Discurso no Senado Federal

CENTENARIO DE NASCIMENTO DO POETA PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA.

Autor
Joel de Hollanda (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Joel de Hollanda Cordeiro
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • CENTENARIO DE NASCIMENTO DO POETA PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Josaphat Marinho, Marina Silva.
Publicação
Publicação no DSF de 10/10/1995 - Página 718
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ASCENSO FERREIRA, POETA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).

O SR. JOEL DE HOLLANDA (PFL-PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, feliz o povo que pode esquecer por instantes as aflições do dia-a-dia, fazer uma pausa em meio às muitas guerras que guerreia, parar tudo, olhar para dentro de si mesmo e prestar homenagem à Poesia.

Feliz o povo que encontra tempo e inspiração para louvar os seus poetas!

Feliz o povo que não esquece os seus poetas!

Feliz o povo que louva os poetas que tem!

Felizes somos nós que podemos hoje abrir uma pausa em meio ao tumulto e à urgência dos fatos e celebrar o centenário de nascimento do poeta pernambucano Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira, ou simplesmente, Ascenso Ferreira, o mais oral dos modernistas nordestinos, o mais popular dos poetas eruditos do Nordeste e, quem sabe, o mais erudito dos nossos poetas populares.

Um poeta nordestino, um poeta brasileiro que soube cantar o seu povo, por isso mesmo, um poeta universal.

Um poeta que ainda no começo deste século retomava a tradição oral da poesia ocidental, uma poesia mais para ser dita do que para ser apenas lida, como o foi nos primórdios a poesia de Homero.

Uma poesia que demonstra a artificialidade e a fragilidade de antinomias que, ainda hoje, insistem em separar o popular do erudito, o branco do negro, o particular e do universal.

Um poeta epicurista, que fez o elogio da preguiça (pernas pro ar, que ninguém é de ferro!) e viveu intensamente o seu tempo, louvando a vida, mas temendo a Deus, pintando em pinceladas de som e de cores a fisionomia interior do povo mestiço do Brasil.

Ascenso nos deixou uma poesia tão sonora, tão musical que foi das primeiras a ser divulgada em disco. Um recurso moderno que guardou para a posteridade o vozeirão grave do poeta, quase cantando, quase rezando, a nos dizer que os engenhos de sua terra,

      só os nomes fazem sonhar!

      Esperança! Estrela d'Alva!

      Flor do Bosque! Bom Mirar!

Ainda nos idos dos anos vinte, quando o Brasil ainda se indagava, com Mário de Andrade, Gilberto Freyre e outros jovens talentos nacionais, sobre a sua verdadeira face, indeciso ainda quanto à sua verdadeira identidade, o pernambucano Ascenso Ferreira identificava a síntese da alma brasileira, contemporizadora de contrários apenas aparentes, cantando essa

      ... gente que tão

      negramente...

      caboclamente...

      portuguesamente...

      vivia!

Ascenso resumia a identidade nacional, em meio à enorme riqueza da diversidade cultural de um povo em formação, um processo de transculturação de um povo em busca de si mesmo, mas ainda fascinado pelo inegável apelo do colonizador que há pouco repelira. A poesia de Ascenso Ferreira tem o cheiro desse povo. Um povo enfeitiçado pelas

      ...eternas naus do sonho,

que riscavam o azul dos seus horizontes, guardando em seu bojo todas as quimeras, e todos os devaneios que pareciam abarrotar os porões daquelas

      ...naus que ao longe passavam

      de "Oropa, França e Bahia"!

Ainda hoje é válido esse retrato de um Brasil mulato e mestiço, se olhando louro e escandinavo no espelho de sua televisão, ainda se perguntando sobre a sua verdadeira identidade, e com os olhos ávidos nas naus de sonho que agora nos chegam de Miami e Nova Iorque, como antes nos vinham do Reino, ou da Corte, de Londres ou de Paris.

      Paris que dá modas

      costumes e gostos

      pinturas pros rostos,

      carvão e carmim!

