Discurso no Senado Federal

DISCUSSÃO INUTIL DA POSIÇÃO IDEOLOGICA DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.

Autor
Valmir Campelo (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/DF)
Nome completo: Antônio Valmir Campelo Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • DISCUSSÃO INUTIL DA POSIÇÃO IDEOLOGICA DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
Publicação
Publicação no DSF de 25/01/1996 - Página 858
Assunto
Outros > PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • CRITICA, INEFICACIA, DISCUSSÃO, PARTIDO POLITICO, OPOSIÇÃO, ACUSAÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, TRAIÇÃO, IDEOLOGIA.
  • APOIO, POSIÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, BUSCA, SOLUÇÃO, PAIS, INDEPENDENCIA, PROCEDENCIA, DOUTRINA, IDEOLOGIA.

O SR. VALMIR CAMPELO (PTB-DF. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o tema que me traz à tribuna tem sido recorrente no debate político brasileiro. Refiro-me à questão das ideologias. Parte da Oposição acusa o Presidente Fernando Henrique Cardoso de ter traído sua ideologia social-democrática e de ter aderido ao ideário neoliberal.

Sem querer fazer a defesa do Presidente, até porque Sua Excelência a faz melhor do que ninguém, quero dizer que considero esta uma discussão inútil e desprovida de sentido. Mero desperdício de tempo e de energias.

Um dos fenômenos políticos mais expressivos de nosso tempo é exatamente o colapso das ideologias. O fim dos regimes socialistas do Leste Europeu, em que desponta a emblemática queda do Muro de Berlim, seguida pelo fim da União Soviética, "desideologizou" definitivamente o debate político.

Já não se argumenta nem se age em função desse ou daquele pressuposto ideológico. Buscam-se as melhores soluções, independentemente de sua procedência doutrinária. E não poderia ser de outra forma. Afinal, ideologias são camisas-de-força da inteligência.

O que um administrador busca são resultados concretos, que melhor atendam as necessidades e aspirações das pessoas sob sua responsabilidade. O desafio básico com que se defronta o governante é o de promover o equilíbrio entre receita e despesa. E o objetivo é a melhoria da qualidade de vida de seus governados. Tudo o mais é supérfluo.

E aí pergunta-se: o déficit é de Direita ou de Esquerda? A incompetência é neoliberal ou social-democrata? A prosperidade é de centro-Direita ou de centro-Esquerda? E a fome, o desemprego ou a pobreza? Quando confrontadas com a vida prática, as questões ideológicas tornam-se falsas, fictícias, vazias.

Os desafios da vida não obedecem à sistematização dos códigos doutrinários. Colocam muitas vezes o administrador diante de paradoxos, a que deve responder com outros tantos paradoxos. A vida é plural, diversa e exige dos que têm responsabilidade com a coletividade - os homens públicos - visão igualmente ampla e diversificada.

O verdadeiro estadista importa-se não em ser fiel a esse ou àquele credo, mas em dar soluções aos desafios de seu ofício, servindo-se tanto da doutrina liberal como da marxista ou de qualquer outra que lhe ofereça a orientação de que necessita.

Tudo depende das circunstâncias. O legado das doutrinas políticas é hoje patrimônio da cultura humanística. Não pode continuar sendo pretexto para manter as pessoas divididas e em atitude hostil.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, tivemos, com o atual, quatro Presidentes da República. Todos mencionaram aspectos da atual Carta que consideravam incompatíveis com a governabilidade. Mesmo não sendo correligionários ou adeptos das mesmas crenças doutrinárias, esses Presidentes esbarraram em dificuldades concretas semelhantes. Uma delas: a perda de receitas da União para Estados e Municípios. A União, a partir da Constituição de 88, conservou obrigações administrativas sem conservar as respectivas verbas que as financiavam.

Esse é um problema de ordem prática, cuja solução não é nem de Direita, nem de Esquerda, nem de Centro: é simplesmente contábil. É preciso rever a destinação desses recursos e rever a destinação dos encargos. E o Governo embutiu a questão no projeto de reforma tributária, que será examinado pelo Congresso no bojo de amplo debate.

A privatização e a quebra dos monopólios estatais, do mesmo modo; obedecem não a um ritual doutrinário, mas a uma necessidade concreta de abrir a economia do País e permitir o aporte de investimentos e de capitais. É essa uma tendência mundial, decorrente da globalização das economias, da interpenetração dos mercados. Ignorá-la é uma temeridade.

