Discurso no Senado Federal

DILAPIDAÇÃO DE FOSSEIS LOCALIZADOS NO SITIO ARQUEOLOGICO DA CHAPADA DO ARARIPE, NO ESTADO DO CEARA, E SUAS IMPLICAÇÕES SOCIOCULTURAIS E ECONOMICAS.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • DILAPIDAÇÃO DE FOSSEIS LOCALIZADOS NO SITIO ARQUEOLOGICO DA CHAPADA DO ARARIPE, NO ESTADO DO CEARA, E SUAS IMPLICAÇÕES SOCIOCULTURAIS E ECONOMICAS.
Publicação
Publicação no DSF de 18/11/1995 - Página 3276
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, TRIBUNA DO CEARA, DENUNCIA, CONTRABANDO, DESTRUIÇÃO, AREA, ARQUEOLOGIA, ESTADO DO CEARA (CE), ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ESTADO DO PIAUI (PI).
  • REFERENCIA, LEGISLAÇÃO, PROTEÇÃO, PATRIMONIO ARQUEOLOGICO, BRASIL.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, ECONOMIA, SITUAÇÃO SOCIAL, REGIÃO NORDESTE, MOTIVO, INCIDENCIA, CONTRABANDO, DESTRUIÇÃO, AREA, ARQUEOLOGIA, ESTADO DO CEARA (CE).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em junho deste ano, o jornal Tribuna do Ceará publicou matéria sob o título "Contrabando de Fósseis cresce no Cariri", na qual descreveu uma situação de gravíssima dilapidação de um patrimônio nacional: as reservas de fósseis localizadas no Estado do Ceará e áreas vizinhas de Pernambuco e Piauí. É a memória geológica do país, que também é parte dos tesouros científicos do Planeta, esvaindo-se em milhares de pedaços vendidos clandestinamente como "lembranças", objetos de decoração ou, ainda, para museus e institutos de pesquisa estrangeiros, sem a devida autorização.

A denúncia feita pelo jornal chamou-nos a atenção não exatamente por ser uma novidade -- pois é sabido há anos que tal contrabando ocorre -- mas pelo fato de a pilhagem persistir e de forma cada vez mais ousada e intensiva, o que não deixa dúvidas quanto à necessidade de mudança na maneira de ver o problema. É preciso sair do campo das medidas tradicionais, baseadas numa caçada policial tão constante quanto infrutífera, e ver a preservação dos fósseis do Cariri como um conjunto que envolve aspectos científicos, culturais, penais e econômico-sociais e que, portanto, exige soluções compatíveis com tal complexidade.

A Bacia do Araripe, onde o sertão já foi mar há milhões de anos, guarda o que é considerado um território de preservação fóssil único no mundo. É um local de especial interesse geológico e paleontológico, porém, a ciência desenvolvida em outros países, mais do que nossos próprios especialistas, tem-se utilizado das informações imemoriais inscritas nos fósseis. E isso nem sempre de maneira legal, o que significa dizer que o Brasil está transferindo para centros de pesquisas estrangeiros o conhecimento de uma parte rara de seu subsolo. É famoso o caso de um exemplar raro de Pterossauro, encontrado no município de Porteiras, no Ceará, e revendido para o exterior por 350 mil dólares, indo parar num museu britânico. Agora, como dizem especialistas cearenses, se os estudiosos brasileiros quiserem vê-lo, terão que ir para a Inglaterra.

Com a finalidade de recolher dados oficiais sobre o caso e entender melhor os elementos que compõem o problema, solicitei à Mesa Diretora do Senado Federal o envio de Requerimentos de Informação aos Ministérios das Minas e Energia, da Justiça e da Cultura. A análise das respostas até agora enviadas, somada a informações recolhidas no Estado do Ceará, especialmente junto a pesquisadores, reforça a convicção de que insistir apenas nos atuais procedimentos utilizados na defesa dos depósitos de fósseis corresponde praticamente a condená-los à extinção.

A proteção desses depósitos baseia-se, principalmente, no Decreto-Lei 4.146, de 1942, que os classifica como propriedade da Nação, coloca-os sob a tutela do Departamento Nacional de Produção Mineral e libera de autorização -- limitando-se a exigir uma prévia comunicação -- as explorações de fósseis feitas por museus. Ora, o que a realidade mostra é a caducidade desse decreto na prática, visto que, em quase 50 anos de vigência, ele foi incapaz de garantir a proteção que determina. Segundo afirmam os técnicos do Centro de Pesquisas Arqueológicas da Chapada do Araripe, entidade vinculada ao DNPM, o que há, na verdade, é um grande vazio jurídico. O decreto-lei nunca foi regulamentado e acaba trazendo complicações ainda maiores. Por exemplo, proíbe a extração de peças, mas não se refere à sua comercialização.

Uma vez que os grandes contrabandistas de fósseis, vindos de outras regiões do país e até mesmo do exterior, não têm contato direto com a extração do material, acabam ganhando o que se poderia chamar de uma certa proteção legal para roubar. Assim, o que se verifica, pelo noticiário dos jornais, é um grande número de expedições policiais para busca e apreensão de peças, sem que isso leve a um estancamento do comércio irregular de que são objeto.

