Discurso no Senado Federal

SITUAÇÃO DOS SEM-TERRA NO PAIS. RESPONSABILIDADE DO GOVERNO NA QUESTÃO DA REFORMA AGRARIA.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • SITUAÇÃO DOS SEM-TERRA NO PAIS. RESPONSABILIDADE DO GOVERNO NA QUESTÃO DA REFORMA AGRARIA.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Levy Dias, Romero Jucá.
Publicação
Publicação no DCN2 de 29/09/1995 - Página 17071
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • COMENTARIO, POSIÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, RECONHECIMENTO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, TRABALHADOR, SEM-TERRA, NOMEAÇÃO, FRANCISCO GRAZIANO, CHEFE DE GABINETE, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, PRESIDENTE, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRARIA (INCRA), ACELERAÇÃO, REFORMA AGRARIA.
  • MANIFESTAÇÃO, DISPOSIÇÃO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), APOIO, GOVERNO FEDERAL, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA.
  • QUESTIONAMENTO, OPINIÃO, FRANCISCO GRAZIANO, PRESIDENTE, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRARIA (INCRA), DIVULGAÇÃO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), AUTORIA, JANIO DE FREITAS, JORNALISTA, CRITICA, REFORMA AGRARIA, MANIFESTAÇÃO, AUSENCIA, ENTENDIMENTO, MOVIMENTAÇÃO, TRABALHADOR RURAL, SEM-TERRA.
  • DEFESA, MANIFESTAÇÃO, TRABALHADOR, SEM-TERRA, LUTA, DIREITOS, CONTINUAÇÃO, EXISTENCIA, VALORIZAÇÃO, CIDADÃO.

A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Senador Eduardo Suplicy e à Bancada do nosso Partido por terem sugerido a mim o tema que hoje abordo desta tribuna: a reforma agrária.

É para mim motivo de alegria, de preocupação e expectativa ao mesmo tempo debater esta questão, pois, agora, observo que ao lado das movimentações dos trabalhadores sem-terra, que vêm ocorrendo há vários anos, cresce o interesse do Governo em resolver a reforma agrária.

Digo que o Governo chamou para si a reforma agrária ante o levantamento que vem sendo feito pela imprensa em torno de algumas especulações de envolvimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra com o Sendero Luminoso. Hoje, graças a Deus, esse equívoco foi desfeito pelos Generais Cláudio Figueiredo e Fernando Cardoso; fato que já sabíamos. Toda essa movimentação, repito, fez com que o Presidente da República assumisse uma atitude.

No meu Estado há um dito: "antes tarde do que nunca". E digo isso porque, ao assumir a existência do problema dos sem-terra, o Presidente Fernando Henrique já o fez um pouco tarde, mas seria inadmissível que continuasse a ignorá-lo. E quando se coloca alguém da sua inteira confiança ou alguém ligado diretamente a você, como foi o caso da indicação feita pelo Presidente da República ao Dr. Francisco Graziano em substituição ao ex-Presidente do Incra, Dr. Brazílio, ou é para que ela evite que algo indesejável aconteça ou é exatamente para consolidar um desejo.

Para se ter uma idéia do que significa isso, o Presidente da República, ao nomear seu assessor direto, ou está querendo realmente que a reforma agrária aconteça neste País ou então a História do País nos dará a resposta para essa atitude.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso tem a oportunidade, se assim o desejar, como conhecedor do problema da reforma agrária, de fazer algo que é importante para o desenvolvimento do País, ao incorporar os milhões de excluídos existentes nesta Pátria generosa e, acima de tudo, dar uma resposta honrosa, uma resposta grandiosa aos problemas sociais que estamos enfrentando.

A atitude de Sua Excelência estaria contando com uma base de apoio de quase 100%. Digo quase 100% porque, com certeza, boa parte dos latifundiários, daqueles que não querem ver seus domínios improdutivos ocupados devidamente pelos excluídos, iriam e podem apresentar algum tipo de resistência e de desacordo.

Por que 90%? O Governo conta com uma ampla base de sustentação aqui nesta Casa e na Câmara dos Deputados. O Governo construiu uma maioria, não temos como negar isso. Mas além dessa sua maioria, que com certeza não se recusaria a apoiá-lo numa atitude de tamanha envergadura, Sua Excelência contaria ainda com o apoio de setores da Oposição. Se, para a reforma econômica, a reforma tributária, a reforma administrativa e da Previdência Social, o Governo contava apenas com a sua base de sustentação, para a reforma agrária, teria quase que a unanimidade, porque o Partido dos Trabalhadores apóia a reforma agrária, a Igreja apóia a reforma agrária, o Movimento dos Sem-Terra, a CONTAG, os sindicatos, homens e mulheres de bem deste País apóiam a reforma agrária.

