Pronunciamento de Marina Silva em 09/10/1995
Discurso no Senado Federal
REGISTRANDO OS 967 DIAS DE LIBERDADE DOS ASSASSINOS DE CHICO MENDES. O SUICIDIO DE INDIGENAS NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL.
- Autor
- Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
- Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
POLITICA INDIGENISTA.:
- REGISTRANDO OS 967 DIAS DE LIBERDADE DOS ASSASSINOS DE CHICO MENDES. O SUICIDIO DE INDIGENAS NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL.
- Aparteantes
- Marina Silva.
- Publicação
- Publicação no DSF de 10/10/1995 - Página 707
- Assunto
- Outros > POLITICA INDIGENISTA.
- Indexação
-
- COMENTARIO, AUSENCIA, PRISÃO, CRIMINOSO, RESPONSAVEL, HOMICIDIO, CHICO MENDES, LIDER, SERINGUEIRO, ESTADO DO ACRE (AC).
- APREENSÃO, ORADOR, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, MARIO CESAR CARVALHO, JANIO DE FREITAS, JORNALISTA, DENUNCIA, SUICIDIO, INDIO, HOMICIDIO, COMUNIDADE INDIGENA, ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL (MS), ESTADO DE MATO GROSSO (MT).
- DEFESA, NECESSIDADE, EFICACIA, SOLUÇÃO, PROBLEMA, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, GARANTIA, EXISTENCIA, GRUPO INDIGENA, MANUTENÇÃO, RESPEITO, TRADIÇÃO, CULTURA, RELIGIÃO.
- CRITICA, PROJETO, APRESENTAÇÃO, PROGRAMA, TELEVISÃO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DESRESPEITO, VIDA HUMANA, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA.
A SRª MARINA SILVA - (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, minhas Senhoras e meus Senhores, em primeiro lugar, eu gostaria de registrar, desta tribuna, que é com certa tristeza, mas também com um imenso desejo de poder colaborar, que venho fazer este pronunciamento. Primeiro por ser um tema que, muitas vezes, não é colocado na agenda nacional, como está em moda falarmos. Na agenda nacional, hoje, temos as Reformas Administrativa, Tributária, Previdenciária; enfim, não estão incluídos alguns problemas que não são de particulares, mas da humanidade. E como um grande problema da humanidade quero trazer, aqui, hoje, a questão indígena.
Antes de falar no tema, eu gostaria de fazer um registro. Hoje, dia 09 de outubro de 1995, faz 967 dias que os assassinos do Chico Mendes se encontram em liberdade, impunemente, no Peru ou na Bolívia. A prisão deles poder-se-ia dar se algumas buscas policiais fossem realmente feitas.
Sr. Presidente, há alguns dias, venho tentando fazer um pronunciamento sobre a questão dos suicídios dos índios do Mato Grosso do Sul, problema que vem sendo noticiado na imprensa. Mais precisamente, Janio de Freitas escreveu em sua coluna sobre o suicídio de uma indiazinha de 9 anos. Em se tratando do suicídio de uma criança, é como ele próprio diz: "É preciso que alguma coisa esteja extremamente errada, porque, em qualquer cultura, criança é criança." Infelizmente, na cultura dos índios, as crianças parecem ter problemas que eram, em outras épocas, apenas dos adultos.
Eu gostaria de lembrar que a palavra certa para explicar a morte desses índios em Mato Grosso do Sul talvez não seja suicídio, mas assassinato mesmo. O que leva uma tribo a cometer esse tipo de violência contra si mesma, negando a sua existência, eliminando-se a si própria? É claro que os antropólogos, sociólogos, psicólogos e políticos - inclusive eu - tentarão dar algum tipo de explicação para esse problema, mas talvez a mais adequada seja a de que essas comunidades, que têm sobre esse território domínios pré-colombianos, que antecedem a época dos nossos supostos descobridores, perderam a sua identidade, quando ficaram renegadas e confinadas em pequenas áreas de terra.
Muitas vezes, da tribuna desta Casa, já se ouviu que essas terras não podem ser utilizadas por indígenas porque contêm muitas riquezas. Esquecem que, em passado não tão longínquo, todo este território já lhes pertenceu.
Essa é a tragédia de um povo que não pertence a si mesmo, pois foi deslocado das suas tradições e cultura, das suas formas de religião e organização social, do seu espaço territorial, da sua compreensão de mundo e dos deuses que lhes protegiam. Essas pessoas perderam a si mesmas. Talvez, a manifestação desse elo perdido entre o que era humano, numa relação com a natureza, se manifeste nos índios do Mato Grosso do Sul, com a auto-eliminação, através do suicídio, até mesmo de crianças.
