Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM PELO FALECIMENTO DO EX-PRESIDENTE DA REPUBLICA FRANCESA, SR. FRANÇOIS MITERRAND.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM PELO FALECIMENTO DO EX-PRESIDENTE DA REPUBLICA FRANCESA, SR. FRANÇOIS MITERRAND.
Aparteantes
Humberto Lucena.
Publicação
Publicação no DSF de 10/01/1996 - Página 45
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, FRANÇOIS MITTERRAND, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, FRANÇA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (PT-SP. Para encaminhar a votação. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a morte do político, líder carismático, um dos maiores estadistas europeus do século, François Mitterrand, chocou o mundo. Atingiu em cheio aqueles que acompanharam a trajetória vertiginosa de François Maurice Marie Mitterrand, filho do ferroviário Joseph, que passará à história como Presidente socialista que governou a França por 14 anos, ou dois mandatos inteiros. Ao morrer na manhã do último dia 08, muitos questionam a ambigüidade do seu governo, mas ninguém poderá deixar de reconhecer que Mitterrand tentou passar a imagem de verdadeiro socialista quando promoveu um programa de esquerda para seu país.

As rosas vermelhas que hoje evocam a sua morte representam, na memória dos franceses, os grandes avanços sociais conquistados com Mitterrand no poder. Quando venceu a primeira eleição presidencial na França, em 1981, Mitterrand apontou com decisões que indicavam o paraíso socialista: reduziu a jornada de trabalho, criou uma quinta semana de férias anuais remuneradas, baixou para 39 horas a semana útil, diminuiu a idade da aposentadoria de 65 para 60 anos, nacionalizou grandes grupos industriais, transferindo para o setor público bancos que não haviam sido nacionalizados pelo ex-Presidente De Gaulle. O seu governo também ficou marcado pelo aumento do salário mínimo, o diálogo com os sindicatos e o fim da pena de morte.

Destacamos ainda outro feito no sentido de diminuir a desigualdade social. Em 01 de dezembro de 1988, o ex-Presidente François Mitterrand assinou o decreto que criou a Renda Mínima de Inserção na França. Por sua iniciativa e do Primeiro Ministro Michel Rocard, a Assembléia Nacional Francesa aprovou, sem qualquer voto contrário e com cerca de 10% de abstenções, o projeto que dá o direito a toda pessoa de 25 anos ou mais, cuja renda não atinge a pelo menos 2 mil e 600 francos, atualmente, a receber um complemento de renda. Não podemos deixar de mencionar, também, a verdadeira revolução cultural e arquitetônica que imprimiu na França.

O gosto pelo poder está latente na história da sua vida pública, que confunde-se com a própria história da França. Disputando a eleição por um pequeno movimento de esquerda surgido da Resistência, Mitterrand foi eleito em 1946 membro do Parlamento. Por 11 vezes foi Ministro, até a eleição para Presidência da República, em maio de 1981, derrotando Valéry Giscard d´Estaing, tornando-se o primeiro Presidente socialista da França com 51,75% dos votos. Em 1988, Miterrand foi reconduzido ao cargo de Presidente da França ao derrotar Jacques Chirac com 54% dos votos. Antes de deixar o Governo, decidiu, em 1992, congelar os testes de armas nucleares francesas no Pacífico Sul.

Mitterrand morreu ao lado da mulher, Danielle, e dos filhos Jean-Christophe e Gilbert. O homem que por 50 anos esteve presente na vida política da França reconheceu ainda em vida, como filha natural, Mazarine, nascida de um romance com Anne Pingeot. Mesmo os seus adversários políticos admiraram a natureza e a dignidade com que enfrentou a doença nos últimos anos. "Se um homem ou uma mulher deixar de fazer o que tem por causa de uma dor imprevista que lhes atravessa o corpo não são dignos de nada", declarou o ex-Presidente, quando questionado pelos médicos que o assistiam. Na manhã do dia 8, Mitterrand tentava redigir o seu 14º livro sobre a política externa de seu governo, quando as forças lhe faltaram.

Em março último, tive a oportunidade, designado pelo Senado Federal, de assistir, em Copenhagen, o discurso do Presidente da República Francesa na abertura da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social. Ali estavam presentes Chefes de Estado de todos os países. Eu gostaria de aqui dizer algumas das próprias palavras deste que, naquele dia 11 de março de 1995, estava como que dando o seu testemunho para a história, o seu testemunho de experiência extraordinária para o próximo século.