Portanto, o Presidente da República, como conhecedor dessa questão, pois é um sociólogo competente e como tal não é desinformado sobre a importância da reforma agrária para o Brasil, teria uma oportunidade inédita de fazer algo contando com esse apoio.

Fico feliz em saber que o nosso Presidente da República, o Senhor Fernando Henrique Cardoso, tem a disposição de chamar a Igreja, o PT, o Movimento dos Sem-Terra para conversar sobre esse tema.

Digo aos senhores que de minha parte, e tenho certeza que da parte do Partido dos Trabalhadores, não nos negaremos a dar a nossa parcela de colaboração. Digo parcela porque não somos donos da verdade, muito embora tenhamos um conhecimento bastante grande no que se refere a essa problemática.

Um outro aspecto que queria ressaltar aqui é que as coisas não acontecem meramente no plano do desejo ou das intenções. Para os materialistas, o critério da verdade é a prática; para os cristãos, essa mesma frase é dita de outra forma, qual seja: a gente conhece a árvore pelo fruto. Então, vamos ver se na árvore da reforma agrária sairá o fruto do assentamento dos milhões de trabalhadores sem terra que existem por esse Brasil afora.

Agora, gostaria de fazer uma pequena reflexão: temos que buscar os frutos para o critério da prática, porque não basta avaliarmos as pessoas, os governantes, os políticos, por aquilo que dizem de si mesmo. É preciso que tenhamos algum modo de aferir se realmente está ocorrendo a verdade.

Para o ano de 1995, o Governo contava com um orçamento para a reforma agrária de R$1.012 bilhão; para o ano de 1996, haverá apenas R$621 milhões. Não quero ser pessimista, mas já está ocorrendo um problema, que é o da diminuição dos recursos para a prioridade que teremos que enfrentar no futuro.

Por um lado, poder-se-ia dizer que não foi utilizado todo esse dinheiro, o qual poderia ser usado em 1996. Mas é fundamental que se faça frente à grande demanda. O próprio Ministro do Planejamento José Serra disse que, para fazer esse assentamento, R$40 mil por família seria um custo muito alto. O Sr. Ministro sugeriu que se cortasse pela metade esse orçamento.

Quero repetir mais uma vez que não se faz reforma agrária apenas com intenções e com boas declarações de intenção. Quero dizer também que a indicação do novo Presidente do INCRA traz para as pessoas um pouco de esperança, já que se trata de alguém ligado diretamente ao Presidente da República. Houve a substituição de alguém que, do ponto de vista pessoal - não quero entrar nesse mérito -, tinha um compromisso com a classe dos grandes proprietários, dos latifundiários, pela sua posição, pela sua própria relação com esse grupo, o que criava uma certa situação de desconforto. No caso, há uma pitadinha de esperança.

No entanto, o jornalista Janio de Freitas, que tem uma coluna no jornal Folha de S.Paulo, coloca uma pitadinha de preocupação para todos nós. Vejam o que ele diz em sua coluna:

      "Em palestra para jornalistas da Folha, no dia 14 de outubro de 1994, o novo Presidente do INCRA, Francisco Graziano, expôs a opinião de que reforma agrária é assunto superado, coisa da década de 60."

Como se supera algo que ainda está presente, que remanesce, mesmo nas condições do presente, da realidade em que estamos vivendo? Com certeza, os milhões de trabalhadores sem terra não acham que a questão da reforma agrária foi superada na década de 60.

E continua:

      "Restrita a um seminário interno, a palestra não chegou ao conhecimento dos leitores do jornal. Melhor para todos eles, que não se espantaram tanto com o "especialista" escolhido para acelerar a reforma agrária.

      Fique, pelo menos, uma pitadinha do pensamento do brilhante Graziano: "Não entendo o Movimento dos Sem-Terra; porque, então, nas cidades deveria haver o Movimento dos Sem-Indústria, mas não há".

Espero, com toda a sinceridade, que isso tenha sido apenas um rompante de quem estaria discutindo teoricamente o assunto.

Não quero aqui fazer juízo de valor a partir do que está sendo dito no jornal Folha de S. Paulo dessa palestra do Sr. Francisco Graziano, no dia 14 de outubro de 1994. Mas gostaria de falar especificamente na suposição que ele levanta: de que não entende o Movimento dos Sem-Terra, porque na cidade não há o Movimento dos Sem-Indústria.