A impunidade dos contrabandistas, por sua vez, acaba incentivando o engajamento da população local na falcatrua, criando um sério problema social. Na época de seca ou de crise na atividade agrícola, os trabalhadores são utilizados como mão-de-obra para saquear os depósitos fossilíferos. Os jornais chegam a dar os nomes dos "patrões" dessa economia paralela ilícita. São empresas sediadas no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília; comerciantes que servem de testas-de-ferro para colecionadores, firmas exportadoras e cidadãos estrangeiros. Informam também que um dos maiores pontos de venda de fósseis -- e isso há muito tempo -- é a Praça da República, no centro de São Paulo.

O que se constata, assim, é uma afronta permanente à lei e um prejuízo científico e cultural ao país, incorporados à nossa rotina como se fossem fatos normais e aceitáveis. Até pouco tempo atrás, uma explicação do tipo "no Brasil é assim mesmo" poderia ser aceita de modo conformista, como se fosse possível nos desenvolvermos economicamente, sem crescermos como Nação, como povo cuja identidade só se formará num amálgama cultural, científico e educacional sólido e bem composto.

É claro que podemos analisar o que acontece no Cariri e em outras regiões do país como decorrência normal do nosso caráter de país pobre, que não se pode dar ao luxo de proteger riquezas naturais ou culturais, quando há problemas mais prementes, como a miséria, a serem superados. Nada mais equivocado. A dilapidação de nossos patrimônios faz parte do processo perverso que reproduz e torna permanente a pobreza da maioria da população, a quem só a procura da sobrevivência física é dada como direito.

A existência de uma identidade nacional, em sentido amplo, certamente seria um ingrediente diferenciador decisivo, inclusive para dar eficácia à luta por equidade social. A supremacia absoluta das razões econômicas no Brasil, sejam elas lícitas ou ilícitas, e a complacência com que costumamos tratar os abusos de tais razões ajudam a explicar por que estamos entre as dez maiores economias do mundo e nos últimos lugares em indicadores sociais. Já é hora de entendermos que a cultura e o desenvolvimento científico e educacional não são adendos; são condições que integram intimamente a procura de saídas e, nesse sentido, o caso do Cariri é exemplar.

Os ingredientes estão dados: uma área de enorme interesse científico encaixada numa região pobre, de escassas alternativas econômicas; legislação protetora superada, que não define claramente responsabilidades, meios e penas; órgãos públicos sem recursos humanos e financeiros suficientes para cumprir sua missão; interesses excusos agindo como potencializadores das dificuldades e aproveitadores de riquezas nacionais. Como quebrar esta cadeia?

Na próxima segunda-feira começa, no Crato, um seminário com a participação de cientistas, autoridades dos governos federal, estadual e municipais e do Ministério Público, para debater temas ligados à preservação dos fósseis da Chapada do Araripe, tais como a tutela do Estado, a extração ilegal vinculada a questões culturais e de sobrevivência, e a viabilidade de uma política interministerial integrada para a proteção das reservas.

Trata-se de uma oportunidade imperdível para sairmos de lá não apenas com aperfeiçoamentos teóricos, mas com compromissos e tarefas. A meu ver, esse é o caminho para a mudança de enfoque a que me referia no início. Ou seja, não bastam medidas oficiais, não basta aumentar a repressão ou os recursos financeiros e humanos. É preciso pensar a proteção das reservas fósseis no contexto da região, não como problema policial, mas como a construção de um consenso que leve em conta as oportunidades de desenvolvimento, de integração cultural, de geração de renda e de formação e absorção de mão-de-obra local. Este será o verdadeiro desafio, o de lançar sobre a questão um olhar criativo e produtivo.

Um passo a ser dado, de início, é a alteração da legislação para adaptá-la a esse entendimento ampliado, aposentando, finalmente, o Decreto 4.146. Para tanto, apresentarei oportunamente projeto de lei disciplinando o assunto; entretanto não pretendo que esse projeto reflita somente uma visão interna do legislativo federal. Ao contrário, gostaria que fosse uma construção coletiva dos segmentos diretamente interessados: cientistas, autoridades federais, estaduais e municipais, empresários da área de turismo e outras que possam apresentar alternativas viáveis e sustentáveis para a região, entidades civis e sindicais representativas da sociedade. Para tanto, buscarei subsídios junto a esses segmentos, fazendo do Congresso Nacional o espaço político da procura do consenso mencionado.

Esse é um papel nobre, que precisamos retomar com firmeza: o de pensar não apenas as emergências, mas o futuro, em todas as suas inúmeras interações. E uma via necessária para o futuro é a reversão de nossa tradição predatória, que já destruiu tantas riquezas naturais e culturais em favor de interesses imediatistas e egoístas.

Agradeço a todos pela atenção.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/11/1995 - Página 3276