Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA AUDIENCIA PUBLICA NA COMISSÃO DE ASSUNTOS ECONOMICOS PARA DEBATE SOBRE A 'LEI DE PATENTES'.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PROPRIEDADE INDUSTRIAL.:
  • CONSIDERAÇÕES ACERCA DA AUDIENCIA PUBLICA NA COMISSÃO DE ASSUNTOS ECONOMICOS PARA DEBATE SOBRE A 'LEI DE PATENTES'.
Aparteantes
José Ignácio Ferreira.
Publicação
Publicação no DCN2 de 14/09/1995 - Página 15773
Assunto
Outros > PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, REALIZAÇÃO, AUDIENCIA PUBLICA, COMISSÃO DE ASSUNTOS ECONOMICOS, PARTICIPAÇÃO, REPRESENTANTE, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUARIA DO BRASIL (CNA), ASSOCIAÇÃO DE CLASSE, TRABALHADOR, INDUSTRIA FARMACEUTICA, ENTIDADE, LIGAÇÃO, TRABALHADOR RURAL, DEBATE, PROJETO DE LEI, REGULAMENTAÇÃO, PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
  • CRITICA, PARECER, AUTORIA, FERNANDO BEZERRA, SENADOR, PROJETO DE LEI, REGULAMENTAÇÃO, PROPRIEDADE INDUSTRIAL, ABERTURA, POSSIBILIDADE, PATENTE DE INVENÇÃO, VIDA, ANIMAL, VEGETAIS, NECESSIDADE, SENADO, AVALIAÇÃO, MATERIA.
  • DEFESA, NECESSIDADE, GARANTIA, DIREITOS, ANTIGUIDADE, POPULAÇÃO, REALIZAÇÃO, CONHECIMENTO.

A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Como líder. Sem revisão da oradora.) - Agradeço a aquiescência do Líder do meu Partido em ceder-me o horário da liderança, e as palavras carinhosas do Senador que preside os trabalhos da Casa, Romeu Tuma.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de abordar tema que vem sendo debatido nesta Casa por muitos dos Srs. Senadores, pela sociedade, por boa parte da comunidade científica e por vários setores ligados ao conhecimento, trabalhadores de um modo geral, principalmente trabalhadores rurais: a Lei de Patentes.

Ontem tivemos a oportunidade de ter uma audiência pública, a pedido do Senador Eduardo Matarazzo Suplicy, no âmbito da Comissão de Assuntos Econômicos - CAE, onde estiveram presentes D. Damasceno, Secretário Geral da CNBB; o representante da Confederação Nacional da Agricultura - CNA e algumas personalidades convidadas para participar dessa audiência pública, entre elas o brilhante Professor Bautista Vidal, o representante da Associação dos Trabalhadores da Indústria Farmacêutica e Edson Góes, que representava ali 55 entidades ligadas aos trabalhadores rurais.

Houve um debate civilizado, quando posições diferentes se manifestaram imbuídas do devido respeito, mas de uma forma, em alguns momentos, até acalorada. Foram apresentados pontos de vista divergentes daquele defendido pelo eminente relator da matéria, que hoje substitui o Senador Ney Suassuna, o Senador Fernando Bezerra, responsável pelo parecer sobre a Lei de Patentes, um projeto bastante polêmico.

Gostaria aqui, Sr. Presidente, de entrar no mérito de algumas questões. Primeiro, gostaria de me referir a um ponto que considero fundamental: a questão do patenteamento da vida, que se manifesta na possibilidade de patentearmos os microorganismos.

Quero dizer o seguinte: o projeto, oriundo da Câmara dos Deputados, continha alguns aspectos que, dentro do meu ponto de vista, representavam um avanço, pois tentava evitar o que para mim é um atentado à ética, é um atentado à moral: o patenteamento da vida.

Não me sinto à vontade quando percebo que a sociedade hoje, que o planeta, tem uma relação comercial com tudo o que existe sobre a face da Terra, até com a vida.

Nesse sentido, acredito que o projeto que veio da Câmara dos Deputados, com o parecer do eminente Senador Ney Suassuna, conseguia pelo menos colocar um pequeno freio nessa questão, pois os dois projetos, os dois pareceres, no art. 10 dizem:

      Não se considera invenção nem modelo de utilidade todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

Essa a redação que veio da Câmara dos Deputados. Porém, o art. 10 do parecer, de autoria do Senador Ney Suassuna, estabelece:

      Não se considera invenção nem modelo de utilidade o todo ou qualquer parte de seres vivos e materiais biológicos, inclusive o genoma, ainda que isolados da natureza, e os processos biológicos naturais, ressalvado o disposto no art. 18, inciso III.

Art. 18, inciso III:

      Não são patenteáveis seres vivos, inclusive microorganismos, quando isolados de processo industrial.

