Discurso durante a 160ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

A CULTURA PATRIMONIALISTA E A AUSENCIA DE ETICA NA VIDA PUBLICA NACIONAL.

Autor
Jefferson Peres (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.:
  • A CULTURA PATRIMONIALISTA E A AUSENCIA DE ETICA NA VIDA PUBLICA NACIONAL.
Aparteantes
Ernandes Amorim, Lúcio Alcântara.
Publicação
Publicação no DSF de 03/10/1995 - Página 17213
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, CARACTERISTICA, CULTURA, PAIS, NECESSIDADE, ETICA, MORAL, ADMINISTRAÇÃO PUBLICA, VIABILIDADE, DESENVOLVIMENTO NACIONAL.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PSDB-AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, apesar dos inegáveis avanços nos últimos anos, acontecimentos recentes demonstram que ainda existe muito a fazer, em termos de ética, em nossa vida pública. Infelizmente, remanesce, disfarçado, mas generalizado, o ranço da cultura patrimonialista, subjacente à nossa formação histórica.

Trata-se da concepção distorcida da coisa pública como extensão do patrimônio particular dos detentores do Poder, a ser usada, por meios lícitos ou ilícitos, em favor dos governantes e de seus parentes, amigos e correligionários. Quando falo em meios lícitos, para condená-los, refiro-me ao chamado "furto legalizado", ou seja, ao uso de instrumentos legais, mas antiéticos, para o embolsamento indevido de dinheiro público.

Essa cultura patrimonialista, no Brasil, mescla-se a outro característico traço cultural de nossa sociedade, que é a esperteza. Valorizada socialmente, é encarada com admiração em todas as classes e atividades, seja a malandragem nas camadas populares, seja a concorrência desleal nos meios empresarias ou, ainda, a falta de escrúpulos em política.

Em verdade, como gosto de repetir, esperteza, em sentido amplo, não é apenas rima, como também sinônimo de safadeza. Consiste na arte da mentira, do engodo e da dissimulação como práticas habituais na maneira de ser e de agir. A rigor, é a aplicação sistemática, nas relações humanas, da famigerada "Lei de Gérson", que estabelece como válido obter vantagem sempre, em tudo. Portanto, uma regra profundamente contrária aos princípios éticos, a merecer execração ao invés de exaltação, como desgraçadamente ocorre.

A conjugação desses dois fenômenos - a cultura patrimonialista e a valorização da esperteza - gerou um clima social de permissividade, favorecedor do comportamento irresponsável de grande parte da classe política. Isso provocou, ao longo do tempo, um processo degenerativo com as piores conseqüências. A res publica, ou seja, a coisa pública, se desvirtuou em rex nullius, isto é, em coisa de ninguém, de livre utilização pelos governantes de plantão. E o estado de direito, caracterizado como o governo impessoal, sob o primado da lei, degenerou no império do arbítrio, com os donos do poder a conduzi-lo acima da Lei e a serviço dos "amigos do rei".

Faço estas considerações a propósito de fatos recentes, ocorridos nas esferas política, administrativa e judiciária, que demonstram como, infelizmente, continuam baixos os padrões éticos nos mais altos escalões da nossa vida pública.

Os episódios envolvendo os Srs. José Milton Dallari e Henrique Hargreaves são exemplares, como demonstração dessa permissividade. Dois ocupantes de elevados cargos no Governo Federal, com vasta experiência de serviço público, viram-se pilhados em situações claramente incompatíveis com as funções que exerciam. E foram compelidos a pedir exoneração, porque teimavam em permanecer nos cargos, convictos de que nada tinham feito de errado. Quando pessoas desse nível pensam e agem dessa maneira, pode-se avaliar o grau de frouxidão moral dos nossos costumes político-administrativos.

Logo depois, um grupo numeroso de Deputados votava, na Câmara Federal, a favor de um projeto de lei que concedia benefícios fiscais a emissoras de rádio e televisão, embora fossem eles mesmos proprietários de empresas do ramo. Instados por alguns colegas a se absterem de votar, por estarem legislando em causa própria, recusaram-se a fazê-lo, e um deles procurou justificar-se com a cínica alegação de que a emissora não lhe pertencia, mas a sua esposa. Um despudor que dispensa comentários.

O Sr. Lúcio Alcântara - V. Exª me concede um aparte?

O SR. JEFFERSON PÉRES - Tem V. Exª a palavra.

