Discurso no Senado Federal

REPUDIO A VIOLENCIA POLICIAL NO EPISODIO DA EXPULSÃO DOS LAVRADORES SEM-TERRA, OCORRIDA NO MUNICIPIO DE SANTA ISABEL DO IVAI, NO ESTADO DO PARANA.

Autor
Roberto Requião (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PR)
Nome completo: Roberto Requião de Mello e Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • REPUDIO A VIOLENCIA POLICIAL NO EPISODIO DA EXPULSÃO DOS LAVRADORES SEM-TERRA, OCORRIDA NO MUNICIPIO DE SANTA ISABEL DO IVAI, NO ESTADO DO PARANA.
Aparteantes
Junia Marise, Júlio Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 14/11/1995 - Página 2963
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • PROTESTO, VIOLENCIA, POLICIA, EXPULSÃO, SEM-TERRA, MOTIVO, PREVENÇÃO, ACIDENTE DE TRANSITO.

            O SR. ROBERTO REQUIÃO (PMDB-PR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, neste plenário esvaziado, nesta sessão sem pauta, com a presença de V. Exª, Senador Júlio Campos, dos Senadores Nabor Júnior, Flaviano Melo e da Senadora Júnia Marise, que acaba pronunciar-se pela liderança do PDT, quero me referir ao massacre absurdo dos sem-terra ocorrido em Santa Isabel do Ivaí no Paraná.

            Embora o quorum do Senado esteja se transferindo para uma alegre observação de parlamentares à sessão da ONU, ainda nos vale nesta sessão a Voz do Brasil. Falo para V. Exªs e para o País através desse sagrado horário de que se valem os parlamentares em suas comunicações com a Nação.

            Um grupo de sem-terra, acampado numa fazenda desapropriada por decreto presidencial, foi instado pelo INCRA a abandoná-la, uma vez que a desapropriação havia sido judicialmente contestada. Os sem-terra saíram e foram assentados, pelo INCRA, na beira de uma das estradas que demandam à Santa Isabel do Ivaí.

            O Governo do Estado, preocupado com o efeito estético de um acampamento de agricultores pobres à margem da estrada e sob o pretexto de que estavam numa curva e sofriam a constante ameaça de um atropelamento talvez por um caminhão desviado da rota comum, requereu, por intermédio do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o seu despejo.

            Os agricultores na iminência do despejo recuaram para a fazenda desapropriada. Quem me informa dessas condições é o fotógrafo Guto Braga que documentou para o País a violência da Polícia Militar. Assim, os agricultores receberam às 16h a polícia e com ela um Oficial de Justiça. Este deu a eles duas horas para decidirem se ali ficavam ou se aceitavam a ordem de despejo.

            Os sem-terra resolveram, em 20 minutos, que não sairiam, queriam uma definição formal do INCRA a respeito das suas possibilidades de assentamento. Afinal de contas, haviam saído da beira de uma estrada, onde haviam sido assentados, quando pacificamente deixaram a fazenda e estavam em cima de uma área desapropriada.

            Tendo os agricultores declarado que não sairiam sem uma solução, o Comandante da Polícia Militar procurou as autoridades do Governo do Estado. Em 40 ou 50 minutos, a Polícia voltou e, cumprindo ordens, atirou nas pernas de 24 agricultores, que foram baleados - pasmem V. Exªs -, para não enfearem a beira da estrada, onde não os queria o Governador Jaime Lerner. Foram baleados sob o pretexto de que, na beira da estrada onde estavam, podiam sofrer um acidente. Em vez do acidente, balas da Polícia Militar do Paraná; nas pernas, para que não morressem.

            É evidente, como ex-Governador não posso calar-me diante de uma situação como essa. Os agricultores, que já haviam abandonado a fazenda desapropriada a pedido do INCRA, com uma meia dúzia de palavras, à perspectiva de um assentamento decente, mesmo que provisório, novamente a teriam abandonado, mas o Governo quis mostrar que no Paraná a lei, justa ou injusta, se cumpre e o Governador não poderia vê-los ameaçados de atropelamento ou enfeando a beira de uma das principais estradas do Estado.

            A Srª Júnia Marise - V. Exª me permite um aparte?

            O SR. ROBERTO REQUIÃO - Ouço V. Exª, Senadora Júnia Marise.

