Discurso no Senado Federal

SOLIDARIZANDO-SE COM OS MOVIMENTOS DOS SEM-TERRA QUE SE ESPALHAM PELO BRASIL.

Autor
Darcy Ribeiro (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Darcy Ribeiro
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • SOLIDARIZANDO-SE COM OS MOVIMENTOS DOS SEM-TERRA QUE SE ESPALHAM PELO BRASIL.
Publicação
Publicação no DCN2 de 22/09/1995 - Página 16407
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, MOVIMENTAÇÃO, TRABALHADOR, SEM-TERRA, PROTESTO, AUSENCIA, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA, PAIS.
  • PROPOSTA, SOLUÇÃO, CRISE, PAIS, NECESSIDADE, ESTABELECIMENTO, NORMAS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, OPORTUNIDADE, REFORMA CONSTITUCIONAL, DEFINIÇÃO, ILICITUDE, MANUTENÇÃO, PROPRIEDADE IMPRODUTIVA, RELAÇÃO, DIREITO DE PROPRIEDADE, IMPORTANCIA, CRIAÇÃO, JUSTIÇA AGRARIA.

O SR. DARCY RIBEIRO (PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, assomo esta Tribuna para algo que atribuo de grande importância, que é expressar minha solidariedade ao movimento dos sem-terra e dos posseiros que se espraiam por todo o Brasil. Chamo a atenção do Senado Federal para o perigo de convulsão social em que eles implicam. Quero asssinalar também as esperanças que eles representam para milhões de lavradores brasileiros.

Sabem os Senhores Senadores que vivi anos, para além das fronteiras da civilização, estudando povos indígenas. Naquelas fronteiras, no Maranhão, Pará, Mato Grosso, no Amazonas e por toda a parte encontrei pioneiros. Era gente cuja vida tinha sido mudar daqui para ali, procurando um pedaço de terra para fazer uma rocinha de mandioca e de milho e que sempre estava sendo enxotada. Uma gente feia, barbada, de magreza esquelética e de gesticulação pasmada.

Vi muitos deles chorando a olhar os bois que chegavam, derrubando, com os chifres, as cercas dos seus roçados para comê-los. Senti a dor daqueles homens que não podiam fazer nada contra os senhores todo-poderosos, imprevisíveis, que chegavam, armados de títulos - podiam até ser bons, rarissimamente - chegavam como os donos legítimos das terras que os posseiros haviam devassado e cultivado por anos. Tinham sempre que ir adiante.

Recordo aos Senhores Senadores que aqueles posseiros que andavam por toda parte, desesperados, agora se organizaram como o mais importante movimento social que o Brasil já teve. Somam mais de mil núcleos cada qual com mais de mil famílias. Movimento de muita força e que pode engrossar muito mais, movimento que tende até a mobilizar milhões de gentes ainda "ruralizáveis" que vivem na miséria da cidade.

Esse movimento, Senhores Senadores, tem que nos lembrar o pioneiro norte-americano. Quem de nós não assistiu a um filme de faroeste? Quem não viu as carretas indo para o oeste? Iam em função de uma lei que é o contrário da nossa legislação. Os dois episódios: o pioneiro norte-americano e o posseiro brasileiro são produtos de duas leis fundiárias opostas. A Lei brasileira de 1850, a Lei da Terra, que estabelece a estrutura fundiária do País, declara que a posse não dá direito à propriedade. A lei norte-americana começa declarando que quem fosse para o oeste - para o Goiás deles, para o Mato Grosso deles, para o Pará deles -, e lá fizesse uma casa e uma roça, lá permanecendo por cinco anos, podia marcar 30 hectares como propriedade da família.

Qual a conseqüência dessas duas leis, leis reitoras? Uma, a nossa, provocou a expansão do latifúndio, do latifúndio com licença de ser improdutivo, com licença de ter qualquer dimensão. Lá, a lei deles produziu a multiplicação prodigiosa dos granjeiros livres que fez a prosperidade da América do Norte. Foi esse mercado interno de granjeiros, que podiam ficar na terra até que tivessem emprego na cidade, que permitiu que a sociedade norte-americana progredisse como uma sociedade hígida e com aquele maravilhoso desempenho que teve.