O Sr. Lúcio Alcântara - Desde o primeiro dia em que chegou a esta Casa, V. Exª tem sido um homem permanentemente preocupado com a busca da moralidade e da austeridade na vida pública. Também tenho me ocupado desse assunto, como diversos outros Srs. Senadores aqui na Casa. Essa questão no âmbito do Poder Executivo, esses casos que V. Exª traz a título de exemplo, evocando as nossas origens patrimonialistas e de permissividade, ilustram muito bem como o Executivo tem abrigado servidores ocupantes de cargos elevados e que mantêm ligações com a iniciativa privada. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, nessa viagem à Europa, declarou em alto e bom som, respondendo, de alguma maneira, a uma provocação do Senador Pedro Simon feita aqui desta tribuna, que não admitiria mais em seu Governo ninguém que, ocupando um cargo de confiança, tivesse ainda vínculos com a iniciativa privada. Supõe-se que doravante, diante da afirmação feita por Sua Excelência, ninguém mais poderá desconhecer a recomendação ou a determinação presidencial. Os jornais dão conta de que estaria em gestação um decreto ou uma norma do Poder Executivo no sentido de disciplinar ainda mais essas relações entre a iniciativa privada e o Poder Público. Penso até que de alguma maneira isso é desnecessário, porque o Regime Jurídico Único, o Código de Ética e a Lei do Colarinho Branco já abrigam perfeitamente todas as hipóteses.

É querer, talvez, estabelecer detalhes que obriguem os ocupantes dos cargos a saberem que, realmente, os limites são muito rígidos. Mas eu queria levantar um outro problema, a propósito da última afirmação de V. Exª, fazendo menção ao episódio de votação de matéria que interessava aos proprietários ou sócios de emissoras de rádio e de televisão. Entendo que, no âmbito do Poder Legislativo, a questão de interesses de Parlamentares e até de servidores em relação a matérias que aqui tramitam e que são apreciadas está mal discutida, ou sequer foi discutida ainda.

Quais são os limites, quais são os impedimentos a que se devem ater os Srs. Congressistas, Senadores e Deputados Federais, em relação a essas matérias? Há, por exemplo, notícias de Parlamentares que são eleitos, ostensiva, clara e assumidamente, por determinadas categorias laborais, econômicas ou sociais e com o compromisso claro de, no Congresso, defender os interesses dessas categorias. São, portanto, representantes de segmentos da sociedade. E claro está que, aqui, irão votar de acordo com os interesses dessas classes que representam. Existem os ruralistas, os que representam os metalúrgicos, e assim por diante. Poderíamos aqui citar várias situações.

Recentemente, na Inglaterra, no Reino Unido, foi feito um estudo, que se chama Relatório Nolan, nome de um parlamentar britânico, que procurou estudar exaustivamente todas essas situação de limites de atuação parlamentar e dos lobbies que gravitam em torno do Congresso e dos interesses próprios desses parlamentares. Quero concluir, em primeiro, louvando a persistência de V. Exª em relação a esse tema, e em segundo, lembrando à Mesa que o próprio Conselho de Ética do Senado, que diz respeito à Resolução nº 20, até hoje não foi instalado, cujas datas foram estabelecidas, tendo seus prazos vencidos, e eleitos os seus membros. Há obrigações que estão nessa Resolução que todos nós devemos cumprir, e que até então não foram observadas, tais como publicação de declaração de bens, uma série de exigências, inclusive, na grande imprensa dos Estados. É preciso que a Mesa, e neste aparte, de certa maneira, provoco a Mesa, se manifeste sobre a instalação desse Conselho. Do contrário - queira Deus que não! -, qualquer dia teremos um problema dessa natureza novamente e, como o Conselho não está instalado, não foi implantado, não tem regimento, não tem dirigente, a situação ficará indefinida. Quero, neste aparte que faço ao discurso de V. Exª, pedir que a Mesa se posicione claramente sobre a instalação do Conselho de Ética, previsto na Resolução nº 20 do Senado Federal.

O SR. JEFFERSON PÉRES - Muito obrigado, Senador Lúcio Alcântara, seu aparte fica sendo parte integrante do meu discurso e reforço seu apelo à Mesa para que seja instalada a Comissão de Ética. Sr. Presidente, que isso tenha sido fruto de esquecimento e não um sintoma de baixa estima pela ética nesta Casa!

Ao mesmo tempo, ocorria um movimento de Deputados - ao que parece abortado - em favor do aumento de seus subsídios, sob a ameaça de deflagrarem uma greve branca. Nem discuto se nós, Parlamentares, estamos com nossa remuneração defasada. O certo é que um aumento, agora, autoconcedido, além de ilegal, seria profundamente imoral. Falar em sacrifício financeiro de Deputados e Senadores soa afrontoso para milhões de assalariados muito mais sacrificados do que nós. E ameaçar com greve, então, significa uma completa falta de responsabilidade e decência.

