Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÕES DO 'DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA'.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÕES DO 'DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA'.
Publicação
Publicação no DSF de 22/11/1995 - Página 3394
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, GRUPO ETNICO, NEGRO, OPORTUNIDADE, ANIVERSARIO DE MORTE, VULTO HISTORICO.
  • HISTORIA, DESTRUIÇÃO, QUILOMBOS, MUNICIPIO, PALMARES (PE), ESTADO DE ALAGOAS (AL).
  • COMENTARIO, PROGRAMAÇÃO, SENADO, COMEMORAÇÃO, DATA, HOMENAGEM, NEGRO.
  • COMENTARIO, SITUAÇÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO, ECONOMIA, NEGRO, BRASIL.

              O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, renovaram-se, neste vinte de novembro, os múltiplos eventos que, em todo o País, assinalam a passagem de mais um Dia Nacional de Consciência Negra. A data, não é demais repetir, corresponde àquela do ano de 1695, historicamente marcada pelo trágico desaparecimento de Zumbi, o derradeiro e inolvidável líder da Confederação dos Escravos Rebelados, a inspiração permanente da luta de toda uma raça, três séculos depois ainda em busca da verdadeira libertação.

              Desde os bancos escolares, os compêndios da história lecionam que Zumbi, escravizado em 1655, teve o nome de Francisco, dado no seu batismo pelo Padre Antônio Melo, e sabia ler e escrever. E que a Confederação subsistira por cem anos, em liberdade, na Serra da Barriga, Estado de Alagoas. Os escravos fugitivos ocupavam, desde 1597, uma área de 150 quilômetros em meio aos rios Ipojuca e Paraíba, constituindo a primeira sociedade multirracial -- envolvendo negros, índios e brancos excluídos -- em território brasileiro.

              Em 1678, o Governador Pedro de Almeida selara a paz com o rei de Palmares, libertando os escravos nascidos nos quilombos rebeldes. Rejeitado por Zumbi, pois esse acordo não beneficiava a todos os fugitivos, e em face da morte de Ganga-Zumba, os quilombos permaneceram clandestinos. Dezesseis anos depois, as tropas portuguesas destruiriam Palmares em menos de vinte dias, sem conseguir, no entanto, de leve abater o forte ânimo do grande herói negro.

              Antecedendo o tricentenário de sua morte, e por conseguinte o Dia Nacional da Consciência Negra, já promoveram numerosos eventos, entre os quais a "Jornada Zumbi pela Vida", da Capital paulista à cidade de Aparecida, que exaltaram a República do Quilombo dos Palmares "como exemplo de sociedade organizada, solidária e justa, a ser seguida por todo o País".

              A marcha, refletindo a determinação dos negros na defesa do Quilombo, procurou demonstrar, igualmente, que todos lá "tinham direito à vida e à liberdade", e terá seu termo neste 20 de novembro, quando os participantes da Jornada entregarão ao Presidente da República um rol de reivindicações, envolvendo a de garantia de emprego, de acesso à terra e à Justiça e, fundamentalmente, a de não serem discriminados por motivo de raça, credo ou ideologia.

              O Senado Federal, a sua vez, atestando o apoio dos seus integrantes à grande causa, desde o dia 30 de outubro vem cumprindo uma extensa programação, para assinalar a passagem dos três séculos da morte de Zumbi, e a sua relevante participação na resistência que, ao término do século XVII, opôs à escravidão, em União dos Palmares, compreendendo a exposição de arte negra, a mostra cinematográfica e o Encontro Parlamentar pela Democracia Racial, reunindo representantes dos Legislativos de todo o País.

              Decerto, não é data que se preste a manifestações, amanhã esquecidas, de solidariedade à raça negra. Antes, é dia de efetiva e profunda conscientização da sociedade quanto aos variados aspectos da questão racial, que implicam também no compromisso do Parlamento e do Executivo em dar corpo às garantias constitucionais, especialmente aquelas sancionadas da discriminação.

              Há que se cumprir, por igual, as disposições que transferem aos remanescentes dos quilombos as áreas conquistadas na luta pela libertação, tradicionalmente ocupadas pelas comunidades negras, em sucessivas descendências.

              Registra-se a ocorrência desses núcleos em vários pontos do País, como no Vale do Rio São Francisco, Parateca, Pau D'Arco e, aqui perto, em Goiás e, mais ao Norte, no Estado do Maranhão, terra do Presidente do Congresso Nacional, o Senador José Sarney. Na Bahia, mais especificamente nos municípios de Rio das Antas e de Bom Jesus da Lapa, sobrevivem em grupos sob a constante ameaça de turbação, os herdeiros de direito daqueles que lutaram, conquistaram e consolidaram os quilombos, muitos dos quais centenários.