Conosco, ocorreu exatamente o contrário. A nossa lei obrigava que um lavrador, ao sair de uma fazenda, caísse em outra igual. Toda terra estava possuída.

Lembro aos Senhores Senadores de uma conversa que tive com um homem muito inteligente, o Cacique Juruna, que um dia me perguntou: Darcy, quem é que inventou o "papé"? Tentei explicar a ele como se fabrica papel, com madeira. Ele disse: Não, "papé" de verdade, acrescentando: a gente está lá, sempre esteve lá, chega um com o "papé" e é o dono. Ou seja, observem o agudo sentido do Juruna para perceber a força cartorial, a força burocrática, que permite a alguém criar concessões de terras sem limites para quem nunca as viu expulsando de lá quem as cultiva desde sempre. O Brasil é feito, em grande parte, dessa realidade.

Senhores Senadores, frente a isso, temos de tomar uma posição, particularmente o Senado porque carrega nas costas uma vergonha nesta matéria. A Constituição de 1946 determinava que nenhuma terra, com mais de 10 mil hectares, fosse registrada no Brasil sem licença prévia do Senado. O Senado nunca tomou conhecimento dessa obrigação, apenas criou uma Comissão para tergiversar e nunca exigiu que se cumprisse aquele princípio. Viu calado serem concedidas glebas de 100, 200, 500 mil, e até mais de um milhão de hectares sem se perturbar. Reitero aqui que este nosso Senado viu o Brasil ser loteado. Viu multiplicarem-se em Mato Grosso, em Goiás e, agora, na Amazônia, extensões astronômicas. Mesmo assim, nada fizemos.

Essa estrutura fundiária é a responsável real pela situação de crise do Brasil; crise que se assenta numa massa tremenda de gente recentemente urbanizada, expulsa pelo latifúndio, desempregados e desempregáveis. São talvez 50 milhões, encurralados nas favelas e nas periferias, com seus adultos e crianças condenados à fome e ao crime. O que pode fazer uma criança daquelas se não tem valor nenhum, energia nenhuma? Fica em casa curtindo fome; se tem alguma energia, vai furtar na feira ou disputar comida no lixo, onde pode ser assassinada pela polícia ou pelo traficante. É assim que tratamos nossos milhões de crianças.

Esta descrição feroz da condição de vida da imensa maioria do nosso povo é apenas a expressão do fato estatístico da passagem que todos conhecemos: existiam 80 milhões de habitantes rurais, passou a ter 60 milhões, 40 milhões, 30 milhões. Esse translado é a ameaça que pesa sobre os milhões de sem-terra que lutam com todas as suas forças para não serem arrancados de sua vida de lavradores, para serem lançados nas favelas. O aspecto mais trágico da história brasileira é que aqui uns poucos mil proprietários de latifúndios improdutivos puderam condenar dezenas de milhões de brasileiros a uma vida miserável e submeter nossa sociedade à violência desenfreada que disso resulta.

Este Congresso Nacional conta com mais de mil projetos de reforma agrária, todos inócuos, porque todos partem do princípio louco de que a reforma tem que ser feita pagando-se o justo preço, previamente, pela terra registrada. A maior parte dessas terras vem de chicanas, de grilagens, e é impossível conseguir recursos neste País para desapropriá-las numa verdadeira reforma agrária, pagando a justo preço todo esse terrame imenso, sobre o qual reconhecemos o direito abusivo de ter e não usar, apenas para especular.

Cumpre, portanto, ao Brasil, como forma única, ou quase única de sair da crise em que estamos, estabelecer uma norma nova na Constituição. Estamos falando todos na reforma da Constituição. A reforma que importaria mesmo para o nosso povo, seria incorporar à Constituição um princípio simples: "A ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade."

Inscrito isso na Constituição, naquele capítulo que fala das responsabilidades sociais da propriedade, isso significaria o quê? Significaria que uma lei iria definir a licitude.