Não há Movimento dos Sem-Indústria porque não é natural ter indústrias, mas é natural ter a terra. Quando o homem apareceu na face da Terra encontrou uma casa generosa. Portanto, é natural que haja o Movimento dos Sem-Terra a partir do momento em que essa mãe generosa se torna particular, propriedade de poucos e deixa muitos sem uma casa para morar.

Não é natural que se encare a questão da luta por ter algum outro tipo de meio de sobrevivência. A terra é o principal meio de sobrevivência.

Façamos uma exercício de raciocínio: se porventura privatizassem o ar, é claro que os milhares de excluídos iriam fazer um movimento em busca do ar para respirar; se as águas todas começassem a ser utilizadas apenas por uma pequena quantidade de pessoas, é claro que iria haver um movimento de pessoas que iriam buscar a água para continuar a viver, porque é natural ter água, porque é natural ter terra, porque é natural ter ar para respirar.

Sempre falo a respeito da tragédia dos comuns. E a tragédia dos comuns realmente ocorre, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, porque aquilo que é considerado de todos acaba virando cuidado de ninguém e quando é cuidado de ninguém, acaba, é destruído ou é apropriado por aqueles que se acham no direito de tomar para si aquilo que é de todos. É o que vem acontecendo historicamente com a terra.

Gostaria de fazer uma pequena reflexão no que se refere a essa movimentação do homem sobre o Planeta Terra e fazer uma comparação com a nossa luta hoje justa pela reforma agrária.

A trajetória da humanidade indica vários momentos em que o homem vem sendo tipificado pelo grau de avanço que ele consegue historicamente, tanto do ponto de vista social quanto cultural. Isso pode ser positivo ou negativo.

Quando adquirimos a consciência, o ato de pensar, os antropólogos e os sociólogos nos consideraram como homo sapiens. Quando adquirimos a capacidade de fazer instrumentos para ser um complemento a nossa ação humana, para superar as nossas limitações, tornamo-nos o homo habilis. Quando, no decorrer da história, começamos a praticar o ato da guerra da violência para nos apropriar inclusive da terra que era de todos, tornamo-nos no homo hostilis, que é o homem que fez a bomba atômica, que destruiu Hiroshima e Nagasaki. Esse é o homem que a história não gostaria de registrar, que tem medo de encarar, de olhar mas que, infelizmente, ele existe.

Agora estamos em uma encruzilhada. Infelizmente a humanidade, após a terceira revolução, a Revolução Tecnológica, que deveria ser muito boa para que todos pudessem ter acesso a mais benefícios, a melhores condições de existência sobre esse planeta, está diante de duas possibilidades: a de nos tornarmos o homo solidarius ou o "homo excluidus".

Há bilhões de pessoas neste planeta que estão excluídas de qualquer possibilidade de vida digna a continuar essa visão de progresso como está posta hoje para a humanidade.

 

Ou nos transformamos no homo solidarius, ou iremos desaparecer da face da terra. Os conflitos que poderão acontecer com as pessoas sentindo-se apartadas é algo praticamente irreversível. A humanidade tem de buscar uma forma de dar respostas para que a terra generosa continue a ser de todos. Aqueles meios necessários à sobrevivência não podem pertencer apenas a uma pequena quantidade de seres humanos. De nada valerá o conhecimento que acumulamos, se não for para melhorar a vida das pessoas ou para nos engrandecer como seres humanos.

A presença de um novo Presidente do INCRA, ligado ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, dá-nos a possibilidade de fazer no Brasil não algo idealizado, como muitas vezes é dito ou pela Esquerda ou pela Direita, mas algo necessário, que é a democratização da terra, a democratização da possibilidade de vida, que para os milhares de trabalhadores excluídos deste País só ocorrerá mediante o acesso à terra. Com isso poderemos estar inaugurando, no Brasil, a idéia do homo solidarius. Precisamos de solidariedade não apenas como retórica, mas como algo essencial para a sobrevivência de todos nós.