São versos tão limpos e tão sonoros que alguns até pensaram que eram versos folclóricos ao ouvir, por exemplo, o Trem das Alagoas repetir na melodia dos seus trilhos:

      Vou danado pra Catende,

      vou danado pra Catende,

      vou danado pra Catende

      com vontade de chegar!

Se ser poeta é traçar, mesmo em vida, indícios de eternidade, a poesia de Ascenso o mantém vivo, como o seu

      Mestre Carlos, rei dos mestres, (que)

      aprendeu sem se ensinar!

A poesia de Ascenso Ferreira é tão nordestina que alguns até pensaram que eram versos de cordel.

Mas essa poesia é também uma poesia urbana, sofisticada e exigente, uma poesia universal capaz de cantar os outos povos da América, por trás da aparente ingenuidade dos seus temas. Como no seu pouco divulgado Cuba Libre:

Ayer eras una mescla de ron y Coca-Cola

...después, vinieron los barbudos de Sierra Maestra,

...entonces el ron ha tomado el espiritu de la verdad.

Ou naquele outro verso, tão atual, em que o poeta, atento ao mundo que o rodeia, denuncia a ganância dos eternos especuladores:

Caetano Rebouças & Cia.

ganhou bem mil contos na tal de inflação!

Uma poesia urbana de raízes rurais, exatamente como o País que retratava, e que vivia uma outra face de sua busca de identidade, premido entre os apelos da modernização que nos chegavam junto com as notícias da Guerra e o risco de perda de seus tesouros do passado. Ascenso mostrava que

as panzer-divisões de Prédios-Cimento-Armado

estão tomando de assalto nossa Recife colonial.

abatendo por terra todas as tradições

E descrevia a

A tragédia iminente

dos velhos templos monumentais

espetacularmente cercados por elas,

no meio das praças públicas

como ilustres prisioneiros de guerra

expostos à curiosidade das multidões.

O mesmo processo que, no campo, substituía os velhos engenhos de açúcar pelas modernas usinas, o que levava o poeta a perguntar:

- Pedro Velho, Cadê teu engenho?

- A usina passou no papo!

E destruiu as velhas casas de senhor de engenho, que ele nunca foi, e desfez o seu amplo terraço

prestigiado por quatro séculos de assombrações!

Uma vez mais, o registro do grande desafio do desenvolvimento de um País que talvez não precisasse perder tanta poesia para poder crescer. Talvez nem fosse preciso

      ...meter a picareta nas pedras lendárias

      destruir os quartos mal-assombrados,

      enxotar os fantasmas de saias de seda

      e capas de ermitões...

Ascenso foi também um poeta moderno que deixou o registro de um outro desafio imenso, a conciliação nem sempre possível entre sentimento e razão.

O poeta gostaria de se submeter por inteiro ao primado do sentimento para fazer poesia a partir dos limites que em si mesmo pressentia, ao se colocar nas margens pouco nítidas, justamente ali,

      onde a minha sensibilidade começa

      e a minha razão acaba.

Mas a vida é feita de sentimento e razão, e a poesia se comprime entre os limites dessas margens, obrigando o poeta a confessar que

      tudo fiz para escrever o teu poema

      somente com o coração, porém não posso.

      A culpa vem do fundo dos séculos,

      dos meus troncos ancestrais.

O Sr. Josaphat Marinho - V. Exª me permite um aparte?

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Concedo o aparte a V. Exª, com muito prazer.

O Sr. Josaphat Marinho - Nobre Senador Joel de Hollanda, quero felicitá-lo pela homenagem que presta ao poeta. Num País em que os grandes, os poderosos, os detentores de poder são lembrados, V. Exª eleva o seu pensamento para homenagear quem soube lembrar o povo, quem soube aliar a idéia do comum com a idéia da cultura e, assim, concorrer para o desenvolvimento intelectual do País, que reside exatamente na conciliação do pensamento da elite com o sentimento popular. Também na Bahia, houve alguns desses poetas, como, inclusive, o velho Lulu Parola, que, durante anos seguidos, escrevia diariamente uma coluna, em verso, cantando e rindo, onde examinava os sentimentos, os problemas, as festas, tudo que era relativo ao povo. E assim se consagrou. E assim também se consagrou Ascenso Ferreira.