              Ao que se informa, a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, realizou seminário destinado a indicar os instrumentos administrativos necessários ao cumprimento desse dever, sem que, decorrido um exercício, aquelas comunidades, disseminadas pelo extenso território nacional, tenham não apenas de fato, mas também de direito, a titulação das terras de seus ancestrais.

              O Dia Nacional da Consciência Negra serve à reflexão desses e de outros temas, despertando iniciativas, para o muito que necessita ser feito, e renovando a disposição de luta, a que se têm dedicado muitas gerações de patrícios.

              Compreender a consciência negra é assimilar as conclusões de especialistas que estudaram a fundo as causas e conseqüências da escravidão, demonstrando a relação desse episódio histórico, que a tantos revolta, coma formação do capital impulsionador do comércio, em tempos remotos, e com o próprio crescimento do sistema capitalista, de então a esta parte, período em que o negro, dito liberto, foi entregue à sua própria sorte.

              Ele, o "construtor da grandeza da Nação", na abalizada e incontestável afirmação desses historiadores, foi desprezado. Enquanto faltava segurança sobre a disponibilidade de mão-de-obra para a manutenção da atividade econômica que à época se praticava, sobretudo na área da produção agropecuária, os intelectuais, naturalmente os de raça branca, promoviam manifestações de algum apreço, posto que objetivavam transformar o negro escravo em trabalhador livre.

              Esclarece-nos o saudoso Florestan Fernandes, no entanto, que essa elite descobriria "que a imigração proporcionava mão-de-obra comparativamente até mais barata do que o custo de manutenção do escravo". Relegaram, por isso, o negro e seus problemas "ao seu próprio destino, como se eles fizessem parte de uma nação separada do Brasil".

              Abriu-se, entre as duas raças, enorme distância, não obstante o Estado de São Paulo ostentar, segundo números levantados em 1940, 10 por cento de participação do negro na contagem geral da população, e que, somando-se os mestiços, alcançasse o percentual de 70 por cento na Bahia, atingindo a maioria, portanto, nos números referentes ao total do País.

              Nem será importante o dilema entre maioria e minoria, se o fato marcante é o de que o negro, despojado de sua condição humana e subjugado pela escravidão, não exercita hoje a cidadania, em sua plenitude, e sofra, no desabrigo das ruas, a cruel violência do abandono e da penúria extrema. Para Florestan, que estudou o assunto nos dois volumes da obra "A Integração do Negro na Sociedade de Classe", a trajetória da raça, nesse "período trágico e nefando", começa na escravidão "e chega até a fímbria dos nossos dias".

              Não há dúvida de que legislador constituinte de 88 acolheu a disposição sancionadora das manifestações preconceituosas, de discriminação racial. Todavia, se em todos os lugares e situações hoje com freqüência as identificamos, o certo mesmo é que tal mandamento "não passa de literatura", na avaliação de Florestan. A nova Carta "só vale para um setor muito limitado, que tem o poder de fazer o que quer, e a usa apenas como referência e como fundamento 'legal' de suas operações financeiras, nos planos interno e externo".

              O Dia Nacional da Consciência Negra sensibilizava-o procedentemente. O 20 de novembro, dizia, "é a data que os movimentos negros mais capacitados para a luta cívica escolheram como a da consciência crítica, como a da consciência racial do negro. Essa consciência negra tem de ser necessariamente diferenciada, porque se volta para uma situação na qual a miséria e a exploração são disfarçadas sob o manto da pobreza e da tolerância".

              O conceito de consciência negra não reflete tão-somente uma consciência crítica e tampouco a pretensão de chegar à consciência civil, inspiradora dos negros que, no São Paulo de 1930, porfiaram até o começo do Governo de Getúlio Vargas, logrando, após esse período, algumas mudanças. Antes, apresentavam-se como defensores da legislação, para que não fosse praticada "de forma desigual e desumana".

              Trata-se, conseqüentemente, de uma consciência diferenciada, por não corresponder à consciência indígena ou à dos pobres, uns e outros sem "a marca visível da estigmatização negra", conforme definem os psicólogos e os sociólogos. Pode ser traduzida pela disposição de o negro ser, ele próprio e não o branco, "o autor de sua auto-emancipação coletiva".

              Expressa o entendimento de que os negros não devem aguardar, de uma sociedade como a brasileira, eventual sensibilidade para os seus problemas fundamentais. Devem, portanto, adquirir "consciência desses problemas" que afetam a cada parte do universo da população negra, de modo diferenciado, "de Estado para Estado", de acordo com as peculiaridades regionais incidentes na formação de cada um.

              Remanesce inaceitável que os princípios de igualdade e de liberdade constituam privilégio de alguns escolhidos, pois o Estatuto máximo das leis brasileiras não se compadece com a restrição desses direitos a qualquer pessoa, desde que extensivo ao universo de cidadãos. Assim, é de todo justificável a condenação plena de procedimentos discriminatórios, que ofendam, de alguma forma, a cidadania do negro, do índio e de qualquer outro dos excluídos.

