polícia - época da ditadura e do arbítrio - pelo assassinato, nos porões do regime do arbítrio, do Sr. Sargento Manoel.

Época dramática, em que o ex-Deputado Mariano Beck, cassado, veio nos procurar na Assembléia para dizer que estava chegando, numa urna funerária, o corpo do filho do diretor da Faculdade de Engenharia do Rio Grande do Sul, que fora torturado em São Paulo. Entregaram o corpo, mas a urna não poderia ser aberta para a sua identificação. O corpo foi velado durante três horas, na Universidade, e deveria ser enterrado. Sabendo disso, procurei o diretor, seu pai: "Vamos abrir aqui e vamos mostrar o que está acontecendo." E o pai, com lágrimas nos olhos, chorando desesperadamente, disse: "Eu não quero. Esse meu filho já morreu. Tenho mais quatro para criar e nada trará meu filho de volta."

Essas coisas aconteceram, sim. Esses dramas se sucederam. Muitos resistiram e muitos lutaram, mas agora a mim parece que o ato do Presidente Fernando Henrique veio na medida exata. Querer saber as causas, reabrir os processos sinceramente - posso até entender - não me parece que seria uma boa medida. Reabrir para verificar as causas dos acontecimentos, o conteúdo de cada caso? Com toda a sinceridade, prefiro a Lei da Anistia.

O Governo reconhecer que foi o responsável pela morte, o Governo dar o atestado de óbito, o Governo reconhecer-se culpado, o Governo dar uma verba - não importa a quantia - a título de reparação parece-me que é o caminho. A família exigir, pedir e lutar para receber os restos mortais e o Governo tentar encontrá-los parece-me que também é o caminho.

Outro dia, eu dizia a um analista, no Congresso Nacional, que, de certa forma, a fatalidade, o destino tinha dado ao Dr. Ulysses o túmulo que ele merecia: o mar. Ele, que navegava e que dizia que o importante era navegar, tinha o mar como seu túmulo. E, certo tempo depois da morte do Dr. Ulysses, quando saiu a notícia de que lhe poderiam ter encontrado os ossos aqui ou lá, eu dizia que preferia que não os encontrassem. E o analista me disse: "Você pode pedir isso egoisticamente, como brasileiro, mas, como membro da família, você não pode fazê-lo, porque quando alguém desaparece, morre afogado ou quando não se encontra o corpo, a mãe, alguém fica sem saber se foi ou não enterrado, sem saber exatamente o que aconteceu". Trata-se de misticismo, de um ritual; se perdemos alguém, choramos no velório, colocamos o caixão no seu túmulo no cemitério, e aquilo parece fazer parte do ritual da continuação da vida. Mas enquanto isso não acontece ficamos sempre na expectativa do que pode ser. Entendo que as viúvas, as mães, os pais e os filhos queiram encontrar os restos mortais e, se possível, recebê-los, e acredito ser correto o Governo tentar encontrar e entregar.

Não critico, penso ser compreensível, Sr. Presidente, normal essa atitude dos pais. Talvez, se eu tivesse um filho ou um parente, também iria querer saber as causas e as condições em que aconteceu a morte. Mas para o País, para a Nação, para a hora e o momento que estamos vivendo, acredito que a decisão do Governo é correta. Que me perdoe o filho do Marighela e outras pessoas que pensam diferente. Respeito e não estou a criticá-los; estou apenas a dizer, com muita tranqüilidade e muito respeito, que o Presidente Fernando Henrique está certo.

Mando aqui o meu abraço ao José Gregori, que foi um homem de uma competência extraordinária, assessor do Ministério da Justiça; mando as minhas felicitações ao Ministro da Justiça, meu companheiro e amigo, Nelson Jobim, que coordenaram, com muita competência as atividades. O Gregori inclusive ouviu as famílias das vítimas, debateu, analisou, discutiu e aprofundou o estudo dessa matéria. Chegamos a ela com grandeza. É claro que há alguns militares - isso é normal - que estão fazendo algumas afirmativas; umas compreensíveis, outras exageradas. Um militar dizer, por exemplo, que pensa em queimar os arquivos do Exército, em Goiás, isso não é sério. Ele não pode fazer isso e sabe que não pode. E não há por que fazer isso, até porque os arquivos estão abertos e estão sendo investigados - e não me parece que nada de mais tenha ocorrido.