Eis as palavras de Mitterand:

      Assim como as senhoras e senhores, há muito tempo eu estava aguardando por este encontro de Copenhagen. Agradeço àqueles que tomaram a iniciativa, àqueles que o organizaram. No entanto, atrás de cada uma de nossas palavras está a mesma indagação: qual a utilidade deste encontro?

      Ao longo de extensa vida política, participei de uma infinidade de encontros como este, nos quais o simples fato de mencionar o social era uma extravagância. O social não tinha lugar nas discussões mantidas pelos dirigentes do planeta, como tinham a paz, o desarmamento, a economia: eram esses dois mundos distintos, como se o funcionamento dessa sociedade internacional fosse resultante, apenas, de mecanismos econômicos e financeiros, da correta regulagem das taxas de juros e de câmbio. Ora, esse não é meu modo de ver as coisas. São muitos os que, como eu, pensam que o homem, cada um de nós, cada um de vocês, cada um dos indivíduos que vivem na face da terra deve ser o escopo supremo de qualquer estratégia política ou econômica, devendo essa estratégia passar pelo social.

      Em 31 de janeiro de 1992, perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas, ali reunidos os chefes de Estado, fiz o voto de que se realizasse a primeira Cúpula mundial para o desenvolvimento social; esse meu desejo - compartilhado com outros dirigentes - pretendia atender uma urgência, sanar uma anomalia.

      Mas, talvez por lassidão, eu não depositava muita fé nesse projeto. Pensava com meus botões: será que vamos deixar que o mundo se transforme em um mercado global sem outra lei que a do mais forte, sem outro objetivo além da realização do maior lucro possível no menor prazo possível, um mundo em que a especulação arruina, em horas, o trabalho de milhões de homens e mulheres e ameaça o resultado de demoradas negociações, como esta?

      Ficava eu pensando: será que vamos entregar as gerações vindouras à ação dessas forças cegas? Saberemos construir uma ordem internacional fundamentada no progresso e, especialmente, no progresso social?

      Sei muito bem que, aqui e acolá, há pessoas dispostas a ouvir o canto de outras sereias. Será que devemos abrir passagem àqueles cujo credo se resume em poucas palavras: desregulação, desmantelamento das garantias e, inclusive, esquecimento do papel do Estado, que é moda atacar, quando é o cimento das sociedades democráticas? A necessidade que têm os países desenvolvidos de fazerem face ao risco de desagregação social que está ameaçando cada um deles não deve desviá-los dos seus compromissos de solidariedade em relação aos países pobres. Nos países pobres, há muita gente pobre e algumas pessoas que não o são. Nos países ricos, temos muita gente abastada, mas também temos milhões de pessoas que vivem com dificuldade.

      Alguns de nós - entre os quais eu mesmo, como chefe de meu país há 14 anos - têm proposto insistentemente que 0,7% do PNB de cada país seja destinado à ajuda pública para os países em desenvolvimento. E, todas as vezes que eu voltei a mencionar esta regra, disseram-me: "Isso não é nenhuma regra".

      Tal regra foi ventilada aqui, talvez por ser um objetivo com o qual ninguém é realmente obrigado a comprometer-se. Mesmo assim, é com satisfação que vejo este objetivo constar de nossa declaração conjunta de hoje. Aliás, permito-me assinalar que a França, de ano em ano, se aproxima deste objetivo: já estamos em 0,63%.

      Também me regozijo com os compromissos assumidos por esta cúpula em relação à África. Mas como poderia me furtar a externar minha preocupação ao ver que, a despeito das medidas baixadas para atraí-los, os capitais continuam evitando esse continente? Apenas 3% dos investimentos mundiais favorecem à África e a vida pública, naturalmente, não pode suprir tamanha suficiência. Podem argumentar: "Esse é, de fato, um continente menos dotados de riquezas naturais do que os outros." Isso não é verdade. "As sociedades desse continente são menos organizadas." Pode ser verdade, mas é cada vez menos verdade. E seria esse o motivo suficiente para deixar a África para trás? Cada vez mais, na África, vão surgindo elites, constituindo-se estruturas que permitem que cada um desses países se organize para participar do desenvolvimento mundial.

      Falou-se muito da dívida. Foi necessário dar um exemplo. Meu País, a França, começou destituindo-se dos seus créditos com 39 estados, obviamente aqueles que estavam na pior situação. A seguir, tomamos medidas para beneficiar aqueles que são chamados de estados em situação intermediária. Não fomos os únicos nessa atitude. Outros países fizeram como nós e devo agradecê-los por isso, mas não se pode dizer que tenhamos sido seguidos com entusiasmo pela maioria dos chamados países ricos do mundo.

