Discurso no Senado Federal

CRITICAS A POLITICA DE PRIVATIZAÇÃO E A RELAÇÃO DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO COM O FUNDO MONETARIO INTERNACIONAL.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIVIDA EXTERNA. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.:
  • CRITICAS A POLITICA DE PRIVATIZAÇÃO E A RELAÇÃO DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO COM O FUNDO MONETARIO INTERNACIONAL.
Publicação
Publicação no DSF de 24/10/1995 - Página 1501
Assunto
Outros > DIVIDA EXTERNA. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, POSIÇÃO, GOVERNO BRASILEIRO, ATENDIMENTO, IMPOSIÇÃO, FUNDO MONETARIO INTERNACIONAL (FMI), COBRANÇA, PAGAMENTO, DIVIDA EXTERNA, EXIGENCIA, PRIVATIZAÇÃO, EMPRESA ESTATAL, AUMENTO, CARGA, NATUREZA TRIBUTARIA, TAXAS, JUROS, BRASIL, AGRAVAÇÃO, CRISE, ECONOMIA, SOCIEDADE, DESTRUIÇÃO, CLASSE MEDIA.

            O SR. LAURO CAMPOS0 (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, seguindo o caminho do Banco Mundial, vem pedir desculpas. Naturalmente, desculpas pelo que não fez, porque ele sempre afirmou que com o seu plano de combate à inflação, através do esmagamento de uma pretensa demanda efetiva demasiadamente elevada - o perigo do consumismo brasileiro -, tinha experimentado a sociedade brasileira uma série de melhorias durante o processo de imposição do plano, copiado ipsis litteris da Argentina, de Cavallo, e do México. Pedir desculpas e dizer que chegou ao fim o sofrimento que ele dizia inexistir é uma flagrante incongruência.

            Mas, ao mesmo tempo, recém-egresso do FMI, onde prestava os seus serviços pessoais, o Ministro Pedro Malan, nos Estados Unidos, afirma que o FMI está praticando na América Latina uma política perversa, antípoda daquela que os Estados Unidos estão adotando.

            E Malan na sua farsa externa pergunta por que acontece esse fato, por que o FMI obriga o Governo brasileiro a adotar medidas restritivas numa economia já deficiente de oportunidades de emprego, numa economia cujos dados e números parecem pipocas que explodem a cada mês, se não acompanharmos diariamente os números, que são sonegados, inclusive pelo Banco Central, ficamos perplexos.

            Eu, por exemplo, estava ainda digerindo os dados relativos à existência de 500 mil crianças prostitutas entre 10 e 15 anos, quando sou surpreendido com o fato de 500 mil já ser um dado arcaico, um dado dinossáurico, porque agora a modernidade nos apresenta 2 milhões de crianças prostituídas nessa faixa etária.

            Esta é a modernidade que traz de volta o medievo, a hanseníase, a dengue, a febre amarela, a fome epidêmica. Essa é a modernidade instaurada pelo FMI via governos subservientes como Collor e FHC. Enquanto o governo norte-americano, que se diz preocupado com o equilíbrio orçamentário, apresenta uma dívida pública de US$4,9 trilhões, o Governo brasileiro está acuado e continua completamente inerme, porque não consegue enfrentar o sistema bancário.

            A bancocracia brasileira impede, obstaculiza o resgate da dívida pública, cujo serviço no Brasil é, relativamente, o maior do mundo. O Governo brasileiro é refém da dívida pública interna, irmã siamesa da dívida externa. Cada brasileiro nasce hoje devendo US$1 mil de dívida externa e, aproximadamente, US$1 mil de dívida interna. Não temos casa, alimentação, emprego, não temos futuro, mas, graças a essa modernidade, temos US$2 mil per capita de dívida ao nascer. E temos a obrigação moral de pagá-la, diz a moral da subserviência, diz a moral de joelhos. Somos obrigados a pagar o compromisso, porque, se não o fizermos, estaremos desonrados. Mas os brasileiros, antes de nascerem, já estão devendo. Qual o compromisso feito por essas crianças que já nascem devendo US$2 mil?

