Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AOS 30 ANOS DE FUNDAÇÃO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AOS 30 ANOS DE FUNDAÇÃO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO.
Publicação
Publicação no DCN2 de 26/04/1995 - Página 6236
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, EMISSORA, TELEVISÃO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ARTHUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador. ) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Sr. João Roberto Marinho, por oportunidade de natureza profissional, pude acompanhar de perto, dia a dia, o processo de evolução da Rede Globo e da televisão brasileira, desde o final da década de 60 até hoje, época em que acompanho, não com tanto apuro, este fenômeno absolutamente novo, inusitado, transformador da vida brasileira.

Talvez o grande sentido da televisão no Brasil seja o de haver sabido ocupar o grande vazio cultural desta Nação. O País conseguiu muitas vitórias. Conseguiu avanços econômicos fundamentais. No entanto, não conseguiu - esse é um dos nossos agravos - sequer educar-se no nível básico e tem grande dificuldade de educar-se no nível médio. Raras escolas brasileiras, a despeito do que desejaram os principais educadores brasileiros, possuem uma biblioteca; livrarias há apenas cerca de 700 em todo o País. O Brasil vive, há décadas, um grande vazio cultural.

A televisão brasileira, mercê de uma série de coincidências mescladas ao apoio e à lucidez de seus dirigentes, juntou alguns elementos, que eu gostaria de trazer à consideração dos Srs. Senadores nesta data.

O primeiro elemento determinante do êxito da Rede Globo foi haver acertado no seu elo mercadológico. Diferentemente dos outros meios de origem intelectual, a Rede Globo, nos seus primeiros momentos, não se preocupou propriamente em ganhar as elites intelectuais, tampouco as classes médias. Buscou, sim, estabelecer um eixo mercadológico com os segmentos majoritários da população que se situam naquilo que os sociólogos chamam de classe "c" e "d". Esse encontro do elo mercadológico permitiu à Rede Globo alguns aspectos que foram inteiramente novos na sistemática da comunicação do País.

Primeiro, à época utilizou - o que era uma novidade e, hoje, é uma palavra comum na boca de qualquer pessoa - iniciantes técnicas de marketing e crescentes estudos de mercado. E, ao falar em mercado, cito o segundo ponto decisivo: a descoberta da existência, naquele Brasil da década de sessenta, de um mercado com características peculiares, o qual, mediante um estudo paulatino dos seus comportamentos, de suas necessidades, e, sobretudo, de suas vontades, a Rede Globo soube adequar um produto-programa claramente dirigido a esses segmentos e estabelecer um elo de natureza mercadológica que lhe deu a base de sustentação do seu formidável desenvolvimento.

É, talvez, sobre esse admirável desenvolvimento, além do acerto da opção mercadológica da emissora àquele tempo, que eu gostaria de dar algumas palavras. Obtida essa vinculação profunda ao mercado real do País, com suas deficiências, limitações e possibilidades, com a sua crescente pressão sobre o consumo, paralelo a um processo de desenvolvimento que começava a ampliar as bases de produção tecnológica e industrial do País, estabelecido este elo, a rede se desenvolveu nalgumas direções. Isso aconteceu em meados da década de 70, quando determinou, em primeiro lugar, uma mudança fundamental na sua estratégia de informação, na sua estratégia telejornalística. Segundo, quando determinou, também, para surpresa de muitos, uma estratégia muito clara na linha de algo que hoje tem uma palavra própria - e talvez eu a tenha usado pela primeira vez, como jornalista: a teledramaturgia.

Aquele era um momento especial e curioso da vida brasileira. Os teatros estavam fechados, os principais autores brasileiros estavam censurados, a atividade teatral caía, grande parte dos atores brasileiros estava sem emprego. Naquele instante, a meu juízo, houve também o ato de lucidez, de convocação dessas pessoas concretas, para a tarefa de elaborar uma densidade de sua programação que, primeiro, não se afastasse da decisão mercadológica básica; segundo, acrescentasse a ela graus crescentes de qualidade. Nessa linha, vieram para a televisão Dias Gomes, proibido no teatro; Jorge Andrade, proibido no teatro; Lauro César Muniz, censurado no teatro; Janete Clair, que vinha do rádio. Vieram autores da mais variada tessitura e atores da mais alta importância. A esse tempo, houve momento em que 80% dos principais atores brasileiros começavam a trabalhar no produto telenovela. Nessa época, 20% ainda resistiam à televisão.