      Por isso pergunto, no que diz respeito às situações financeiras internacionais: Não deveríamos fazer evoluir os espíritos e as políticas, adotando algumas medidas simples? Por exemplo, por que não zelar para que nenhuma decisão importante seja tomada sem prévia consulta aos atores sociais dos países interessados?

      Por exemplo, não seria necessário dar seu devido lugar, nos organismos internacionais, aos representantes dos trabalhadores e das empresas, tal como é praticado em muitos de nossos países?

      Essa regra, no entanto, não é admitida por todos. Por isso, é preciso que os representantes dos trabalhadores se encontrem, com vistas a costurar um acordo sobre o papel que disporiam a desempenhar dentro de nossas instituições.

      Com tudo isso, a nossa declaração é marco importante na definição dos direitos fundamentais dos trabalhadores do mundo, ao remover as ressalvas que os países em dificuldades ou em desenvolvimento têm tido em relação ao que chamavam, ao que era chamado de cláusula social. Essa cláusula social era vista como uma peia, quando na verdade a cláusula social - esqueçamos a expressão - deveria ter por único objetivo ajudar todos a acompanharem o movimento geral em direção ao progresso.

      Para tornar efetivos esses direitos, proponho que se reflita sobre um método gradual e prático de apoio aos esforços dos Estados que pretendem garanti-los de maneira mais eficiente aos seus cidadãos e, particularmente, às suas crianças.

      Convido todos, assim, a celebrarem contratos de desenvolvimento social. Tais contratos seriam estabelecidos após uma negociação com a OIT e organizações internacionais ligadas ou não à ONU. Esses contratos permitiram dar apoio financeiro aos esforços dos governos que se declaram dispostos a respeitar, de forma estrita, as convenções da OIT sobre os direitos dos trabalhadores. Senhoras e Senhores, isso é a base de tudo. O resto é discurso.

      Para financiar tudo isso, por que não instituir uma taxa sobre as transações financeiras de curto prazo, como propõe o Sr. James Tobin? Uma taxa com alíquota ínfima que produziria recursos enormes. Isso seria muito difícil de obter, e não alimento ilusões quando se fala em transações financeiras.

      No entanto, estão dispostos a assumir suas responsabilidades? Ou será que encontros como este são mera fachada? Estaremos nós a desempenhar uma comédia para o mundo? Ou estamos realmente dispostos a colocar o social no mesmo plano que a paz e a economia?

      A organização da segurança coletiva, como a das trocas e das moedas, de que nos dotamos logo depois da Segunda Grande Guerra Mundial, em San Francisco e em Bretton Woods, também precisam ser adaptadas, se não foram já destruídas. Creio que nosso mundo merece ser pensado outra vez, e que o será se introduzirmos o social nos principais pontos de nossas preocupações.

      Senhoras e Senhores, permitam-me concluir com uma palavra mais pessoal: Durante 50 anos de minha vida, exatamente 49, eu pude, na vida pública francesa e internacional, atuar para nos aproximarmos do ideal que é o seu, com três pensamentos principais no coração:

      O primeiro: a Liberdade, a Igualdade - temos aí a Revolução Francesa de 1789, tomada por muitos como modelo; a Liberdade, a Igualdade, mas também a Solidariedade, os Direitos do Homem, do cidadão, dos trabalhadores, a democracia, tudo isso é indissociável. Esses valores podem parecer difíceis de conciliar, e há quem receie que atravanquem a marcha para o progresso. Mas, eu lhes digo, somente esses valores permitirão garantir a perenidade dos progressos registrados e a marcha para mais progressos. Todo o resto seria apenas um retrocesso trágico e, no fim, decadência!

      O segundo pensamento: a pobreza, a exclusão, Senhoras e Senhores, não são uma fatalidade. Resultam de mecanismos conhecidos e precisos que devem ser denunciados e combatidos mediante a educação, a formação, a pesquisa científica, mediante o desenvolvimento da igualdade de oportunidades, mediante a humanização das condições de vida e de trabalho, etc. Cada um de vocês poderia acrescentar aí a sua proposta e, assim, contribuir para dar à nossa vida um novo sentido.

      Finalmente, esta será minha última palavra: Não se pode dar felicidade aos homens à sua revelia. É necessária a mobilização de todos. Nesse ângulo, a presença de duas mil ONGs em Copenhagen me parece um fator muito alentador. Não esqueçamos que nenhum dos países mais avançados teria conhecido o nível de desenvolvimento atual sem existência de vida democrática, partidos políticos, organizações sindicais e patronais, associações, ou seja, de um mutirão de que nenhuma categoria social foi excluída. Eis o que nos resta fazer. É algo imenso, mas a sua presença aqui prova que vocês estão dispostos a empreendê-lo, como nós também estamos dispostos.