Ir para casa, renunciar a sete anos de ativa e se reformar merece respeito. É o cidadão que diverge. Acha que não é isso, pensa diferente, vai para casa. Renuncia, tem um ato de grandeza, merece respeito. Mas, Sr. Presidente, tenho que respeitar as autoridades militares, os Ministros da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, o conjunto das autoridades militares que estão vendo essa matéria com seriedade e com muita compreensão.

Não se está aqui a fazer uma divisão entre o Brasil militar e o Brasil civil. Não se está aqui a cobrar das Forças Armadas, até porque não foram as instituições, como tais, as responsáveis. Tivemos casos como o do Presidente Geisel, que, quando soube da tortura, agiu imediatamente destituindo, como foi o caso do Comandante do II Exército.

Aqui, não temos os ódios que houve no Chile e na Argentina. Não que aqui as pessoas tenham sofrido menos do que lá; não que não tenhamos tido menos mágoas do que lá. Mas o Brasil, com a sua maneira de ser, chegou a esse momento, da maior importância e significado, com respeito recíproco. Os torturados, os seus filhos, os partidos de esquerda, a Oposição, o Governo, os civis, os militares, toda a imprensa trazendo à baila essa questão delicada, difícil, porém colocando-a com o respeito, seriedade e serenidade que a causa merece.

Quero felicitar a grande imprensa, os srs. jornalistas, os partidos de Oposição, as famílias dos torturados, dos injustiçados, inclusive daqueles que não estão satisfeitos com a maneira tranqüila e serena e com a grandeza com que eles estão colocando essa questão. Quero louvar o gesto da viúva do Deputado Paiva apertando a mão do Chefe da Casa Militar, e o do Presidente Fernando Henrique, a reciprocidade daquele aperto de mão. Creio que seria muito difícil encontrarmos algo que exemplificasse mais a hora que estamos vivendo do que esta.

Não há dúvida, ali estava um general que nada tem a ver com a questão, mas representava a instituição e, como legítimo representante da instituição, dando um abraço na viúva de um grande homem, de um grande injustiçado nos caminhos da triste História que vivemos.

O Sr. Eduardo Suplicy - Permite-me V. Exª um aparte, Senador Pedro Simon?

O SR. PEDRO SIMON - Com o maior prazer, Excelência.

O Sr. Eduardo Suplicy - Em primeiro lugar, quero me associar ao cumprimento que V. Exª faz ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, ao Ministro da Justiça, Nelson Jobim, e aos esforços extraordinários, neste episódio, que o Chefe de Gabinete do Ministro da Justiça, José Gregori, desenvolveu para conseguir elaborar um projeto de lei relativamente à questão dos desaparecidos, que leva em conta grande parte das aspirações daqueles que querem o reconhecimento do que aconteceu. O próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso, chamado à sua condição de Chefe Supremo das Forças Armadas, admitiu que o Estado errou; e, ao reconhecer isso, vai promover as conseqüências desse erro: o reconhecimento daqueles que morreram, nas diversas circunstâncias, muitas vezes de torturas ou de outras formas. Com isso, Sua Excelência reconhece o lado daqueles que lutaram para que houvesse democracia e justiça neste País; pessoas que, por acreditar nessa luta, acabaram sofrendo as conseqüências do abuso de autoridade de um Estado. É importante que o Congresso Nacional reflita sobre a mensagem do Presidente e que possa, inclusive, levar em conta as aspirações das famílias dos desaparecidos, quem sabe aperfeiçoando o projeto. O Presidente da Comissão de Direitos Humanos, Nilmário Miranda (PT-MG), por exemplo, auscultando as famílias dos desaparecidos, está propondo, para exame do Congresso Nacional, duas emendas que parecem ser perfeitamente razoáveis. A primeira propondo "estender os benefícios do projeto a todos os ativistas políticos mortos em decorrência da ação de agentes a serviço do Estado". A segunda, propondo "que a apuração das circunstâncias das mortes dos ativistas políticos não envolva a identificação pessoal dos responsáveis." Obviamente, isso leva em conta uma das preocupações, seja dos militares ou da Polícia Militar, porque, afinal de contas, houve a anistia neste País para todos os lados, para todos os envolvidos nesse conflito. Dessa maneira se estaria levando em conta aspirações como as da Srª "Suzana Lisboa, 45, viúva de Luiz Eurico Tejera Lisboa, morto em 1972, e representante dos familiares na comissão que vai analisar novos casos de desaparecidos políticos no período militar (1964-85), disse que vai entrar com uma ação na Justiça se não for garantida a apuração das circunstâncias da morte de seu marido." Essa Comissão, composta de sete membros, sendo três escolhidos pelo Presidente da República, obviamente vai ter importante missão. V. Exª expressa, com propriedade, que o cumprimento do pleito da Srª Eunice Paiva, viúva do ex-Deputado Rubens Paiva, significa que, de fato, houve um avanço que merece ser reconhecido pelo Congresso Nacional.