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Agradeço ao nobre Senador Josaphat Marinho a gentileza do aparte e o incorporo com muita alegria ao meu modesto pronunciamento.

V. Exª conseguiu, com muita sensibilidade, mostrar como é importante que esta Casa faça uma pausa nos debates políticos, econômicos, financeiros e reserve um espaço para homenagear figuras humanas extraordinárias, como são os poetas da Bahia e também o grande poeta pernambucano, Ascenso Ferreira, cujo centenário se completa este ano.

O poeta também teve as suas incursões pela administração pública, conduzido que foi - não sei se V. Exª sabe - por Juscelino Kubitschek, que gostava muito de ouvir Ascenso Ferreira recitar os seus poemas. E numa das vezes que passou por Pernambuco, disse: "Ascenso, quando eu for Presidente da República, vou lembrar-me de você. Você não vai ficar esquecido". E aconteceu realmente. Juscelino Kubitschek conseguiu eleger-se Presidente da República e se lembrou do compromisso que tinha assumido com o poeta. Perguntou aos políticos de Pernambuco: "Onde tem vaga, em Pernambuco, que eu pudesse designar para Ascenso Ferreira?". Eles responderam: "Tem o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Gilberto Freire andou brigando com o Ministério da Educação, e o cargo está vago". Juscelino nomeou Ascenso Ferreira para Presidente do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. No dia seguinte, começaram as atividades de Ascenso Ferreira, as atividades burocráticas, mas também as solicitações de nomeação de fulano, pedido de carro oficial para beltrano, uma função gratificada para sicrano, etc. Tudo isso foi atormentando a cabeça do poeta. Ao final da tarde, Ascenso Ferreira passou um telegrama para Juscelino Kubitschek dizendo: "Presidente Juscelino, pedi a V. Exª um emprego. V. Exª deu-me uma encrenca. Fique com ela que eu vou fazer minha poesia."

Esse é o Ascenso que hoje estamos homenageando. Tive o privilégio de conhecê-lo ainda menino e guardo a lembrança de um homem que amava o Nordeste, que amava Pernambuco e que exaltou, como nenhum outro poeta, o sentimento do povo humilde, o povo simples da minha terra.

Por isso, Sr. Presidente, aproveitei um pouco esta tarde para neste parêntese fazer uma homenagem ao grande poeta cuja voz está imortalizada nos discos que ainda hoje podem ser encontrados lá no Recife. Sua obra atualmente é estudada em várias universidades estrangeiras pelo que ela representou para a nossa poesia, para a cultura nacional.

V. Exª me permite um aparte nobre Senador.

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Pois não nobre Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral - Senador Joel de Hollanda, é mais do que oportuno o que V. Exª faz. Os poetas sonham porque acabam transformando em realidade os seus sonhos. Veja que V. Exª presta uma homenagem a Ascenso Ferreira que toda a nossa geração conheceu e aprendeu admirar. Ele era um dos poucos que dizia que nada tinha a perdoar porque ninguém o atingia com as suas ofensas; satírico como era, aliás, o termo seria impiedoso crítico. E a palavra de V. Exª vem mostrar que em verdade a poesia é um oásis na aridez do plenário desta tarde. E é tão oportuno o que V. Exª diz que me lembra certa poeta que dizia que amar a poesia era ser perseguido pela prosa. V. Exª está a demonstrar isso: ama a poesia e transforma a prosa do seu discurso também numa obra poética. Meus cumprimentos, Senador Joel de Hollanda.

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Agradeço com muita alegria o aparte do companheiro, Senador Bernardo Cabral. Na verdade, considero a poesia uma forma extremamente importante de expressão do ser humano e admiro os homens que conseguem, através da poesia, dizer coisas simples mas profundas, como fazia com propriedade Ascenso Ferreira.

É por isso que todos nós, sobretudo os que são de sua terra, temos um respeito todo especial pela figura extraordinária de Ascenso Ferreira pelo muito que ele contribuiu para a poesia pernambucana, nordestina e brasileira.