Proponho que a licitude seja quatro vezes o que se usa. E é generoso: quatro vezes o que alguém está usando é o lícito, e tudo o que exceda a quatro vezes, que são milhões e milhões de hectares, que volte ao domínio público, volte a sua origem. A força da lei que, em 1891, transferiu as terras baldias e devolutas da União aos Estados é a mesma força constitucional que pode dizer: "Volta ao domínio público o que não é usado". Isso é indispensável para quem usa a terra.

A convulsão social tende a crescer tanto no Brasil, que o próprio fazendeiro ativo, enérgico, tão importante para nós como produtor de divisas, acabou sendo prejudicado também por culpa daquele que não usa a terra, não quer que se use a terra e nem que se faça assentamentos nela.

Sr. Presidente e Srs. Senadores, quais as saídas para essa situação? A primeira saída é simples: mandemos o Exército para o campo, como já fizemos em Canudos. E Os Sertões descrevem aquele episódio terrível de nossa história. Mandamos também o Exército para o Contestado, entre Paraná e Santa Catarina, onde matou-se 14 mil camponeses. É impossível, em nossos dias, mandar o Exército matar camponeses, nem há, para isso, apoio da opinião pública. A opinião pública urbana está de acordo com os posseiros. É duvidoso que o próprio Exército aceite fazer isso para defender o latifúndio improdutivo e infecundo, responsável pelo atraso do Brasil. Somos chamados, por conseguinte, a encontrar alguma solução para que o Presidente da República possa resolver o grave problema dos sem-terra.

Creio que a solução seria implantar na Constituição o princípio de que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade. Em seguida, deveríamos definir, na própria reforma constitucional, o princípio de que as terras que excedam ao uso lícito voltem ao domínio público dos Estados. É aconselhável que entreguemos à Justiça do Trabalho a incumbência de, em cada caso concreto e sobre o terreno estabelecer área de "uso lícito" do proprietário entregando o restante ao Estado, como Fundo de Colonização. Caberia também à Justiça do Trabalho aprovar programas de colonização das terras, que entrem em fundo de colonização, distribuindo a quem queira cultivá-las, até o limite de 100 hectares. Com isso, abrimos a perspectiva para que milhões de famílias lavradoras sejam assentadas.

Falo em Justiça do Trabalho, porque é a mais próxima, mas é indispensável que o Congresso crie uma justiça agrária. Os conflitos agrários são cada vez maiores, e esta Nação não pode conviver sem uma justiça especializada nessa área. Entretanto, para não demorar, para não ficarmos outra vez - nós legisladores - desculpando-nos pelos anos que estamos sem reforma agrária, para não deixar que o problema social cresça, proponho que a Justiça do Trabalho, devidamente amparada e orientada pelo Poder Executivo, possa ir dando execução a essa lei, solucionando esse problema.

Em conclusão se abrem, diante de nós, três caminhos: primeiro, mandar matar os sem-terra; segundo, resolvermos nós o problema com a nova lei fundiária que proponho; e em terceiro lugar, que suponho e temo muito que vá ocorrer, é deixar passar. Ninguém vai reter os sem-terra, eles vão se multiplicar. E quero crer que eles possam representar o ingresso do povo brasileiro na História do Brasil.

O Sr. Pedro Simon - V. Exª me permite um aparte, Senador Darcy Ribeiro?

O SR. PRESIDENTE (José Sarney) - Senador Pedro Simon, pediria a V. Exª, bem como aos outros Senadores, que não aparteassem o Senador Darcy Ribeiro, uma vez que estamos com o tempo da nossa sessão esgotado e apenas poderemos prorrogá-la por mais sete minutos para que S. Exª possa concluir o seu discurso. Em seguida, temos a sessão do Congresso Nacional.

Portanto, deixemos a palavra com o Professor Darcy Ribeiro para que tenhamos o prazer de ouvi-lo concluir o seu discurso.

O SR. DARCY RIBEIRO - Sr. Presidente, cedo os meus sete minutos ao nobre Senador Pedro Simon, pois quero ouvi-lo.