            A Srª Júnia Marise - Senador Roberto Requião, quero, neste aparte, solidarizar-me com a posição assumida por V. Exª diante do lamentável episódio ocorrido com os sem-terra do Estado do Paraná. Temos definido a nossa atuação contrariamente a todos os atos, atitudes e práticas que, no passado, adotaram nossos governantes em detrimento da população mais carente, mais sofrida do nosso País. É lamentável a atitude da Polícia Militar na tentativa de expulsar lavradores desarmados. Neste momento, gostaria de reiterar que a nossa posição, tal qual a do nosso partido, tem sido sempre a de condenar os excessos e atitudes como estas. O País só consolidará a sua democracia e liberdade quando efetivamente esses milhões de brasileiros sem-terra tiverem o direito de plantar e produzir. Por isso, defendemos a reforma agrária para que fatos lamentáveis como esse não mais ocorram em nosso País. O próprio Presidente Nacional do PDT, o ex-Governador Leonel Brizola, também lamentou esse fato, para dizer que a prática do nosso Partido é a defesa de todos os trabalhadores rurais, dos trabalhadores sem-terra, dos lavradores. Condenamos com toda veemência práticas como a ocorrida no Estado do Paraná e que vêm acontecendo em outros estados.

            O SR. ROBERTO REQUIÃO - Trabalhadores que deveriam sair da estrada para que não fossem atropelados, que foram removidos com esse fundamento pelo Governo do Estado, foram fuzilados. É um paradoxo rigorosamente inexplicável.

            Recebi um pronunciamento formulado por um irmão meu que de perto acompanha esse problema - Wallace Requião de Mello e Silva - e quero ler esse pronunciamento que teria como título: Hipocrisia Burguesa:

            "É moda entre os intelectuais fazer a crítica - os intelectuais orgânicos do establishment, Presidente Nabor -, a cínica ironia, a piada de mau gosto sobre os invasores urbanos e rurais. Dizem, por exemplo: "No nosso tempo, se queríamos um lote de terra, tínhamos que pagar por ele, hoje, bastaria invadir". Ou outros, na grande mídia da televisão, declaram: nunca vi sem-terra com coquetel molotov. Duro cinismo.

            É óbvio que não podemos concordar com as invasões. Não há fundamento legal que as justifique. Todavia, poder-se-ia explicá-las, ao menos parcialmente, pelo discurso da injustiça social ou da omissão e morosidade nas soluções das políticas sociais nas questões fundiárias por parte do Estado e da sociedade. É sem dúvida um problema sério que é manipulado inescrupulosamente.

            Na verdade, o que não se quer é levar em conta, o que não se admite publicamente, o que não se confessa é a vergonhosa história propriedade das terras no Paraná e no Brasil.

            Não que o erro de alguns justifique o erro de outros, mas também não é possível que os erros de alguns, seus privilégios, lícitos ou ilícitos, mantenham submetidos a uma escravidão branca contingentes inteiros da população brasileira.

            Regras anteriores ao descobrimento, o sistema de capitanias, as Entradas e Bandeiras, o comércio de extração, tudo debaixo de um conjunto de princípios e leis, discutidas sempre num plano quase sideral, quando não celestial, enquanto, ao nível do chão, homens sofridos de todas as raças, longe dos reis, das leis, dos governos e da própria civilização expandiam os domínios conhecidos, criavam raízes, formavam famílias, plantavam o solo e domesticavam animais, miscigenavam as raças, moviam-se em terras desconhecidas, orientados uns pela fé que professavam, outros, enfim todos, pelas leis da vida, ou mais precisamente pelo que poderíamos chamar por regras de Direito Natural, fundamentos da civilização.

            Um dia, muitos anos depois, seriam alcançados pela lei e pelo poder público. Veriam, muitas vezes, com alegria, a ereção do pelourinho, a constituição das Câmaras, enfim o poder constituído que viria, nem sempre para fazer justiça, mas para cobrar impostos e confirmar privilégios.