A junção de uma decisão mercadológica correta com a capacidade muito peculiar do Presidente das Organizações Globo, que é a de trabalhar com pessoas com as quais não concorda, desde que tenham talento e seriedade, levou a televisão brasileira à descoberta de caminhos absolutamente peculiares. Coincidia com essa época a existência de tecnologias novas, o video tape e, mais que o video tape, o editor eletrônico.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o editor eletrônico permitiu à televisão um passo decisivo: sair do estúdio, conseguir a transmissão fora dele. Ora, com que elemento maior poderia contar a teledramaturgia, com a possibilidade de gravar neste País continente, que é de uma grande pluralidade humana, racial, geográfica? A partir daí, a emissora e esses grupos que estavam impossibilitados de se desenvolver em outras direções começaram a encontrar a fisionomia de um produto absolutamente peculiar, absolutamente próprio, eu diria absolutamente brasileiro.

Lembro que, a essa época, dizia-me o Presidente do Sindicato dos Atores que cerca de 3 mil atores do eixo Rio-São Paulo, incluindo os de circo, que fazem parte do Sindicato, estavam permanentemente desempregados, isto é, possuíam empregos por momentos da duração de algum trabalho, de alguma peça.

Este elemento, a telenovela, que prescindira até então da presença intelectual para se afirmar, caracteriza um produto de natureza brasileira que ainda está para ser devidamente analisado, que ainda está para ser suficientemente estudado, pelas características peculiares da sua conformação. Por primeira vez, deixou de ser a tentativa de se fazer cinema em televisão; por primeira vez, deixou de ser a tentativa de fazer teatro em televisão; pela primeira vez, o que se chama a linguagem televisiva ganhou o público, aprimorou-se. Este processo - digo com franqueza - me pareceu ser superior, na década de 70 até meados da década de 80, do que é hoje em dia.

Por meio desse processo, pôde a Rede Globo expandir enormemente a sua atividade, mantendo um elo de ligação emotiva. É algo intelectual, mas predominantemente emotivo, com significativas e crescentes parcelas da população brasileira. Esse exercício diário de contato com a teledramaturgia é efetivamente algo importante do ponto de vista cultural. A partir do momento em que passou a ser importante, autores significativos deixaram de a ele ser reacionários, passaram a aceitá-lo, incorporando-se ao processo. A própria técnica da dramaturgia evoluía, não mais apenas na telenovela, o grande produto de consumo, mas também na telessérie, na minissérie, nas séries brasileiras. A partir daí, importantes adaptações da literatura brasileira passaram a ser da possibilidade de contato com grandes massas.

A esse tempo, também, já havia chegado as tecnologias da cor, já havia existido o esforço da EMBRATEL, no sentido de dar ao País plenas condições de receber a comunicação. A própria tecnologia televisiva ou televisual evoluíra e o produto pôde, então, começar a se transformar no brilhante produto exportação que é hoje em dia.

A emissora, portanto, fez a esse tempo, nessa linha, algumas outras incursões que me parecem significativas de serem lembradas na data da comemoração dos seus 30 anos. Essas incursões, infelizmente abandonadas, foram na linha da programação infantil. Dois programas, com duração de 4 a 5 anos cada um deles, praticamente ao longo de 10 anos, marcaram a infância deste País: o Vila Sésamo, produção norte-americana ajustada aos padrões brasileiros, readaptada à forma de sentir da criança brasileira, num primeiro momento; no segundo, a esplendorosa saga do Sítio do Picapau Amarelo, que levou o espírito da obra de Lobato a crianças, não exatamente com a conformação dos livros de Lobato, até porque a natureza da realidade televisiva é totalmente diferente da realidade literária, mas mantendo impecável o significado maior daquela família - e o Senador Pedro Simon aqui se referiu muito bem à questão da família -, daquela família curiosa, inventada por Monteiro Lobato, na qual pai e mãe - ou seja, a repressão - inexistem, e as crianças ou têm contato com a figura doce da avó, capaz da compreensão maior de que só os avós são capazes, ou com a empregada Tia Nastácia, que representa a presença dos setores dominados da sociedade, incorporados a um processo familiar que era comum e a uma ambientação extremamente brasileiros, padrões esses que foram da nossa formação, nós de cabelos brancos, com os livros de Monteiro Lobato.

De certa forma, esse é um projeto interrompido, para o qual chamo a atenção da alta Direção da Rede Globo, no sentido de uma nova reflexão sobre a importância dos caminhos obtidos na programação infantil, numa hora, como a atual, em que a excessiva competição ou os padrões de competição, excessivamente acentuados da televisão brasileira, não vêm permitindo à programação infantil de todos os canais - o que é pena - a ousadia conseguida com os dois programas.