O Sr. Pedro Simon - Sr. Presidente, peço vênia a V. Exª, mas estou emocionado com o pronunciamento do Senador Darcy Ribeiro. É uma pena, realmente, que S. Exª não tenha feito o seu pronunciamento mais cedo hoje, num dia de Casa cheia. Tenho certeza de que se soubéssemos que S. Exª iria falar sobre essa matéria, teríamos cedido nosso tempo, com o maior prazer, para que S. Exª se pronunciasse. Está-se falando que haveria ligação entre os grupos radicais do Peru e grupos de invasores, e o Exército diz que desde 1990 há essa interferência, já querendo ver qual a interferência que há entre o grupo do Peru e nós. Penso que está na hora de tomarmos uma providência. V. Exª tem razão quando diz que o Senado, na sua sensibilidade, deve analisar essa matéria. Com toda a sinceridade, creio que o pronunciamento de V. Exª é realmente importante, é daqueles pronunciamentos que não podemos ouvi-lo, bater palmas, dizer que está tudo bem. E as coisas continuam do mesmo jeito. Tem razão V. Exª quando aponta as diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil, pois nos Estados Unidos a lei estabeleceu 30 hectares de terra para os colonos e aqui não havia limite. Mas V. Exª não precisa ir aos Estados Unidos, basta ficar no Brasil e ir a minha terra, o Rio Grande do Sul, onde deram para o imigrante italiano e para o alemão a quantidade de terras que não quiseram dar, e até hoje não fizeram o mesmo para a nossa gente. O imigrante que veio para cá foi colocado no meio do mato. Na minha época, em minha terra, Caxias do Sul, e em uma vasta região de Santa Catarina e do Paraná, não havia absolutamente nada: nem estradas, nem condições de desenvolvimento, nada. O Governo, o que fez? Trouxe os imigrantes, deu-lhes 30 hectares, exatamente o que V. Exª está dizendo, deu uma enxada, algumas mudas, etc. e eles criaram uma civilização. Criaram uma região fantástica, as regiões mais desenvolvidas são exatamente as de colonização italiana e alemã. O que V. Exª diz que aconteceu nos Estados Unidos - e é verdade -, aconteceu no Brasil: quando se deu a chance, o progresso se fez. Mas querer dizer que foram os imigrantes italianos ou que a terra do Rio Grande do Sul é melhor, não é verdade. Deram uma chance para o Rio Grande do Sul que não deram para Mato Grosso, para Goiás, para o Maranhão e para outras regiões. Se tivessem feito a mesma coisa, como diz V. Exª, que fizerem no oeste americano, no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, no Nordeste, no oeste brasileiro, a resposta de progresso seria a mesma. Meus cumprimentos emocionados pelo pronunciamento de V. Exª.

O SR. DARCY RIBEIRO - Muito bem, Senador Pedro Simon.

Só quero dizer duas palavras, Sr. Presidente, para concluir meu pronunciamento. O Senador Pedro Simon tem toda razão. Nenhum sociólogo que tenha estudado a matéria considerou jamais que fosse a qualidade do colono alemão, do colono italiano, do colono polonês, que fizesse a prosperidade do sul: foi a pequena propriedade. Onde o colono estrangeiro não pôde ter uma pequena propriedade, como em São Paulo e em Minas Gerais, por exemplo, ele não mudou nada. O povo continuou na miséria. E é de se assinalar, na história da colonização do Rio Grande do Sul, que o Imperador D. Pedro II até proibiu fossem dados lotes de 10 ou de 30 hectares aos brasileiros.

Senhores Senadores, estamos vivendo o efeito de erros cumulativos e terríveis. Amanhã farei distribuir aos vários gabinetes dos Srs. Senadores o proposta de emenda à Constituição que apresentarei, pedindo àqueles que concordarem comigo que assinem o documento, a fim de que obtenha o número mínimo legal de assinaturas para que possa entrar em discussão no Senado. Tenho para mim que essa matéria é da maior importância para a salvação nacional e para dar vida e alegria ao povo brasileiro.

Muito obrigado por sua paciência, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 22/09/1995 - Página 16407