            Numa análise atemporal ou, no mínimo, como a fez Émille de La Veièlle, em sua obra Propriété et ses Formes Primitives, que nos permite, tomando algo da história universal, percorrer desde os tempos das tribos, passando pelos povos que submeteram povos, governos a governos, quando tomavam terras à força das armas ou segundo acordos político-financeiros de poderosos sustentados lícita ou ilicitamente por princípios de direito nacional ou divino até que, aqui, no Brasil, a grande maioria dos homens comuns, em troco de suas liberdades, ao risco das próprias vidas, ou pelo duro trabalho, conquistavam, compravam, ou adquiriam direitos sobre suas pequenas propriedades. Outros, uma privilegiada elite, nunca em número maior de 1% da população, menos talvez, jamais precisou invadir lotes como esses miseráveis de hoje o fazem. Mas, à sua maneira, ditavam regras, criavam cartórios, inventavam municípios, forjavam documentos, doavam terras públicas a sócios, amigos ou parentes, financiavam e exploravam posseiros; mal indenizavam terras de terceiros, valorizavam terras próprias com obras construídas com dinheiro público, numa seqüência sem fim e aqui indescritível.

            Uma história e uma vergonha silenciadas, totalmente desvinculadas do interesse das gentes e das suas dignidades de seres humanos.

            Pau mesmo, só nos miseráveis, em todos os tempos.

            O tempo roda, o tempo voa, diz um desses bancos que está sendo privilegiado com a última medida provisória do nosso Presidente Fernando Henrique Cardoso. E, hoje, herdeiros semiconscientes desses ladrões de colarinho branco do passado, remoto ou próximo, dividem cargos políticos entre si, tomam finas bebidas, compradas com dinheiro público desviado de financiamentos subsidiados, que visavam, num dia, a viabilização da agricultura e a melhoria da vida dos homens do campo. Fazem uso de informação privilegiada, negociam com o dinheiro de salários retidos, hipotecam terras inativas e inexistentes, rolam dívidas milionárias diante da cegueira do Fisco, salvam da falência e da administração irresponsável (ou criminosa) empresas privadas e bancos, com negociatas ou dinheiro público; e, é claro, são os primeiros a evocar na lei os princípios para acusar e debochar daquelas famílias pobres, surradas pela vida e pela polícia, sem visão ou horizontes, sem a mínima perspectiva. Esses miseráveis são vítimas, por um lado, da ilusão de um socialismo de gabinete, pelo outro, dos ideólogos da hipocrisia burguesa, da elite que detém a "justiça", a "polícia" e a "lei".

            Todavia - e isso é muito importante - sempre que se pressiona um fato social contrapondo-o aos princípios que garantem direitos, expressam deveres e a autonomia da autoridade pública, o ônus social é elevado. Resulta quase sempre num enfraquecimento das estruturas justas ou injustas da sociedade e do princípio de autoridade, induzindo à desobediência civil. O resultado é nefasto.

            Por isso o chanceler Thomas Morus dizia: "se o diabo, o injusto e mentiroso, evocasse o benefício da lei justa, eu o concederia". Sim, a lei justa é a garantia da justiça. Mas só a lei justa. Não aquela criada para oprimir.

            A verdadeira justiça, diz a Bíblia, é a caridade.

            Posto isso, pergunto-me: o que trará mais profundas conseqüências sociais? A imediata solução do problema dos invasores, sempre em pequenas áreas, ou a abertura do debate público sobre a história fundiária do Paraná e do Brasil?

            Devemos iniciar a caminhada em ambos os sentidos. Urge uma solução. Resolver e acomodar o problema fundiário é prudente e meia solução.

            Ainda assim, aqui em Brasília, omissos entregam o Brasil sem que haja ameaça de ser invadido. Querem privatizar agora, por exemplo, a Vale do Rio Doce, detentora jurídica de bilhões de dólares em jazidas, por dinheiro de bananas. No Paraná, conforme noticia a imprensa local, autoridades cedem terras originárias da Rede Ferroviária Federal, a custo zero, para projeto habitacional de poderosa instituição bancária privada, e, em contrapartida, avaliam as mesmas terras a R$200 o metro quadrado, de modo a expulsar indiretamente os favelados invasores que desejavam comprá-las do Poder Público."

            Bancos são salvos com dinheiro público. E o povo? Ao povo, tiros. O desespero do povo é chamado de "desajustes setoriais". O que isso, Senadores? Isso é a hipocrisia da burguesia.