Fatos como esses, exemplificados acima, lamentavelmente botam a perder todo o esforço de tantos políticos sérios, no sentido de recuperar a estima e o respeito do povo pelos nossos homens públicos. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas é preciso não desanimar. O tempo é a nosso favor. Se eu não tivesse certeza disso, já teria desistido da vida pública.

No âmbito do Judiciário, a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, recentemente, demonstra que a falta de ética não afeta apenas os Poderes Legislativos e Executivo, mas também o poder togado, ao qual se impõe o dever de praticá-la, talvez mais ainda do que os outros. No entanto, a decisão dessa corte constitui a sua mais completa negação. Os Srs. Desembargadores simplesmente cometeram o inadmissível: julgaram em causa própria. Como se sabe, na apreciação de um mandado de segurança, impetrado por um desembargador para receber as perdas do Plano Bresser, o Tribunal concedeu a medida e estendeu-a aos outros membros e a todos os funcionários, inclusive os aposentados. Como se não bastasse, determinaram o pagamento antes da publicação do acórdão e, portanto, antes que o Advogado-Geral da União pudesse recorrer da sentença ao Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, sangraram os cofres públicos em algo em torno de R$30 milhões.

Ocorre, ainda, que não precisa ser jurista para constatar que a decisão do Tribunal, além de antiética, é também flagrantemente inconstitucional, tomada ao arrepio do que estabelece o art. 102, I, alínea n, da Carta Magna, que leio:

      "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

      I - processar e julgar, originariamente:

      n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam indireta ou diretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados".

Mais claro, impossível. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal não podia julgar esse mandado de segurança, porque é competência originária do Supremo Tribunal Federal; mas julgaram em causa própria.

O Sr. Ernandes Amorim - V. Exª me permite um aparte, Senador Jefferson Péres?

O SR. JEFFERSON PÉRES - Concedo-lhe o aparte, Senador Ernandes Amorim.

O SR. ERNANDES AMORIM - Senador Jefferson Péres, há pouco V. Exª falou na questão de aumento, ou reajustes de salários parlamentares. Na verdade, somos contra o aumento de salários, até porque, quando o Parlamentar veio para esta Casa ou ao Congresso, não veio a procura de salário. Se tivéssemos procurando salário, estaríamos batendo na porta das fábricas ou em outros setores. Viemos aqui desempenhar a função de Legislador. V. Exª e os nobres pares sabem das dificuldades que se tem para manter o mandato de Senador. O salário de pouco mais de cinco mil reais que ganhamos é o suficiente e um ótimo salário. Mas sou favorável a que o Parlamentar tenha uma condição mínima de exercer a sua função como Senador. Daqui a pouco, o cidadão comum vai perguntar a um Senador como ele mantém o seu mandato. Tenho colegas aqui que já disseram que pagam dois ou três auxiliares por fora, gastando R$7.500,00, segundo o Senador Ney Suassuna. Como é que ele ganha R$5.300,00 e paga R$7.500,00 a três assessores que não fazem parte do Quadro da Casa? Então, na realidade, não precisamos de aumento de salário. A imprensa, às vezes, dá uma conotação de que estamos cobrando aqui esse aumento. Não, o que estamos cobrando é uma condição mínima de trabalho para o Parlamentar. O outro assunto que queria tratar refere-se ao Conselho que o nobre Senador cobrou a instalação do Conselho de Ética.

Resta saber se, neste Conselho de Ética, vão estar também os Senadores que abocanham os Ministérios e os cargos da República. Tomara que sejam estes os escolhidos, porque estes cargos importantes só sobram para meia dúzia de Parlamentares. Oxalá sejam eles os escolhidos para participar desta Comissão.

Obrigado.

O SR. JEFFERSON PÉRES - Concluo, Sr. Presidente.

A decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal evidencia que essa Corte, em plena Capital da República, não se pejou de violar, ao mesmo tempo, as duas leis supremas do País: a Constituição Federal e o Código de Ética.

Quando altos funcionários, Parlamentares e Magistrados, se comportam desta maneira, sem que nada lhes aconteça, é sinal de que os mecanismos institucionais no Brasil são frágeis e inócuos, porque não basta que a reação da imprensa tenha frustrado ou anulado esses atos condenáveis, é indispensável também a punição implacável dos seus autores.

Talvez o Brasil esteja necessitando, com urgência, de uma "faxina cívica", quem sabe da repetição de uma "Operação Mãos Limpas", `a italiana, como única maneira, talvez, de impedir que o País continue sendo, não a austera República sonhada pelos seus fundadores, mas, ao revés, este envelhecido reino da corrupção e da impunidade.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/10/1995 - Página 17213