Isso tudo traz, também, a ligação com outro episódio. A Folha de S.Paulo de domingo retrata a saga de uma tribo, os Avá-Canoeiros, que foi trucidada. Essa tribo tinha, se não me engano, dois mil e quinhentos índios. Hoje, restam apenas dez, o equivalente a cinco dedos em cada mão, e ainda assim estão divididos. Uma parte está no Mato Grosso e, a outra, no Parque Xingu. Esses índios foram chacinados, de acordo com o depoimento doloroso de uma índia sobrevivente, que relata como o seu povo foi trucidado, segundo o estudo dos antropólogos, pela década de 60:
"Índio era muito. Naquela noite, dançou, cantou e tocou maracá até muito tarde. Índio dormia quando o homem chegou. Muita poeira. Índio grande matavam à bala; índio pequeno, com facão. Morreu índio homem, índio mulher, muita mulher com barriga; muito índio criança. Escapei escondida debaixo do milho. Tinha cabeças cortadas no chão. Pegavam cabeça de índio e fincavam no pau. Pau ficava espetado no chão com cabeça de índio. Fedia..."
Esse é o relato de uma índia de nome Matcha, que descreveu a chacina de 120 índios, segundo cálculos dos antropólogos.
Talvez esse tema esteja desfocado de uma série de temas importantes que temos que tratar aqui, mas o considero muito importante porque revela uma parte da natureza humana, que não pode ser negligenciada, não pode ser esquecida, qual seja a relação entre culturas diferentes, entre seres diferentes. Essa cultura que chegou aqui e ocupou esta nobre Casa, que é o território brasileiro, não pode esquecer o que fez a esses nossos irmãos índios. Aliás, a Europa nos deve isso ao homem americano, porque, em nome da civilização, sob o argumento de levar Deus aos pagãos, levou à morte milhares e milhares de seres humanos.
É obrigação das autoridades brasileiras e desta Casa debruçar-se sobre esse tema. Estamos discutindo a questão da reforma agrária, uma reforma agrária para brancos excluídos da terra, mas precisamos encarar de frente o problema da demarcação das terras indígenas. E não é uma demarcação simplesmente para confiná-los num pedaço de terra onde seja impossível se produzir de forma sustentável, mas uma demarcação que lhes possibilite, além da sobrevivência econômica, a sobrevivência da sua tradição, da sua cultura, da sua religiosidade e da sua maneira de se relacionar com as outras culturas e com o mundo.
O Sr. Bernardo Cabral - Senadora Marina Silva, permite-me V. Exª um aparte?
A SRª MARINA SILVA - Concedo o aparte ao Senador Bernardo Cabral.
O Sr. Bernardo Cabral - Eminente Senadora Marina Silva, o tema é mais do que oportuno. Entendo que V. Exª não deve ficar intranqüila supondo que o tema da reforma possa estar acima do tema que V. Exª traz e que reflete, inequivocamente, uma parcela das nossas raízes, se não a principal raiz brasileira. Veja que V. Exª tem razão porque o próprio Texto Constitucional diz, em seu art. 231:
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
V. Exª traz à discussão o que ainda há pouco registrou: apenas 10 índios sobrevivem e o que é mais triste e lamentável é saber que, se não houver a união acasaladora entre dois irmãos - portanto o incesto -, essa tribo está fadada a desaparecer. Não conheço qual a linha fundamental do restante do discurso de V. Exª, mas queira aceitar, nesta parte, a minha solidariedade.
A SRª MARINA SILVA - Agradeço a contribuição de V. Exª e incorporo-a ao meu modesto pronunciamento. Realmente, o que V. Exª aborda é muito grave, essa tribo, sua linhagem e sua raça só poderão continuar a existir se realmente houver um incesto entre os dois irmãos, os únicos que ainda têm possibilidade de procriar - um menino de oito anos e uma menina de seis anos -, porque os demais já têm idade avançada, principalmente as mulheres, que se tornaram chefes - algo que, inclusive, não acontecia anteriormente, hoje o pequeno grupo é chefiado por uma mulher -, e eles não têm mais como procriar. Esse é um problema grave, porque, na cultura deles, o incesto é punido com a morte.
E é claro que a todos nós cabe a reflexão de que a nossa cultura ocidental, que tanto condena o incesto do ponto de vista ético e moral, faz com que uma raça inteira praticamente desapareça e a única possibilidade de continuar existindo, de aumentar sua população, seria exatamente por meio daquilo que tanto condenamos.
Então, penso que devemos até mesmo questionar esses nossos valores quando eles, muitas vezes, não se traduzem em ações práticas, concretas. É preciso que o nosso discurso esteja de acordo com a prática.
E eu, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sinto-me à vontade para falar desse tema e, ao mesmo tempo, é com tristeza que falo. Por uma graça do destino também, tenho parentesco com índios; apesar de a minha família ser de negro legítimo com português legítimo, quis o destino que o meu primeiro marido, com o qual tenho dois filhos - a Shalom, de 14 anos e o Danilo, que completará 13 anos no dia 29 de outubro -, fosse de descendência Kaxinawá. Desse modo, meus dois filhos mais velhos são de descendência Kaxinawá. Portanto, sou parente dos índios também, de alguma forma, pelos meus filhos.