Muito obrigado a V. Exª pelo aparte.

A Srª Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Concedo, com muita alegria, o aparte à nobre Senadora Marina Silva.

A Srª Marina Silva - Quero parabenizá-lo pelo pronunciamento, Senador Joel de Hollanda, e pela forma como V. Exª está tratando aqui no plenário um tema que muitas vezes pode parecer inadequado a este salão azul, que do cândido passa aos áridos problemas do País. Nós, que abordamos a política, pensamos que ela só pode ser tratada com a carranca dos problemas. V. Exª, falando de uma maneira bastante leve, trata muito adequadamente, ao seu estilo, da poesia e da homenagem a um poeta de sua admiração e da sua região: Ascenso Ferreira. Gostaria de dizer que os poetas têm o dom da impunidade, porque navegam entre o divino e o profano; fazem a ponte entre o salão do Congresso e a senzala; passam da Avenida São João para os igarapés do Estado do Acre e do Amazonas. Penso que é também por meio da poesia ou de uma forma aparentemente sonhadora, que brota do fundo do coração, que tratamos também os problemas políticos. E, na política, não podemos perder algo que é fundamental: a dimensão humana. Ninguém mais do que os poetas sabe penetrar essa dimensão, que não podemos perder de vista. Sempre digo que o político não precisa ter cara, jeito e resposta de político. Às vezes, queremos ter resposta para tudo; mas, no seu pronunciamento, sem abordar nenhum tema específico, V. Exª talvez esteja abordando todos os temas, que é exatamente a dimensão da pessoa humana.

O SR. JOEL DE HOLLANDA - Agradeço a V. Exª, nobre Senadora Marina Silva, o aparte com que me distinguiu.

Concordo plenamente em que esta Casa, de vez em quando, estabeleça um intervalo para também homenagear aqueles que, com a poesia, as palavras, dizem verdades tão belas e profundas.

Em Ascenso Ferreira podemos ressaltar a sonoridade e a leveza de seus versos que, muitas vezes, eram até confundidos com o próprio folclore, que V. Exª tão bem conhece.

Ascenso, em palavras suaves, meigas dizia muito da crise social dos nordestinos e pernambucanos, do homem que trabalhava no eito da cana, das crianças que, desde cedo, eram transformadas em trabalhadores, e muitas vezes eram do tamanho do facão que usavam para cortar cana nos canaviais de Pernambuco.

Por isso, agradeço o aparte de V. Exª e o incorporo, com muita alegria, ao meu pronunciamento.

Estou terminando meu discurso, Sr. Presidente.

Ascenso era um tronco ancestral que funda suas raízes na cultura do ocidente, na trova medieval, no bardo que semeia a poesia de porta em porta, um tronco fundamentalmente encravado no exclusivo território da poesia, que é o território da Vida. Um território de sonho que também se deixava invadir de racionalidade e, mais uma vez epicurista, bramia que

a vida pertence aos vivos

e nasce do Amor!

Ascenso Ferreira, poeta brasileiro do Nordeste, homem pobre e honesto, perdulário e bon-vivant, do alto dos seus quase dois metros de altura, soube cantar como ninguém

a fartura espetaculosa dos coronéis,

em um Nordeste inexplicavelmente pobre porque, como ele dizia,

...o homem da minha terra, pra viver, basta pescar.

E se estiver enfarado de peixe,

arma o mondé

e vai dormir e sonhar,

que pela manhã

tem paca louçã,

tatu verdadeiro

ou jurupará.

Um país de lutares, porque

os guerreiros de minha terra já nascem feitos

brigar é do seu destino!

Feliz o povo que festeja os seus poetas!

Felizes os que, como nós, podemos parar para louvar a poesia e saudar

os bêbados de amor (que vêm) aos tombos

pela arena do bumba-meu-boi da vida.

Felizes os que podemos celebrar nesta data o centenário do cidadão brasileiro, de Palmares, Pernambuco, Ascenso Ferreira, um poeta do seu povo, uma testemunha do seu tempo.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/10/1995 - Página 718