Assisti ao programa SBT Repórter, que tratava do Movimento dos Sem-Terra e dos problemas do conflito da madeira lá no meu Estado, na Amazônia, e me deixou preocupada. Quem viu a reportagem deve ter ficado estarrecido. Numa cena interessante havia uma seringueira, que, de repente, foi surpreendida com a pergunta de um repórter: "O que está acontecendo?" Ele fez essa indagação porque em volta da sua antiga habitação havia um verdadeiro deserto: as árvores foram derrubadas, havia apenas uma imensa capoeira. Ela respondeu "Não sei o que está acontecendo. Estão derrubando a mata". Então ele perguntou-lhe: "Como a senhora vai fazer daqui para frente"? Ela disse: "Não sei, Deus vai dar um jeito".

Aquela mulher parecia uma borboleta que nunca havia saído da mata e que, de repente, pousou num asfalto quente e, se não tivesse o devido cuidado, morreria em fração de segundos sem saber o que estava acontecendo.

Deus poderá dar um jeito sim, desde que os homens comecem a operar, porque Ele só age por meio dos homens, seja governo, seja sociedade, seja autoridade civil ou religiosa.

Precisamos começar a operar para dar um jeito, porque não é possível que se continue a repetir o que Jesus Cristo disse há quase 2 mil anos: "Os pássaros do céu têm um ninho para morar. Os animais da terra têm suas tocas, mas o filho do homem não tem onde repousar a cabeça". Essa Pátria generosa não pode negar ao filho do homem, àqueles que são templo de Deus na terra, um lugar onde repousar a cabeça.

A reforma agrária não é apenas uma questão de disputa ideológica; é uma questão de sobrevivência, de valorização da pessoa humana. É uma forma de não considerarmos as pessoas como simples participantes descartáveis de um processo produtivo que não engradece a humanidade, pelo contrário, a diminui, pois não respeita a dignidade humana.

O Sr. Eduardo Suplicy - Senadora Marina Silva, V. Exª permite-me um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Ouço V. Exª, Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy - Quero cumprimentar V. Exª pelo pronunciamento que faz, em momento oportuno, sobre a importância da realização da reforma agrária num ritmo que precisa ser muito mais acelerado do que até agora foi imprimido pelo Governo Fernando Henrique Cardoso. Seria importante sabermos com precisão qual, efetivamente, é o número de trabalhadores assentados. O próprio jornalista Janio de Freitas hoje ressalta que, nas últimas semanas, o Palácio do Planalto falou ora em 12 mil, ora em 15 mil, ora em 16 mil assentados. Hoje, duas horas antes da sua substituição por Francisco Graziano, Brazílio de Araújo Netto, Presidente do INCRA, informava que já teriam sido assentados, até o presente, 20 mil trabalhadores, mas há 2 dias foi noticiado que havia sumido o disquete com o nome dos 16 mil assentados. Ora, os membros do Movimento Sem-Terra têm solicitado ao Governo, e o fizeram há 2 dias perante o Secretário-Geral da Presidência da República, o número e os nomes dos assentados, porque a Coordenação do Movimento Sem-Terra tem a impressão de que os números divulgados não correspondem à realidade. Uma das primeiras providências que irei solicitar ao Presidente do INCRA, Francisco Graziano, é a publicação da relação de todos os trabalhadores assentados, para saber se isso confere com o levantamento que o Movimento dos Sem-Terra têm e se, de fato, a meta está sendo atingida. O Presidente Fernando Henrique Cardoso ressaltou hoje que Brazílio de Araújo Netto, na sua gestão de quase nove meses, foi o Presidente do INCRA que mais assentou. Gostaria de ver esse número efetivado. V. Exª citou aquilo que o jornalista Janio de Freitas mencionou sobre comentários que um dos principais auxiliares do já eleito Presidente da República formulou em palestra na Folha de S.Paulo, como se para ele a reforma agrária fosse algo do passado. Há indícios de que o Sr. Francisco Graziano modificou sua compreensão sobre o caso. Jornais, como O Globo, hoje afirmam que foi Francisco Graziano quem convenceu o Presidente Fernando Henrique de que seria importante receber o Movimento dos Sem-Terra por ocasião do IV Encontro Nacional, realizado em Brasília em julho último. Foi um encontro importante, porque ali o Presidente ouviu os anseios, os reclamos dos Sem-Terra e se comprometeu a fazer cumprir pelo menos as metas que havia exposto em seu Plano Mãos à Obra, ou seja, assentar 40 mil famílias neste ano, 60 mil famílias no próximo ano e ir aumentando gradativamente no terceiro e no quarto ano de seu governo até atingir o total de 260 mil famílias. Informou-me o Presidente do Partido dos Trabalhadores, José Dirceu, que o Sr. Francisco Graziano lhe disse no último sábado, num encontro informal, que o Presidente da República quer receber o Presidente do PT, com o fim de dialogarem sobre a reforma agrária. Isso constitui um passo adiante em relação ao encontro realizado no último dia 12 de setembro com o Presidente em exercício, Marco Maciel, enquanto o Presidente Fernando Henrique Cardoso encontrava-se na Bélgica e na Alemanha. Na ocasião, o companheiro José Dirceu mencionou que o Partido dos Trabalhadores dava as mãos ao Governo, para que pudesse ser realizada, com maior presteza e agilidade, a reforma agrária.