No campo do telejornalismo, apareceram os satélites; e a primeira emissora a usar devidamente o satélite é também a Rede Globo. Hoje, quando ligamos a nossa televisão e vemos que, de certa forma, os noticiários são todos com a mesma apresentação, podemos dizer que foi na base do desenvolvimento de um telejornalismo que a Rede Globo criou que hoje se faz praticamente todo o telejornalismo de nossa televisão, desenvolvendo, sobretudo, duas características: primeiro, o repórter. A quantidade de repórteres, hoje, capazes de empunhar o microfone, de conhecer uma matéria, de apresentá-la em vinte ou trinta segundos é infinitamente superior a de dez, quinze, vinte anos atrás; segundo, os correspondentes internacionais, que são jornalistas qualificados que dão à televisão brasileira, começando pela Rede Globo - e hoje já praticamente em todos os canais -, um padrão de informação internacional de alta qualidade, que coloca a televisão brasileira a um nível de qualquer outra.

Não é muito da natureza da Rede Globo haver desenvolvido os comentaristas políticos. Não é da natureza a interferência no noticiário de um elemento opinativo ou interpretativo, embora de modo bastante cauteloso, como é de seu feitio, ela os tenha - e de boa qualidade -, particularmente na área econômica.

Há algumas outras passagens que devem ser lembradas - essas também abandonadas. Trata-se daquelas relativas ao teleshow. O show de televisão possui o condão de veicular música, de juntar bailado, orqüestra e números variados. Nesse sentido, eu gostaria de lembrar - não me recordo o nome - mas o de Augusto Cesar Vanucci, prematuramente desaparecido e uma das mais importantes figuras, na realização de shows de corte nacional, que levavam, permanentemente, artistas - e, quando digo que levavam artistas, digo que levavam artistas em espaços cênicos nos quais estariam filmes importados.

Houve determinado momento em que a Rede Globo foi - não sei a estatística hoje em dia porque não acompanho - a emissora que incorporava artistas e profissionais nacionais em cerca de 70% dos seus horários, padrão esse que nenhuma televisão do mundo tinha em seus próprios países. Isso em se tratando de televisão de broadcasting e não daquelas televisões insuportáveis que, durante muitos anos, em países da Europa, colocavam pessoas a falar interminavelmente como estamos hoje a falar dessa maneira, mas com muita emoção, com muito carinho e fraternidade nessa sessão de comemoração da Rede Globo. Se ela quisesse ter a idéia de como isso é cansativo, bastaria colocar no ar hoje em dia todas as nossas falas que a sua audiência seguramente cairia a níveis recordes porque o que efetivamente mostra como essa televisão que coloca pessoa simplesmente a falar não pode ser considerada comparativamente com televisões de broadcasting ou que incorporam grandes quantidades de profissionais.

Esses fatos todos - e eu teria muitos outros para falar - geraram um aspecto bastante significativo no Brasil.

As elites sempre consideraram que a televisão "era de baixo nível", como elas consideram que o Congresso é de baixo nível, como consideram de baixo nível tudo que não está sob seu comando.

No entanto, a televisão brasileira, para a média cultural do País, significou sempre avanço na qualidade dos noticiários. E aqui quero dar uma palavra ao alto desenvolvimento da publicidade brasileira, a CICAT indispensável ao processo de produção e de consumo, que pôde evoluir graças a esse caminho aéreo aberto pelo desenvolvimento da televisão brasileira, porque também é publicidade no seu aspecto positivo, pois, ao lado da propaganda, carrega um elemento de informação, um elemento de melhoria de hábitos de consumo, elemento este indiretamente educativo e que faz parte de um conjunto de segmentos culturais, que vão sendo passados em grande estilo à população.

Tudo isto não quer dizer que este processo não tenha problemas, que estejamos no mundo das maravilhas; não quer dizer que não tenhamos de considerar a importância da manutenção das culturas regionais; não quer dizer que não tenhamos de considerar a importância da produção independente como um fator a se agregar ao processo da televisão brasileira; não significa que não tenhamos de considerar pontos de desenvolvimento cultural que ainda podem ser alcançados. Claro que não.

E se estou aqui a fazer um elogio é porque ele não decorre de uma formalidade de uma sessão solene, mas da análise de um processo que pude acompanhar como profissional, lado a lado, e que de alguma forma conheço. E até diria, pretensiosamente, que pude ajudar um pouco, através das críticas que fazia, críticas muito curiosas, porque feitas no jornal do dono da emissora.