            Isso estarrece a própria direita norte-americana. No Conselho de Segurança Nacional dos Estado Unidos, um amigo do ex-Presidente Bush afirmou: "A maneira pela qual o FMI está cobrando a dívida externa da América Latina está destruindo a classe média no continente e criando uma situação revolucionária, prestes a explodir diante da segurança nacional dos Estados Unidos". Quem diz isso não é um petista de esquerda, um marxista ou um socialista. É um homem da direita "bushniana", que afirma que o FMI está destruindo a classe média e provocando uma situação explosiva no continente latino-americano.

            Portanto, não é de estranhar que um outro órgão da ONU, a OIT, em sua última reunião, afirme que o FMI é o grande responsável pelo empobrecimento dos países pobres e pelo enriquecimento dos países ricos. Portanto, os cinqüenta anos de existência do FMI, que agora transcorrem, não devem ser objeto de nenhuma comemoração.

            O que o Brasil faz hoje, vender empresas estatais, a Inglaterra obrigou Campos Sales a fazer desde o seu primeiro ano de governo. Ele colocou à venda empresas estatais como a Central do Brasil, penhorou a Companhia de Água do Rio de Janeiro, aumentou a carga tributária, demitiu funcionários para enxugar as despesas do governo e equilibrar o orçamento, foi obrigado, pelos banqueiros ingleses, a criar um imposto-ouro sobre a importação, a fim de pagar em moeda forte, não em real de hoje, mas em ouro, a dívida externa brasileira aos Rhotschild ingleses.

            Quando deixou o governo, depois do enxugamento, Campos Sales foi apedrejado pela população desempregada e empobrecida por um plano em tudo igual ao que se aplica de novo no Brasil da modernidade.

            Esse plano aplicado no princípio do século mostra que o FMI não é senão uma figura emblemática, um órgão de articulação da voz do dono, da voz imperialista que nos comanda lá de fora.

            As mesmas medidas tomadas por Campos Sales são impostas ao governo brasileiro, ao governo argentino, ao governo mexicano. O FMI, que foi criado para evitar desequilíbrios no balanço de pagamentos, que fechou os olhos todas as vezes em que os banqueiros do mundo se encontravam abarrotados de dinheiro, que fechou os olhos na crise do final dos anos 60, quando os eurodólares e petrodólares abarrotaram de disponibilidade aqueles bancos, permitiu que todas as regras que presidem os empréstimos internacionais fossem menosprezadas.

            O FMI permitiu que o Brasil, a Argentina, o México e todos os países periféricos se endividassem além de suas possibilidades. E para quê? Para que os banqueiros internacionais encontrassem a quem emprestar o dinheiro ocioso que sobrava na banca mundial. Naquela ocasião, o FMI não foi rigoroso como fora, por exemplo, ao término da Segunda Guerra Mundial, quando restringiu extremamente nossos empréstimos externos, a fim de facilitar a entrada dos investimentos diretos do transplante de capitais que os Estados Unidos precisavam fazer, para evitar o retorno da crise de sobreacumulação que caracterizou os anos 30. Portanto, o capital sobreacumulado tinha, naquela ocasião, que ser transplantado para cá. Por isso o FMI inibiu o nosso endividamento externo, limitou-o para que os investimentos diretos, o capital estrangeiro, pudessem vir a ser o hospedeiro privilegiado e o dinamizador contraditório da economia brasileira.

            Esse capital de ponta, que representava a modernidade da época, obrigou os países pobres a concentrarem a renda, a reduzirem os salários reais, tudo sob a batuta do FMI, a fim de criarem um mercado de 10% de pessoas elitizadas e privilegiadas, que gozassem as benesses da concentração selvagem de renda como consumidores privilegiados dos produtos de luxo que abarrotaram a periferia.

            Naquela tempo, o BNDES não tinha o "s" do social, que hoje foi incorporado ao seu nome. De social, o BNDES nunca nem soube o significado real. Criado em 1953 com adicionais do Imposto de Renda, o BNDES é o gestor dos fundos dos trabalhadores, dos recursos amealhados do trabalho sacrificado do trabalhador coletivo brasileiro, como o FAT, por exemplo, que é repassado aos capitalistas a taxas de juros irrisórias. O BNDES, que diz que é o responsável pelo processo de privatização gratuita, de doação de empresas estatais, foi também aquela ponta do triângulo das Bermudas que existe no Rio de Janeiro, onde tudo desaparece. O famoso triângulo das Bermudas, um apelido que o povo brasileiro deu àquele triângulo perverso situado no centro do Rio de Janeiro e cuja ponta ergue-se com o mais luxuoso edifício que já vi em minha vida, em qualquer parte do mundo, que é a sede do BNDES, o social, luxuoso!