Não adianta argumentar ideologicamente. Estão aí a Europa Unida, o Nafta, os tigres asiáticos. O Mercosul é a nossa resposta, um pouco tardia, a esse novo momento da economia mundial. Não se trata de aceitar tudo o que nos é oferecido em nome do novo. Muito pelo contrário. O momento exige cautela, mas exige também ação. Temos que encontrar o ponto de equilíbrio entre essas coisas. Não podemos perder mais uma vez o bonde da história.

E, felizmente, não o estamos perdendo. O Brasil, inclusive, teve a iniciativa de propor, aos países latino-americanos que formam o Grupo do Rio, providências restritivas quanto aos capitais especulativos, que vitimaram recentemente o México.

É esse um efeito colateral da globalização que exige cuidados sérios. Diga-se que tais cuidados interessam não apenas aos países periféricos. Interessam não apensas aos países ricos - e não apenas porque a interconexão das economias coloca todos em risco, mas porque o capital especulativo é igualmente corrosivo para todos.

Basta ver o que aconteceu há não muito tempo com o Banco da Inglaterra, vitimado pelo mesmo jogo voraz da especulação alucinada.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, cujo projeto de reformas, em suas linhas gerais, meu partido, o PTB, apóia, é homem público oriundo do mundo acadêmico. Antes de viver os desafios concretos da política, viveu a realidade fascinante do mundo das idéias, a abstração das teses e das doutrinas. É autor de numerosos livros, no campo da Sociologia e da Ciência Política, muitos deles tidos como de inspiração socialista.

Isso lhe valeu, ao tempo do regime militar, o exílio e a perseguição. Não subestimo essa experiência, muito ao contrário, nem condeno, neste discurso, a validade de doutrinas e idéias. Condeno, isto sim, a escravização do homem às doutrinas, pois entendo que as doutrinas é que devem servi-lo, e não o contrário.

Pois bem, o Presidente era ainda Ministro da Fazenda de Itamar Franco quando foi publicamente execrado por ter abjurado de algumas idéias que sustentara no passado. Ele teria dito algo parecido com "esqueçam tudo o que escrevi". Ele diz que não disse exatamente isso, que se referiu apenas a parte do seu antigo ideário. Mas suponhamos que ele tivesse dito exatamente a versão que ainda prevalece: "Esqueçam o que escrevi".

Vejo em tal atitude não um gesto de traição ou de fraqueza de personalidade. Ao contrário, é gesto raro da honestidade intelectual. Parte substantiva da obra do Professor Fernando Henrique Cardoso foi escrita em um outro mundo, ainda fortemente marcado pela Guerra Fria e pela dicotomia Leste-Oeste. Esse mundo, que o levou ao exílio e à perseguição pessoal, acabou encoberto pelos escombros do Muro de Berlim.

A compreensão da realidade mutante em que vivemos exige, como pressuposto básico, que nos libertemos de bitolas e de camisas-de-força. Os ideários correspondem a visões parciais da realidade da vida. Têm grande utilidade, se utilizados como ferramentas de trabalho; um remédio que se retira da prateleira para fim específico e que para lá retorna após ser utilizado. Nada mais. A sujeição do homem a dogmas mediocriza e distancia da realidade.

Na qualidade de Líder do PTB nesta Casa, acompanho, do meu posto de observação, o encaminhamento das reformas patrocinadas pelo Governo Federal. Como já disse, estou de acordo com a essência do discurso presidencial: penso que o Brasil precisa ajustar sua estrutura estatal, dar-lhe maior eficácia e racionalidade.

Precisamos liberar as energias empreendedoras do País, o que implica ampla reforma tributária e fiscal. Precisamos abrir a economia, de modo a atrair investimentos produtivos, que permitam a retomada do desenvolvimento econômico. Não há outro meio de eliminar a miséria senão pela geração de riqueza. Essa é outra lei da economia que está acima de qualquer ditame ideológico.

Para que tudo isso aconteça, é preciso mexer nas estruturas do Estado, ferir interesses estratificados, provocar as discussões que estão sendo detonadas neste momento. O que considero improdutivo é, como disse no início deste discurso, direcionar essas discussões, que devem ser fecundas e francas pelo viés restritivo do pensamento ideológico.

A Oposição deve participar com sua crítica, com sua fiscalização, mas também com propostas alternativas. Ela possui pessoas notáveis nesta Casa e na Câmara. Dela se espera a contribuição efetiva de propostas alternativas, que dêem substância à discussão das reformas. Não pode essa participação se restringir à surrealista discussão em torno de rótulos: se o Presidente é ou não neoliberal, se traiu ou não o pensamento socialista.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/01/1996 - Página 858