            O Sr. Júlio Campos - Concede-me V. Exª um aparte?

            O SR. ROBERTO REQUIÃO - Ouço V. Exª com prazer.

            O Sr. Júlio Campos - Ouço com atenção o pronunciamento de V. Exª. Deixei a Presidência a fim de aparteá-lo, prestando-lhe a minha solidariedade, pois o pronunciamento de V. Exª é um alerta à Nação brasileira pelo que vem ocorrendo nos últimos meses em nosso País com relação à tão propalada reforma agrária, que nunca sai do papel e que já foi cantada em prosa e verso por todos os candidatos à Presidência da República. Lamentavelmente, muitos assumiram esse compromisso e não o cumpriram. Gostaria, entretanto, de lembrar a V. Exª que esse lamentável incidente que ocorreu no Paraná também ocorreu no meu estado, Mato Grosso, há poucos dias, coincidentemente, com governadores do PDT. Como sabemos, o Governador do seu estado, Jaime Lerner, e o Governador do meu estado, Dante de Oliveira - o Dante das "diretas já" - são do PDT. A polícia do meu estado teve o mesmo comportamento da polícia do Paraná. No entanto, gostaria de dizer que uma luz de esperança surge no final do túnel, qual seja, a presença do Dr. Francisco Graziano, Presidente do INCRA, cuja escolha não foi das mais bem aceitas por determinados segmentos da sociedade brasileira. Conheço Francisco Graziano profundamente, já que é meu colega, engenheiro agrônomo, formado na Faculdade de Agronomia de Jaboticabal, no interior de São Paulo. Sei da sua linha de comportamento, do seu princípio ético e da sua vontade de fazer um programa de reforma agrária que venha, realmente, a acomodar o Movimento dos Sem-Terra espalhado por todo o Brasil. Tenho certeza absoluta de que fatos como esse não têm a concordância do Presidente Fernando Henrique Cardoso, nem do próprio Ministro da Agricultura, nem do Presidente do INCRA, enfim, não têm a concordância de nenhuma autoridade. V. Exª e eu já fomos Governador e sabemos que a Polícia Militar muitas vezes toma atitudes à revelia do seu Comandante-Chefe, que são os governadores de estado, e do próprio Comandante Geral, que é um coronel da hierarquia superior das polícias militares. Tenho certeza absoluta de que essa situação não pode continuar. Há milhares e milhares de hectares de terras não ocupadas no País. No meu Estado mesmo há mais de 20 milhões de hectares de terras esperando que alguém venha trabalhar nelas. Espero que o Governo Federal, em vez de fazer desapropriações milionárias ou desapropriações com maracutaias, como aconteceu em passado recente com terras que não valiam nada, que não serviam para assentar sequer calangos, foram desapropriadas para a reforma agrária. O próprio Dante de Oliveira, na época Ministro de Assuntos Fundiários, desapropriou a Fazenda Quibagi, onde não há sequer grilo para cantar à noite de tão ruim que é a terra, e pagou alguns milhões de dólares ou de cruzados, cruzeiros, cruzados novos - não lembro qual era a moeda da época - para indenizar grupos de fazendeiros interessados em receber TDAs e indenizações em dinheiro. Espero que não se repita esse tipo de espetáculo que recentemente ocorreu no País na gestão de vários ex-Ministros da Reforma Agrária que nada fizeram pela reforma agrária e que o INCRA, agora, tendo à frente o nosso Professor, companheiro e amigo Francisco Graziano, realmente possa minorar o sofrimento dos sem-terra no Brasil. Fica aqui a minha solidariedade ao pronunciamento De V. Exª e o nosso repúdio à atitude grotesca da Polícia do Paraná.

            O SR. ROBERTO REQUIÃO - Senador Júlio Campos, agradeço-lhe o aparate.

            Quero acreditar que o cinismo da declaração pública do Presidente da República tenha sido involuntário. Penso que foi produto da má informação, ou melhor, da desinformação. Porém, de qualquer forma, passa para o anedotário da história da administração pública no País um despejo requerido pelo Governo do estado para evitar acidentes de trânsito numa estrada, que é executado com o fuzilamento daqueles que, hipócrita e cinicamente, o Governo dizia pretender proteger.

            Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/11/1995 - Página 2963