              Conseguintemente, o movimento negro brasileiro merece-nos integral e firme solidariedade, pois nele se reconhece a contribuição mais válida para a defesa e afirmação de toda uma raça, de sua luta pela conquista efetiva de direitos legislados e de condições de existência digna na sociedade a que pertence, uma vez cumpridas as garantias de educação, emprego, saúde e habitação, requisitos mínimos e comuns da vida humana.

              Florestan Fernandes termina o seu depoimento acerca do Dia Nacional da Consciência Negra reafirmando a convicção de que "o negro, como membro de classe, como membro da raça, precisa dispor, na sociedade brasileira, de um espaço intelectual para se desenvolver e para ter os seus talentos aprovados e chegar ao lugar de vultos como Machado de Assis, o maior intelectual brasileiro". Foi "um negro, de origem humilde" que a tudo e a todos nos honrou, com seu legado à literatura mundial.

              Não bastassem o abandono e a penúria extrema, como nos referimos, apartando o negro brasileiro do conjunto do corpo social, persistem entre nós outras manifestações de nítida discriminação racial. Em todo o mundo, é lamentável dizer, viceja ainda um ódio incompreensível, fazendo vítimas inocentes até mesmo na política, anulando lideranças emergentes e seccionando as mais brilhantes vocações.

              Muito recentemente, nos Estados Unidos, sem dúvida a maior potência mundial, as ameaças de morte, formuladas por grupos racistas, impediram a candidatura-líder das pesquisas do General Colin Powel, herói afro-americano da Guerra do Golfo, à presidência. Também, não é essa discriminação por motivo de raça a responsável pela existência de seguido desemprego entre a população negra daquela grande Nação?

              Aqui, manifestações dissimuladas de discriminação racial fazem parte do cotidiano das pessoas comuns. Na área do ensino, pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -- IBGE constata que o número de negros e pardos alfabetizados é de 37 por cento, para um percentual de 60 por cento de brancos. O corpo docente das três universidades públicas paulistas, constituído de mais de onze mil mestres, não se conta entre eles sequer.

              Nota-se, aí, que a discriminação e o preconceito configuram dificuldade de acesso aos bens sociais, empecilho que aparece, igualmente, na desigualdade da retribuição dos trabalhadores. Indicadores levantados pelo IBGE, e apurados há um ano, certificam que os negros ou pardos recebem 2, 9 salários, enquanto os brancos alcançam, na mesma função, 6,3 salários mínimos.

              O mesmo Órgão, referindo-se a estatísticas de 1990, informa que a composição média das famílias brancas é de 4,3 pessoas; das negras, 3,3 pessoas; e das pardas 5,2 pessoas. Dessas, estão empregados 1,8 brancos; 2,5 negros; e 2,1 pardos. Inversamente, pois que se empregam em menor número, os brancos ganham mais, atingindo a média familiar de 10, 3 salários, enquanto os negros não passam de 6,0 e os pardos de 8, 1 salários mínimos.

              Por fim, a violência faz o maior número de vítimas entre a população excluída. Duas mil morreram em confronto com a polícia de São Paulo, nos anos de 1981 a 1989. De cada três, dois eram negros ou pardos. Todavia, é significativo o fato de que, dentre os encarcerados nas diversas penitenciárias do Estado, a maioria era de brancos, com 52 por cento, de pardos, com 32 por cento; e de negros, com 13 por cento do total.

              Referimo-nos, no início deste pronunciamento, à generalidade dos livros de história em uso nas classes iniciais do sistema escolar. Além de não transmitirem a exata noção da importância da raça negra no passado do País, ignoram completamente o esforço que se faz no presente para tornar válida a condenação do racismo, para estabelecer a real igualdade entre todos os brasileiros.

              Em nada contribuindo para a correta conscientização das nossas crianças, essas publicações furtam-se à melhor didática, veiculando lições vazias ou desmerecedoras da verdade histórica, quando não difundindo afirmações que implicitamente conduzem à aceitação de atos discriminatórios por motivo de raça.

              Na contramão da sociedade fraterna e igualitária que todos almejamos, há referência mentirosa à participação do negro na edificação da memória pátria, lapso imperdoável quanto ao valor de sua contribuição à cultura, silêncio completo sobre o seu sacrifício em favor do crescimento nacional.

              Aos infantes, por certo, os ensinamentos são necessariamente ministrados à superfície do conhecimento. No entanto, deve-se a eles conceder o benefício da límpida e fiel página da história, convencendo que esta Nação não é fruto de algum gesto mágico, mas do esforço e trabalho de todos os brasileiros, negros e brancos, do passado aos nossos dias.

              Então, as crianças terão aprendido a lição máxima da solidariedade e do amor, aos semelhantes e à terra, perdendo-se no perpétuo esquecimento da história a nódoa da discriminação racial que nos deprime e envergonha.

              Era o que tínhamos a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/11/1995 - Página 3394