V. Exª, hoje, teve um papel notável na reunião da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional quando falava sobre a reforma agrária, sobre a questão da terra no Brasil, ao comentar o fato de que a imprensa registrava que trabalhadores rurais ou seringueiros andavam armados naquelas operações, V. Exª explicou que essas armas, na verdade, eram velhas espingardas que os trabalhadores usavam para a caça na floresta e que, de forma alguma, ela poderiam ser consideradas perigosas, com propósito de insurreição, de guerrilhas, ou o que seja. V. Exª teve oportunidade de esclarecer isso aos generais que hoje compareceram à Comissão. Também foi importante o esclarecimento sobre o conceito do que seja, para alguns, invasão da terra, e para o trabalhador sem terra o ato de ocupar a terra. Eu pediria que V. Exª se aprofundasse sobre a natureza dessa questão em especial, pois, há poucos dias, ouvi uma das pessoas que certamente terá influenciado a formação de Francisco Graziano. Eu me refiro ao seu tio, José Gomes da Silva, que escreveu o Estatuto da Terra para o Governo Castello Branco e foi Presidente do INCRA durante um certo período no Governo José Sarney, talvez até o mesmo período em que Francisco Graziano ali trabalhou. José Gomes da Silva, na Rádio CBN, sábado passado, expunha que uma coisa é invadir, por cobiça, a propriedade de outrem, de alguém que está produzindo, usando a terra, e outra coisa é um trabalhador sem meio de sobrevivência, um trabalhador que sabe lavrar a terra, mas que está com dificuldade de sobrevivência porque não encontra emprego, que se vê diante de áreas vazias, áreas improdutivas, ocupar esse espaço vazio para, então, cultivar a terra, torná-la produtiva para a sua própria sobrevivência. Nesse caso, explicou José Gomes da Silva, ele estaria realizando uma ocupação que tem justificativa, inclusive com respeito aos objetivos da Constituição brasileira de realização de justiça social, de criação de uma Nação de homens e mulheres com igualdades de direito à cidadania. Meus cumprimentos a V. Exª.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, Senador Suplicy, e V. Exª mesmo fez a diferenciação entre invasão e ocupação.

A invasão é acintosa, ilegítima, pois diz respeito a propriedade produtiva, que tem uma função e da qual alguém indevidamente se apossa. A ocupação dá o sentido de que existe uma área desocupada, portanto improdutiva. E não é coerente que, enquanto alguns têm áreas improdutivas, desocupadas, outros fiquem morrendo de fome, sabendo que ali estaria a sua possibilidade de sobrevivência.

Sempre fico pensando nos seringueiros e nos agricultores que, na floresta ou na roça, são mão-de-obra altamente qualificada. Um agricultor, no campo, é mão-de-obra altamente qualificada. Ele se sente adequado, respeitado. Se alguma pessoa da cidade tentar fazer qualquer trabalho no campo, com o qual não está familiarizado, vai se sentir inadequada, com certeza não saberá como fazer. O agricultor, no entanto, sente orgulho em mostrar como se manuseia a enxada, sente orgulho em dizer como se faz a vacina do gado, sente orgulho em dizer quais são os melhores adubos para esse ou aquele cultivo, ou seja, sente-se valorizado. Entretanto, quando esse agricultor é retirado de seu ambiente cultural, social e de produção para a cidade, passa a ser mão-de-obra desqualificada. E hoje não é mais nem exército de reserva para a força de trabalho. Ele é realmente excluído: vai ser vendedor de pipoca, de picolé, qualquer atividade marginal. Ali, ele se sente humilhado, porque é cidadão de terceira classe. Mas na sua roça é mão-de-obra especializada.

Nós temos a oportunidade de fazer com que as pessoas se sintam decentes, úteis, tenham auto-estima, referenciadas em si mesmas, se adequadas na sua posição. Ou podemos jogá-las, aos milhões, para serem mão-de-obra desqualificada, descartável, nas grandes cidades, como está acontecendo.