            Geisel tentou, pelo menos, no último dia de seu Governo, salvar alguma coisa e impedir que fundos do Tesouro Nacional fossem doados à família do Sr. Maluf, para salvar as eficientes empresas privadas. Esses que falam na eficiência do mercado e das empresas privadas, que fizeram eles lá do outro lado da cerca, quando deixaram o Governo para serem empresários? Roberto Campos ajudou a quebrar um dos mais antigos bancos do Estado de São Paulo. São inúmeros os malogros que esses privativistas sofreram quando estavam na esfera privada. Mas eles sabiam muito bem como "mexer os pauzinhos" e articular, como agora o Governo parece que está fazendo, doando, repassando ou arranjando R$7 bilhões para socorrer o setor rural da economia brasileira.

            Ainda há muito dinheiro neste País, ainda sobejam os recursos para certas finalidades, depois desse processo que levou necessariamente à falência do próprio Estado, nas tetas do qual, como dizia Antônio Delfim Netto, eles vivem mamando - os empresários privados, os eficientes, os modernosos - até que secassem. Mas essas tetas não secaram ainda, pois há um conluio, obviamente, entre todo o mercado privado, conluio em que comerciantes e industriais são portadores de títulos da dívida pública e, portanto, dividem com banqueiros o serviço fantástico da dívida pública brasileira.

            As doações, os estímulos diretos realmente se reduziram. Não é possível mais dizer, como dizia Delfim Netto quando Ministro, pela segunda vez, que é preciso que o Governo faça chover dinheiro nas cabeceiras da agricultura para irrigar toda a economia brasileira. Portanto, depois desses despropósitos é necessário que se diga que a crise por excesso de concentração de renda, por excesso de concentração de riqueza e de destruição do mercado interno de base, que a crise que resultou da dinâmicas dos empréstimos internos dos anos setenta, a dívida externa acrescida, permitiu nos anos setenta que industriais e capitalistas importassem máquinas e equipamentos, mantendo o processo de crescimento, tanto nas empresas privadas quanto nas estatais. O dinheiro era tanto que em 1972, antes do primeiro aumento do preço do petróleo, a dívida externa brasileira passou de seis para nove e meio bilhão de dólares. O que foi feito com esse dinheiro? Mantido em reserva.

            O Brasil de Simonsen tomou dinheiro emprestado lá fora para pagar juros aos banqueiros, sem fazer nada com esse dinheiro. Manteve U$4 bilhões em reservas intocáveis, apenas para pagar juros sobre o dinheiro.

            Assim, é óbvio que foi a burguesia brasileira, os políticos brasileiros, os grandes administradores esquecidos que padecem de amnésia, foram eles, sem dúvida, os principais responsáveis, inspirados no FMI, pelo incremento, pelo aprofundamento das diversas crises na economia brasileira, incapazes de confessar os erros cometidos e procurar um diagnóstico sério e uma terapêutica adequada aos problemas nacionais.

            O que vemos é que a visão individualista, a visão empiricista, a visão da idiotia da aparência, de repente faz com que o grande processo negativo de aprofundamento da crise da economia e da sociedade brasileiras se estilhace em dezenas de crises: na crise da educação, da saúde, das finanças públicas, da dívida externa, do ensino, das estradas esburacadas. E ninguém sabe e percebe que existe uma unidade nessas crises todas, que todas tiveram uma matriz comum e que agora percebemos, nesses estilhaços de crises, apenas os sinais efêmeros locais da grande crise que foi urdida no processo selvagem de desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

            Portanto, não é de se estranhar que entre essas crises haja também uma crise de legitimação. O poder militar que se legitimava através do desenvolvimentismo econômico empurrou com a barriga esse desenvolvimento além das fronteiras permitidas pelas leis da economia, a fim de manter o poder político nas mãos dos militares. Quando o processo iria desmoralizar os próprios militares à frente do poder, eles passaram para os civis o grande "abacaxi": a administração da economia já "inadministrável", com U$28 bilhões só naquele grande acordo nuclear feito com a Alemanha, que nunca tinha produzido, jamais em sua história, nenhuma usina nuclear. E foi feito um acordo de U$28 bilhões com o Brasil!