Quando saiu Walter Clark e o Dr. Roberto Marinho assumiu a Rede Globo, fui ao Evandro Carlos de Andrade, Diretor do jornal, e disse: Evandro, meu cargo está em suas mãos. Não tenho condições de criticar o patrão. O Evandro disse-me: "Tente". E eu tentei.

Quantas vezes o Dr. Roberto Marinho subiu comigo no elevador e não me cumprimentou. Fechava o rosto, amuado; quantas vezes me chamou para jantar em sua casa; quantas vezes me chamou para passar um pito. Até o dia em que eu lhe disse: Dr. Roberto, a única atitude digna da minha parte, sendo crítico de televisão no seu jornal - criticando, portanto, o patrão -, é trabalhar na linha da demissão. Se eu trabalhar aquém da demissão, não estou sendo correto comigo mesmo e com os leitores. Se eu trabalhar além da demissão, estou sendo um tolo, pois só um tolo não gostaria de trabalhar num jornal da importância de O Globo."

Ele riu, bateu nas minhas costas - aquele era um dia em que ele estava zangado comigo - e disse: "Então vamos fazer o seguinte: mude o tom das suas críticas". Eu, então, perguntei: Que tom, Dr. Roberto?. Ele respondeu: "O tom. Veja lá qual é o seu tom". Saí, então, com a idéia de mudar o tom. Não mudei. E devo declarar publicamente este fato. Jamais, em 15 anos de trabalho em O Globo, a Direção me pediu para escrever a favor de alguma coisa. Houve momentos difíceis e momentos em que tiveram dureza na relação comigo. Mas, em nenhum instante - isso declaro em qualquer lugar -, fui censurado por qualquer dos artigos. Se havia falha, era da minha parte. Jamais o Dr. Roberto Marinho me pediu para escrever alguma coisa a favor. Jamais!

Permito-me lembrar uma outra relação, já que estou nessa pequena digressão. Refiro-me a uma conversa que tive, certa vez, com Samuel Wainer, quando fui trabalhar no seu jornal. Ele me disse: aqui no meu jornal você não tem liberdade alguma... (Risos) Dei essa risada que alguns deram, assustado. E ele acrescentou rápido: ...mas tem toda a independência.

Diante da minha expectativa diante das palavras "liberdade e independência", ele explicou que eu não teria liberdade porque ninguém tem liberdade para escrever contra os interesses do dono do jornal. E acrescentou que eu teria independência porque jamais ele me pediria para escrever a favor dos interesses do jornal.

Era uma fórmula bastante diabólica, bastante inteligente, bastante curiosa e bastante realista que situava o problema ético da relação do profissional com a empresa na qual ele trabalha. Ele é um defensor da empresa e ao mesmo tempo tem um grau de independência, uma latitude própria de arbítrio, no sentido melhor da palavra, que ele deve saber usar com sobranceria, com eqüidistância.

Pois bem, nos anos de Globo, jamais me foi impedido de escrever contra o que me parecia. Isso revela muito do espírito que, a meu juízo, animou por dentro esta instituição, porque eu também era a esse tempo um atingido político. Eu também estava com os meus direitos políticos cassados, como muitos dos que estavam a trabalhar na televisão. E ali eu desenvolvia meu trabalho, buscando analisar, compreender a complexidade desse fenômeno.

Creio, portanto, ser essa mescla de busca de qualidade, de obsessão pela seriedade no trabalho e sobretudo de valorização da competência o que fez e o que faz da Rede Globo a realidade formidável de afirmação da vida brasileira que ela é.

Hoje a Rede Globo faz parte de um conjunto de pessoas e entidades que já começam a ser muito maiores do que eram há dez anos. São as entidades significativas de um Brasil que dá certo. E é exatamente neste momento que nós estamos a propor à Nação a possibilidade de um país que dê certo no combate à inflação, que dê certo nas reformas necessárias à modernização de sua economia, com a sua entrada numa economia global. É exatamente neste momento em que este País realiza a possibilidade do seu trânsito para a plena modernidade que passa a ter um sentido maior comemorarmos este Brasil que deu certo.

Este País sabe fazer algumas coisas, queiramos ou não. Este País sabe fazer arquitetura; este País saiu da Idade Média na economia para uma economia moderna; este País não sabe educar os seus filhos; este País sabe fazer alguns desportos significativos; este País sabe fazer uma bela literatura; este País sabe fazer televisão. E o mundo o reconhece, graças ao esforço dos profissionais da televisão brasileira, todos eles, e, em particular, os da TV Globo. Meus parabéns.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 26/04/1995 - Página 6236