A eliminação dessas nossas tribos, dessa raça - a grande maioria delas - traz-nos um prejuízo muito grande.
Assisti, há alguns dias, um programa na TV Cultura, em que foi apresentado um documentário acerca do Projeto Genoma, que está tirando o sangue de povos isolados, principalmente de comunidades indígenas, para um grande estudo dos genes, etc, a fim de detectar formas de tratamento, especialmente para o diabetes, já que poucos são os índios que sofrem dessa doença. Dizia o pesquisador que, com o banco de sangue dessas populações indígenas - é claro que ele não dizia com essa frieza, não era esse o pensamento dele, ele estava avaliando criticamente -, a partir de agora, é como se eles realmente pudessem desaparecer, porque o que mais interessaria neles, o seu DNA, o seu sangue e a sua forma de existência estariam arquivados num grande banco de sangue desse tal Projeto Genoma.
Não devemos pensar nas comunidades indígenas quando pensamos em demarcar suas terras, em colaborar do ponto de vista de troca, com saúde, educação e uma série de coisas que eles também necessitam no intercâmbio com a nossa cultura; não apenas pelo que eles significam enquanto retorno para a nossa cultura, do ponto de vista prático, porque a sua própria existência, a sua presença, a sua diferença na face da terra já se constitui numa grande troca e retribuição.
Às vezes fico pensando se as populações Incas e Maias e todos os povos pré-colombianos não tivessem tido a sua cultura desaparecida quão ricas seriam a nossa raça e a nossa cultura. O que não teríamos nós, hoje, para nos relacionarmos com o diferente, de forma nova, que essas pessoas trariam para a nossa cultura ocidental!
Trata-se, portanto, de um perda irreparável, que poderíamos reparar, pelo menos em parte, com essas poucas comunidades que ainda existem espalhadas pelo mundo todo. A ciência não pode tratar os seres humanos apenas do ponto de vista prático, como estão tentando fazer nesse tal Projeto Genoma que, para mim, reflete muito o que estamos discutindo nesta Casa, que é a questão da Lei de Patentes.
Se for aprovado o projeto - parece-me até que o Relator já reviu essa possibilidade do patenteamento da vida e fico muito feliz por isso - esse tipo de coisa estará sendo instituído no nosso País e no mundo como uma das formas mais perversas de colonialismo, que é o colonialismo da própria existência, da própria capacidade de vida dessas populações.
Primeiramente, vieram aqui e nos tiraram o ouro. Agora, estão nos levando a madeira e querem levar a própria essência humana dessas comunidades. É o colonialismo mais perverso que poderíamos instituir em nome de um mercantilismo - que não é mais mercantilismo, pois não estamos mais em uma sociedade mercantil-, mas em nome de uma sede de comércio, onde tudo se transforma em mercadoria. E eu me recuso a fazer da vida uma mercadoria.
Para os que acreditam em Deus, a vida é uma dádiva de Deus e eu acredito n´Ele. Para os agnósticos, a vida deve ser respeitada pelo próprio homem que, se colocando em uma condição de não reconhecer a Deus, se colocam na condição do próprio Deus e assim deveriam respeitar a si mesmos.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trago à reflexão dos eminentes colegas essas duas matérias que me deixaram muito chocada: A primeira traz informações sobre uma indiazinha de 9 anos pendurada numa corda, enforcada, como se fosse um "ioiô humano"; e a segunda, sobre uma tribo que já teve uma grande população e hoje conta apenas 10 pessoas; sua única possibilidade de crescimento seria a procriação por meio de relação incestuosa entre dois irmãozinhos sobreviventes, uma de seis anos e o outro de oito anos.
Acredito que devemos pensar sobre isso. No momento em que o Governo está tentando rever o Decreto nº 22, devemos nos debruçar sobre a proposta governamental para, de alguma forma, dar nossa parcela de colaboração e evitar que atrocidades como essas continuem acontecendo no final do século XX, às vésperas do século XXI, em pleno processo de globalização, em pleno processo da revolução tecnológica. Insisto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não é revolução tecnológica benéfica aquela que não se traduz necessariamente em benefícios para a comunidade, e se queremos globalizar tanto os lucros para alguns, devemos aprender a globalizar também o sentido da ética e da solidariedade que é disso que esses pobres estão precisando e é o que precisamos fazer por nós mesmos, porque se não formos capazes de fazê-lo, estaremos renegando nossa condição humana, nossa capacidade de perceber o outro e perceber a si mesmo.
Solicito à Mesa, Sr. Presidente, que faça constar de meu pronunciamento os documentos a que fiz referência.
Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.