            E assim, somando erro em cima de engano, chegamos a essa situação. E não encontramos ainda um Governo capaz de ter a coragem cívica, a hombridade, a dignidade de fazer um diagnóstico real, concreto e objetivo da nossa situação e passar a atingir o fulcro dos nossos problemas, das nossas contradições: a concentração excessiva de renda e de riqueza, a acumulação de capital, que levou o Governo a se exaurir na tentativa de ceder as suas tetas, cada vez mais magras, para alimentar esse capital, que não pode viver do mercado, mas tem que sobreviver do próprio Estado que eles dizem combater. Jogam a culpa de tudo isso em cima dos 9,6% da população economicamente ativa brasileira, que são os funcionários públicos, os aposentados, as crianças desamparadas. Assim, o genocídio se transforma em uma mentira, em um engano, em um engodo, onde a covardia cresce e se ajoelha diante das vozes externas que nos comandam.

            Se a América Latina não encontrar formas mais dignas de pagar a dívida externa - repito eu aquilo que foi dito por um membro do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos: se a América Latina continuar a ver destruída a sua classe média...porque uma vez empobrecida as bases da população, reduzido o salário a míseros R$70,00 por mês, é preciso empobrecer agora classe média, para continuar a pagar o serviço da dívida interna, para continuar a pagar o serviço da dívida externa, para continuar a manter os esqueletos das obras inacabadas.

            A classe média, agora, é convocada a entregar tudo que lhe restou. O que vemos, infelizmente, é muito triste: PhDs, mestres e bacharéis empregados como porteiros e, assim como meu filho, motorista do Tribunal de Contas por concurso.

            É dito: "Vamos resolver essa situação com a educação!" A educação não resolve; a educação é abstrata; a educação sem emprego; a educação sem objetivação do saber e sem oportunidades de trabalho não existe e não tem poder de modificar coisa alguma, mas de apenas aprofundar o descontentamento social.

            Portanto, o que vemos é que o engodo se sobrepõe ao engano. E lá fora, o Sr. Pedro Malan reconhece que é absurda a maneira pela qual ele aqui dentro gere, de acordo com os mandamentos do FMI, a nossa economia e a nossa sociedade.

            E agora, diz o FMI, que é preciso, primeiro, aumentarmos a carga tributária no Brasil, para pensarmos, depois, em reduzir a taxa de juros. Quantas versões justificadoras o FMI não tirou de sua algibeira, de seu colete, de sua cartola de mágico, para justificar o aumento da taxa de juros que pesa sobre a América Latina dilacerada?

            Agora, há mais uma versão: é preciso que o Congresso aceite rapidamente a reforma tributária, porque, segundo o FMI, sem o aumento da reforma tributária, não se pode pensar em reduzir a taxa de juros. Depois da reforma tributária, será que haverá alguém capaz de usufruir o paraíso de um país "bancocrático", em que a taxa de juros torne-se razoavelmente humana?

            Trata-se de mais um engodo, de uma promessa que vem por aí para dourar a pílula e impor ao Congresso a transformação da Constituição, porque existe uma ordem sobrenacional, superconstitucional, que é a ordem do FMI, que se impõe sobre as constituições da Argentina, do Brasil, da Venezuela e do México. O FMI não quer saber o que as nossas constituições rezam, o que quer saber é o que é necessário legislar, qual é a ordem jurídica que é necessário pôr em prática para que as suas medidas desumanas sejam impostas aos povos periféricos, aos povos dominados, aos povos dependentes de todo esse processo devorador.

            Assim, penso cumprir a minha obrigação como Senador pelo Distrito Federal, ao apontar os descaminhos, as contradições, o diz hoje e desdiz amanhã, a amnésia social como o ingrediente necessário à aplicação dessas medidas perversas. Depois, como os gângsteres mandam flores, eles vêm pedir desculpas pelo genocídio que praticaram.

            Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/10/1995 - Página 1501