O SR. PEDRO SIMON - Agradeço o aparte de V. Exª pelo seu importante conteúdo.

Vamos ver essas emendas. Com toda sinceridade, eu me preocupo com a maneira com que se vai investigar o que aconteceu. Porque isso significa que vão aparecer os nomes. Está certo, vou investigar, vou ver os fatos, vou ver como é que foi, mas o cidadão que participou teve anistia. Mas é reviver aqueles fatos, é reabri-los, mesmo que a gente diga que anistia existe; portanto, a anistia os acoberta; mesmo assim, é uma revisão dos fatos.

Com toda sinceridade, acho que existem algumas questões que não há como deixar de discutir. De repente, investigou o jornalista; há um laudo dizendo que ele se suicidou; a família tem o direito de mostrar que ele não se suicidou; que, na verdade, pelos tiros que ele recebeu pelas costas, mais de um, não havia razão para dizer que ele se suicidou. Aí concordo. Então, vamos verificar como se chegou a um laudo determinando que foi suicídio, sem que tenha sido suicídio. A família tem o direito de querer saber em que condições ele morreu: se foi suicídio ou assassinato. Aí concordo. Agora, reabrir, buscar os detalhes para saber como é que foi, onde foi e em que condições foi; se foi o coronel fulano, ou o tenente beltrano, se foi ali, se deu um tiro assim... Sai em todos os jornais. Com ele não acontece nada, porque ele tem a anistia; mas a reabertura das feridas, a volta do sangramento das cicatrizes, com toda sinceridade, não sei se esse é o caminho.

Mas estou aqui para debater. Não sou o dono da verdade. Quero discutir, e se me convencerem do contrário... Mas acho muito difícil me convencerem.

O Sr. Ramez Tebet - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. PEDRO SIMON - Ouço V. Exª.

O Sr. Ramez Tebet - Senador Pedro Simon, meu aparte não é para debater: é para dizer que cresce a minha admiração por V. Exª, que tem a sensibilidade de levantar, nesta Casa, o gesto de aplauso e de congratulações ao Presidente da República, ao Poder Executivo, representado não só pelo Presidente da República, mas coadjuvado pelo seu Ministro da Justiça, pelo ato de solidariedade humana, pelo ato de pacificação que encerra esse pleito de justiça das famílias dos desaparecidos, a quem todos estamos aludindo neste Plenário. É a oportunidade que tenho para cumprimentar V. Exª e de fazer chegar ao Senhor Presidente da República, através deste aparte, as minhas congratulações por esse ato de grandeza, que obedece à tradição histórica do Brasil, tradição de paz, de harmonia, de solidariedade e de fraternidade.

O SR. PEDRO SIMON - Muito obrigado. Quero dizer exatamente o mesmo de V. Exª.

Encerrando o meu pronunciamento, volto a felicitar o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Muito bem assessorado pelo Ministro da Justiça, meu conterrâneo Jobim, e por esse grande patriota que é o Gregori, Sua Excelência teve ação medida, exata, correta e profunda. O Fernando Henrique, que não vamos esquecer, foi atingido pela Revolução, foi expurgado, viveu no exílio; no entanto, quis Deus que Sua Excelência tivesse a felicidade de dar a volta e chegar à Presidência da República. E quis Deus que, uma vez na Presidência da República, tivesse condições de, com tanta grandeza, caminhando em cima de fio de arame - com o maior respeito às Forças Armadas, com o maior respeito ao conjunto da sociedade, sem aderir, sem apoiar A ou B - encontrar uma solução que nos permite dizer: estamos saindo desse capítulo com dignidade. Meu abraço muito respeitoso a Sua Excelência o Presidente Fernando Henrique Cardoso.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 01/09/1995 - Página 14927