O Sr. Eduardo Suplicy - V. Exª me permite um aparte para uma breve informação, nobre Senadora Marina Silva?

A SRª MARINA SILVA - Pois não, nobre Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy - Nobre Senadora, há pouco recebi um telefonema justamente do Prof. José Gomes da Silva, que me confirmava a informação de que, de fato, Francisco Graziano é sobrinho, ou melhor, de sua esposa. Em sua avaliação, que achei importante transmitir, ele considera que o ex-Presidente do INCRA não conhecia tanto a questão da terra, da reforma agrária, enquanto Francisco Graziano é do ramo, sabe das coisas e tem tudo, portanto, para acertar. De fato, ele é formado em Ciências Agrárias pela Faculdade de Agronomia de Jaboticabal, e pôde aprender, do ponto de vista da consciência econômico-social, com economistas como José Jorge Gebara, excelente professor, que eu conheço, e o Prof. Bacarin, hoje Deputado do Partido dos Trabalhadores. Vamos dar um crédito de confiança a Francisco Graziano e esperamos que ele possa fazer jus a essas esperanças.

A SRª MARINA SILVA - Da minha parte, Senador Suplicy, como já falei anteriormente, não será essa frase infeliz, que está na coluna de Janio de Freitas, que irá me fazer ter qualquer tipo de restrição. Quero ter esperanças, quero acreditar que, a partir de agora, poderemos desencadear no Brasil um processo de democratização da terra. E com esse currículo do Dr. Francisco Graziano, que V. Exª acaba de mencionar, a responsabilidade dele aumenta, com certeza. Porque quando se desconhece a matéria, pode-se pecar por desconhecimento, portanto, é mais fácil o perdão. Agora, quando se é um profundo conhecedor, não há perdão para erros, a não se aqueles inerentes à condição da pessoa humana.

Acredito que esse crédito deve ser dado, deve haver uma soma de esforços de todos nós para buscarmos, através do diálogo, de ações altamente responsáveis dos dois lados - da parte dos trabalhadores, ela já ocorre - uma saída para essa chaga social que temos.