O parecer do eminente Senador Fernando Bezerra abre margem para o patenteamento de microorganismo de uma forma que considero até contraditória, porque diz S. Exª:

      Não são consideradas invenção nem modelo de utilidade o todo ou qualquer parte de seres vivos e matérias biológicas tal como encontrados na natureza.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, aqui faço um grifo na expressão "tal como encontrados na natureza" ainda que isolados da natureza e os processos biológicos naturais.

Ora, se a diferenciação para não se patentear os microorganismos é o fato de estarem "tal como encontrados na natureza", isso assegura que qualquer alteração, por mais insignificante que seja, pode dar o direito ao patenteamento desse microorganismo. Só que o mesmo parágrafo, o mesmo item diz o seguinte: "ainda que isolado da natureza e os processos biológicos naturais".

Digo que há certa confusão na última versão e, portanto, esta Casa deve avaliar melhor a matéria. O próprio Senador Fernando Bezerra disse ontem que estaria disposto a observar as ponderações que eu havia feito.

Outro aspecto que merece a nossa atenção é o que se refere à questão do conhecimento das populações tradicionais. Venho insistindo nesse aspecto por entender que, ao se criar uma lei de patentes e não se assegurar às populações tradicionais algum mecanismo que lhes garanta o direito sobre o conhecimento secularmente produzido, estaremos cometendo um crime.

Tenho um exemplo de uma notícia publicada no jornal Folha de S.Paulo sobre um pesquisador de origem japonesa que, parece-me, é engenheiro civil, e diz que descobriu o couro vegetal. Diz ele que a criação do couro vegetal, do couro ecológico começou a ser desenvolvida em 1994, que esse processo já vem ocorrendo com várias pesquisas e que ele conseguiu aperfeiçoar o couro ecológico ou o couro vegetal.

Quero aqui contestar essa notícia e a pessoa que está alegando ser autor de tal invento. Contestar da seguinte forma: o couro vegetal, ou couro ecológico, ou o nome que se queira dar, é na verdade o que, na Amazônia, os índios e os seringueiros, há séculos, vêm produzindo com o nome de saco encauchado: é a impermeabilização através do processo de defumar o tecido com o leite da seringa, ou seja, com o látex. Os seringueiros vêm fazendo isso desde 1903 utilizando uma tecnologia rudimentar.

Esses pesquisadores apenas utilizaram alguns produtos químicos para melhorar a qualidade do produto, fazendo com que a impermeabilização se tornasse o que eles chamam de "couro ecológico". É claro que é um produto de melhor qualidade, mas o processo inventivo, a novidade, a tecnologia, é de domínio das populações tradicionais. Portanto, não pode ser patenteado. E, se não assegurarmos o direito dessas populações tradicionais com relação ao seu conhecimento, estaremos cometendo um crime.

Vou insistir nessa tecla, porque tempo e recursos estão sendo economizados por esses supostos inventores e pesquisadores; acima de tudo, que eles percorram o caminho da descoberta, porque, para quer algo seja patenteado, é preciso que haja a novidade, a descrição do processo e, claro, a utilidade em termos industriais. Essa utilidade em termos industriais existe, porque esse material é altamente rentável e está sendo procurado dentro e fora do Brasil. A descrição do processo para torná-lo de conhecimento público é muito fácil, pois trata-se de uma tecnologia simples. No entanto, a novidade não ocorre, porque há mais de trezentos anos esse processo é de conhecimento dos índios na Amazônia, e não posso concordar em absoluto que hoje se ganhe dinheiro com esse processo e que ainda se possa patenteá-lo, proibindo que essas populações tradicionais tenham acesso a esse meio de sobrevivência.

O Sr. José Ignácio Ferreira - V. Exª me permite um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Com muito prazer.