O Sr. Humberto Lucena - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. EDUARDO SUPLICY - Pois não, nobre Senador.

O Sr. Humberto Lucena - Desejo solidarizar-me com V. Exª, quando propõe ao Senado uma homenagem à memória do grande estadista que foi François Mitterrand. Sem dúvida, a França, a Europa e o mundo inteiro muito devem a seu desempenho à frente não só do governo da França por vários anos, mas sobretudo como homem público e exemplar que sempre foi. Desejo salientar sua trajetória, a extraordinária vitória que ele deu aos socialistas franceses que teve uma repercussão imensa, à época, em todo o mundo, sendo de notar que S. Exª, tão logo foi batido nas urnas pelos conservadores, que fizeram maioria na Assembléia Nacional, não perdeu o fair-play, pelo contrário, procurou se compor em benefício da França e, muitos dos princípios que sempre defendeu e que constaram inclusive de sua plataforma, S. Exª anuiu em que fossem reexaminados para o efeito de manter o equilíbrio na vida político administrativa da França. Quero também pôr em relevo um aspecto fundamental da vida pública do Presidente François Mitterrand, qual seja sua permanente atuação no campo internacional, sobretudo no que tange à economia, no sentido de contribuir para melhor situação dos países devedores, dos países do Terceiro Mundo; e nesse particular, penso que o Brasil lhe deve muito porque S. Exª iniciou um movimento que não chegou a ter um êxito completo, mas deixou o testemunho da sua voz, do seu apoio às mudanças que sempre preconizou, por exemplo, junto ao Fundo Monetário Internacional: S. Exª era favorável a nova Conferência de Bretton Woods, para que pudéssemos reverter essa situação que, afinal, aos poucos vai mudando, na medida em que, hoje, o próprio FMI já aceita certas colocações que antes absolutamente não admitia. Quero com isso deixar aqui meu preito de saudade ao grande Presidente François Mitterrand, ao que ele representou para a França, para o mundo e para todos nós.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Estou de pleno acordo com as palavras do Senador Humberto Lucena, que, Presidente que foi do Senado Federal, cita o Presidente François Mitterrand em sua devida dimensão.

Ainda hoje, Senador Humberto Lucena, recebi a visita de dois Parlamentares franceses que, embora não integrantes do Partido Socialista, deram seu testemunho do respeito que têm pela França e da dor dos franceses com a perda desse grande estadista. Segundo disseram, ainda que em alguns momentos tenham discordado; ainda que tenham feito inúmeras críticas com respeito a problemas havidos durante seu Governo; ainda que, por exemplo, os gaullistas sempre discordassem das observações feitas por François Mitterrand a respeito de De Gaulle - uma vez que o qualificava como um golpista permanente na França -, ressaltaram algo importante dito por Mitterrand ao entrar, no primeiro dia, no Palácio de Governo da França, quando transmitiu que procuraria se adaptar ao posto que tinha sido ocupado tantas vezes por De Gaulle, que procuraria se adaptar à grandeza que o Presidente De Gaulle havia representado para a França.

Ressalto que o Presidente François Mitterrand, quando de sua segunda tentativa de se tornar Presidente por mais sete anos - na verdade, era a quarta tentativa, porque ele foi derrotado duas vezes, eleito em 1981 por sete anos, e novamente em 1988 se candidatou para um período de mais sete anos -, disse que introduziria na França, como um dos principais pontos de sua plataforma, um projeto que instituiria a renda mínima de inserção, segundo a qual nenhuma pessoa de 25 anos teria uma renda menor que um patamar que, na época, era de dois mil francos - e, atualmente, de dois mil e seiscentos francos.

E eis que tal projeto foi então apresentado pelo próprio Mitterrand, pelo Ministro Michel Rocard, sendo Ministro da Fazenda Lionel Stoleru, que esclareceu que esse projeto já estava pronto e apresentado desde 1974. Foram necessários quase quinze anos de amadurecimento, e quando de sua votação, em dezembro de 1988, a Assembléia Nacional francesa o aprovou por unanimidade, havendo no máximo 10% de abstenção.

Assim, Sr. Presidente, registro o preito de pesar, em nome da Bancada do Partido dos Trabalhadores, a todo o povo francês.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/01/1996 - Página 45