O Sr. Levy Dias - V. Exª me concede um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Levy Dias - Senadora Marina Silva, estou ouvindo, com muita atenção, o seu pronunciamento. Eu estava na Presidência da Mesa e pedi ao Senador José Eduardo Dutra que me substituísse, porque eu queria aparteá-la. Acredito que o pronunciamento de V. Exª, hoje à tarde, pode até conseguir repor o assunto "reforma agrária" no seu verdadeiro caminho. Ouvimos falar em reforma agrária desde que nascemos. Também nasci numa pequena propriedade rural. Fui roceiro até os 19 anos; meus pais eram analfabetos. Conheço razoavelmente bem o problema. O que tenho sentido, ao longo desses anos em que se fala em assentamentos, é que muita gente comete o equívoco, que eu chamaria de primário, de achar que, ao se dar um pedaço de terra a uma família, está feita a reforma agrária. Acompanhei ene assentamentos no nosso Estado. Em 1949, eu acompanhava a maior reforma agrária realizada em meu Estado, no Mato Grosso do Sul. Tal reforma foi feita antes de 1949 pelo então Presidente Getúlio Vargas que, na minha avaliação, fez tudo certo. Numa terra de cultura, na região hoje chamada de Grande Dourados, a segunda cidade do meu Estado -permitam-me, Srs. Senadores, usar termos do interior, como "terra de perobal" e "terra de massapé" -, foram dados a cada família, naqueles longínquos anos de 1945 a 1950, 30 hectares de terra. Além da terra, foi dada a madeira para se construir uma casa, ferramentas, sementes, e ali surgiu a região mais produtiva do meu Estado. Pena que, hoje, 95% das pessoas que receberam aquelas terras não estão mais lá. Os 30 hectares foram sendo vendidos, e hoje são grandes fazendas em volta da região da Grande Dourados. Eu sempre me debrucei sobre esse assunto com a seriedade e o sentimento com que V. Exª o está abordando, porque é uma pessoa que conhece o campo. Precisamos estudar um meio eficaz de fazer a reforma agrária, de forma a que funcione adequadamente e um pedaço de terra seja dado para quem sabe ou gosta de trabalhar a terra. Recentemente, sete ou oito anos atrás, o INCRA desapropriou uma área de terra de 16 mil hectares no Município de Ivinhema, no meu Estado, e lá foram implantadas inúmeras famílias que viviam acampadas nas beiras das rodovias. Ver um acampamento de assentados machuca qualquer pessoa que tenha o mínimo de sentimento cristão: crianças, mulheres, homens em extrema miséria. Hoje, esse assentamento já é município, e eu visitei, na última campanha política, o prefeito desse Município, que é uma das pessoas assentadas, e perguntei-lhe quantas famílias ali permaneciam. Ele disse que menos de 40% daqueles que receberam o título ainda permaneciam lá. Creio que a reforma agrária deve ir além da distribuição de terra. Este, Senadora Marina Silva, é o momento ideal para se fazer isso. E por quê? Porque um hectare de terra, hoje, custa três salários mínimos. A imprensa tem comentado nos últimos dias que a terra está muito barata. Está na hora de se atacar seriamente o problema. Não entendo como num País como o nosso há tantas brigas por causa de terra, considerando a nossa extensão territorial. Se fôssemos um Chile, um Israel, se fôssemos um Uruguai, isso poderia acontecer. mas não tem sentido, em nosso País, brigar por um pedaço de terra. Violência, em nenhuma hipótese - nem de um lado nem de outro. Temos condições de, com diálogo, ajudar a resolver o problema. Por isso quis apartear V. Exª. Creio que o seu discurso pode acabar recolocando esse assunto não como uma bandeira política eleitoral, mas como uma bandeira verdadeira para ajudar essas pessoas humildes, paupérrimas, doentes, miseráveis que são manipuladas muitas vezes eleitoralmente. Aqui no Senado estou pronto para ajudar, dentro de um contexto de entendimento, de respeito à lei. No dia em que deixarmos de respeitar a lei, virá o caos; respeitando a lei, temos condições de distribuir terra para todos. Creio que depende exclusivamente de uma decisão política. O nosso Presidente, neste primeiro ano de Governo, enfrenta o grande problema para o qual ele se propôs resolver: a inflação. Daqui a pouco vem o segundo ano de governo. Se for tomada uma decisão política correta nesse sentido, creio que esse problema brevemente fará parte do passado. Acompanhei de perto inúmeros assentamentos e falo com conhecimento sobre a questão. Estou disposto a ajudar a resolver o problema. Cumprimento V. Exª pelo seu pronunciamento nesta tarde.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço pelo aparte, Senador Levy Dias. Realmente, a questão da reforma agrária não se restringe apenas a distribuir terras. Temos que ter critérios, apoio. O trabalhador do campo merece a presença do Estado nos setores da saúde, educação e de mínimas condições para que possa viver com dignidade.

Eu poderia citar um exemplo que estamos vivendo à frente da Prefeitura de Rio Branco; é o caso de um assentamento de pessoas que já tiveram terra e que hoje estão na periferia da cidade. Essas pessoas são identificadas, passam por um teste de aptidão para trabalhar a terra e, em seguida, são assentadas. Hoje, elas têm uma renda mensal de R$400,00 a R$500,00. Se considerarmos que, no meu Estado, a grande maioria está na faixa de um salário mínimo, essas pessoas constituem um exército de privilegiados. É uma experiência altamente positiva e com baixíssimos recursos se consegue fazê-la. São módulos de 4 a 5 hectares, onde temos culturas permanentes de pupunha, acerola, cacau, cupuaçu, que permitem aos trabalhadores um ganho na faixa acima mencionada. A Prefeitura, preocupada com que quem recebe a terra e em seguida a vende, ficando novamente sem terra, não está doando a propriedade porque é usufruto da terra. É uma área nobre já degradada, de capoeira, próxima à cidade, onde essas famílias são assentadas. A terra poderá passar de pai para filho e de filho para neto, para bisneto, mas quem nela vive não possui a propriedade definitiva desse modo. Considero essa uma experiência positiva. Inclusive, quando D. Ruth Cardoso esteve no Acre visitou o pólo agroflorestal, que pode ser um exemplo de Reforma Agrária para a Amazônia e para o Brasil. Lá, assentamos famílias não por R$40 mil mas, na faixa de R$5 a 8 mil cada uma.

O Sr. Romero Jucá - Permite V. Exª um aparte?

A Srª. MARINA SILVA - Com prazer ouço V. Exª.