O Sr. José Ignácio Ferreira - Quero felicitá-la pelo oportuno pronunciamento no momento em que o Senado está às vésperas de examinar uma matéria tão importante quanto essa. Não sei se todos se deram conta da gravidade da situação. O que está acontecendo, na verdade, é que estamos a caminho de uma economia globalizada. Com o conhecimento, evidentemente, montou-se uma estratégia colossal de dominação no planeta - esse é um fato sabido -, em que no curso do caminho, estamos também prevendo que se prepara um esquema em que o conhecimento fica monopolizado, patenteável. Fez-se, então, a chamada Rodada Uruguai, de que resultou um documento, que tive oportunidade de ler. Esse documento é um modelo, quase obra de ourivesaria, feito, certamente, pelos melhores advogados do planeta em que quase linha por linha foi construída com muita preocupação em amarrar todos os pontos. Depois disso, foi feita uma votação, aqui no Senado, numa sessão de 14 de dezembro de 1994, que é memorável pelo que oferece de lamentável. Na verdade, houve uma discussão em que até mesmo o Ministro das Relações Exteriores foi chamada a ocupar a tribuna numa reunião plenária do Senado Federal e foi feita uma votação Rodada Uruguai do Gatt Tríplice, inclusive sem quorum, conforme denunciou, no momento em que a sessão acabava, o eminente Senador Josaphat Marinho. Quero, portanto, dizer a V. Exª que a felicito, porque estamos vivendo um tempo muito delicado. Essa questão de patenteamento de microorganismos deve ser sopesada pelo Senado Federal. Há pouco eu conversava com o eminente Senador Fernando Bezerra, que tem agido com muita cautela nessa questão específica de patenteamento de microorganismos. Na verdade, S. Exª, que tem sido muito bem-intencionado, revelou que seguiu aquilo que lhe permitiam as normas, isto é, há o acordo GATT Tríplice e a aprovação dele pelo Senado. Então, nada mais nos incumbe, a não ser aprovar o que consta do GATT Tríplice, com a chancela do Senado Federal. Fizemos uma emenda, e espero que o Senado tenha a oportunidade de votá-la e aprová-la, ou seja, já que não podemos, em virtude do GATT Tríplice, impedir o patenteamento de microorganismos - e isso é uma excrescência, considero que a nossa posição ética fica abaladíssima, não podemos votar isso -, propus, então, que se votasse a questão dos microorganismos conforme vinha na proposta do GATT Tríplice, mas que colocássemos uma disposição que permitisse que o legislador, posteriormente, definisse o que seja microorganismo, isto é, a lei definirá, para efeito de patenteamento, microorganismo. Aprovada essa emenda, vamos postergar o exame dessa situação, para fazê-lo com mais calma, num prazo mais longo, o prazo que o Congresso Nacional se der, para que então possamos refletir melhor sobre isso, aprovando ou não aquilo que afinal desejarmos, e não votarmos a toque de caixa, como estamos fazendo agora. Estamos na iminência de uma votação e diremos a nós mesmos que não tem jeito, como fizemos na votação do Senado: "não tem jeito, vamos votar". E votamos no dia 14 de dezembro de 1994. Espero que isso não se repita e que tenhamos a oportunidade de enfrentar com muita competência quatro questões: a questão do microorganismo, a questão do pipe line, a questão da importação paralela e a questão dos prazos. São esses os quatro pontos que me parecem da maior importância, sobre os quais o Congresso certamente e o Senado em especial vai se debruçar. Muito obrigado.

A SRª MARINA SILVA -  Agradeço a V. Exª esse aparte que enriquece, e muito, o meu pronunciamento. É minha e também de boa parte dos Senadores desta Casa a preocupação de V. Exª.

Às vezes fico bastante entristecida quando observo - tenho certeza de que não é por má-fé - o Governo atropelar esta Casa. Está nos jornais que o Governo iria aprovar por decreto a lei de patentes. Existe um projeto, que está sendo relatado nesta Casa. Ontem ouvi o próprio Relator dizer que está disposto a acolher sugestões. De repente, o governo tenta legislar por meio de decreto.

Considero isso uma afronta às prerrogativas do Senado Federal, pois nós é que deveríamos, a exemplo do que já ocorreu, como V. Exª acabou de citar, aprovar ou não essa matéria, após o devido debate. Preocupo-me, todavia, porque nessa versão no que se refere à questão dos microorganismos hoje já não há uma exigência que é fundamental, qual seja a de que os microorganismos somente poderiam ser patenteados desde que vinculados a um processo industrial. Por exemplo, uma bactéria que pode servir para fermentar a cerveja poderia ser patenteada em relação à cerveja, mas não em relação a outros processos. Infelizmente não está contemplada essa preocupação e essa obrigação.

Por último, para concluir, porque a Mesa já me avisa que o tempo esgotou, gostaria de lembrar que, para patentear um microorganismo, ter-se-ia de mostrar o processo, a inventividade e, claro, a utilidade comercial e industrial dessa patente. Havia a exigência de ser depositado um microorganismo na sua forma natural para comprovar que realmente há uma invenção, uma derivação daquele microorganismo. Essa exigência já não é feita. Portanto, que certeza haveria de que realmente está sendo patenteado algo inédito, novo?

Quero dizer aos Srs. Senadores que amanhã vamos iniciar nessa discussão e deveremos ter o maior cuidado. Não podemos aceitar pressões unilaterais dos Estados Unidos, porque o Brasil, de todos os países que estão enfrentando esse problema agora, é o que teria melhor condição de fazer um acordo pela posição que ocupamos, e devemos enfrentá-la com a devida altivez.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 14/09/1995 - Página 15773