O Sr. Romero Jucá - Considero da maior importância que se fale muito sobre a questão da Reforma Agrária neste Plenário e no Congresso Nacional. Hoje, inclusive, tive a oportunidade de falar sobre este assunto e, igualmente, a Senadora Benedita da Silva. Entendo que, desta maneira faremos repercutir a gravidade da questão a nível nacional. Faço duas observações para concordar inclusive com as palavras de V. Exª. Se existem setores do Governo discutindo se é invasão ou ocupação, estão extremamente desconectados com a realidade. Antes, tem que se discutir o que se passa por trás disso e qual a necessidade da população. Ninguém invade ou ocupa uma terra porque gosta de ser invasora. O modelo brasileiro está levando as pessoas ao ato desesperado de utilizarem esse tipo de solução para uma melhoria de condição de vida. As pessoas estão morrendo na periferia, no campo, sem assistência. O que o Senador Levy Dias disse é verdade; reforma agrária não é um dar um lote; a condição do campo é muito mais do que isso. Portanto, eu gostaria de ressaltar essa questão da necessidade das pessoas. A meu ver, a violência é uma conseqüência. Esse processo jurídico é uma conseqüência, mas, na verdade, temos que buscar o âmago da questão, e o Governo tem que oferecer uma solução econômica, financeira, uma solução jurídica, uma solução de implementação operacional da reforma agrária. Tenho esperanças e acredito que, diferentemente do que alguns possam pensar, a designação de Francisco Graziano para a Presidência do INCRA não é uma manobra protelatória; a questão é tão grave, e o Francisco Graziano é tão próximo ao Presidente, que seria um suicídio político de Sua Excelência designar alguém que poderia protelar ao invés de executar. A questão da reforma agrária, da urgência para uma solução no campo, da violência, da questão social é tão grave e permeia tantas posições de partidos políticos, que, eventualmente, podem ser divergentes, mas quase unânime nesta Casa. Penso que o Presidente deu um passo importante. Declaro aqui o meu voto de confiança ao Francisco Graziano, contudo, temos que buscar mecanismos financeiros, operacionais, para que, efetivamente, a reforma agrária não seja só um discurso, uma preocupação nossa, mas se torne uma realidade como a proporcionada pelo Prefeito de Rio Branco, Jorge Viana, quando implanta esses núcleos. Creio que existem soluções criativas, questões que podem ser resolvidas. Mas é fundamental marcharmos e buscarmos soluções competentes e sérias para essa matéria. Quero parabenizá-la por enfocar o referido tema. Todo drama do campo é uma chaga que fere a todos nós; temos que buscar, conjuntamente, com todos os partidos políticos, solução para essa questão. Meus parabéns.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço a V. Exª pelo aparte com o qual concordo inteiramente.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, gostaria de fazer apenas uma alusão a um versículo da Bíblia, segundo Mateus:

      "E, quanto ao vestido, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo como eles crescem; não trabalham, nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles."

Do ponto de vista cristão, ao ouvir essas palavras, parece que envolver-se em questões materiais é algo descartável; mas, no que se refere à reforma agrária, eu diria que é altamente pertinente, pois, para que os lírios do campo sejam tão bonitos, eles precisam de terra para fincar suas raízes. Penso que a sociedade brasileira precisa fincar raízes na terra.

A terra é generosa. Não é à toa que ela é redonda; ela é redonda porque parece a barriga de uma grande mãe que, com certeza, oferecerá espaço para todos nós. É fundamental que se trate a questão da terra não só quanto ao ponto de vista político mas também do ponto de vista da sua simbologia, do que ela representa para a raça humana. É impossível seres humanos viverem do ar. Não existe essa possibilidade. Então, só podemos existir fixados à terra.

Portanto, o Presidente da República tem essa oportunidade. Nós, da esquerda, temos essa oportunidade de trabalharmos com afinco, como estamos fazendo há tantos anos, no sentido de implantarmos uma reforma agrária. E eu diria: é quase unanimidade. Só não o é para aqueles que não entendem que a reforma agrária é um dos primeiros passos para se fazer o desenvolvimento econômico de qualquer país, até nos países capitalistas. Não é preciso pensar que reforma agrária é fazer socialismo; os países capitalistas só conseguiram se desenvolver após a democratização da terra.

Com essas palavras, quero dizer que poderemos, a partir de agora, inaugurar uma nova fase de discussão no que se refere a essa questão que parece tão superada, mas, na verdade, do ponto de vista das soluções, continua atual. Quero, mais uma vez, reiterar que as infelizes palavras aqui atribuídas ao Sr. Francisco Graziano, da minha parte, não serão motivo de descrença na contribuição de S. Sª. De nossa parte, há todo o interesse no desenvolvimento desse processo.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 29/09/1995 - Página 17071