Discurso no Senado Federal

QUADRO DRAMATICO DA SITUAÇÃO DOS MENINOS E MENINAS POBRES DE NOSSO PAIS, A PROPOSITO DA SEMANA DA CRIANÇA.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • QUADRO DRAMATICO DA SITUAÇÃO DOS MENINOS E MENINAS POBRES DE NOSSO PAIS, A PROPOSITO DA SEMANA DA CRIANÇA.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Jefferson Peres.
Publicação
Publicação no DSF de 11/10/1995 - Página 764
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • RELATORIO, QUADRO GERAL, VIDA, MENOR ABANDONADO, BRASIL, POBREZA, MISERIA, NECESSIDADE, POLITICA, DESEMPREGO, INVESTIMENTO, EDUCAÇÃO BASICA.
  • PROBLEMA, INDUSTRIA, TURISMO, EXPLORAÇÃO SEXUAL, PROSTITUIÇÃO, HOMICIDIO, MENOR ABANDONADO.
  • INFORMAÇÃO, CONGRESSISTA, BLOCO PARLAMENTAR, DEFESA, CRIANÇA, RUTH CARDOSO, PRESIDENTE, PROGRAMA COMUNIDADE SOLIDARIA, DISCUSSÃO, PROJETO, ASSUNTO, PROSTITUIÇÃO, INJUSTIÇA, CONDIÇÕES DE TRABALHO, NECESSIDADE, APROVAÇÃO, VERBA, IMPLEMENTAÇÃO, POLITICA, PROTEÇÃO, CRIANÇA CARENTE, FISCALIZAÇÃO, LEGISLATIVO.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, teremos, depois de amanhã, dia 12 de outubro, feriado nacional. O dia 12 de outubro é o Dia da Criança. Nessa data, haverá várias manifestações e comemorações, principalmente para as crianças cujas famílias podem levá-las ao parque, comprar brinquedos. Mas sabemos que todo dia é dia da criança, todo dia é dia do adolescente.

Venho a esta tribuna, conhecendo, como conheço, a situação do País, por conta dessa semana da criança, que vai ser comemorada em todo o Brasil.

Relato o quadro geral, que considero sombrio, da realidade dos meninos e meninas do Brasil: sua marca registrada é a pobreza, a miséria, o que é motivo da nossa inquietação.

A Organização Mundial da Saúde aponta o Brasil como um dos países com o maior índice de mortalidade infantil, com 32,5% de mortes por 1.000 nascidos. Em cada 100 crianças que se matriculam no primeiro grau, apenas 22 chegam à oitava série. A evasão escolar no Brasil, segundo relatório da UNICEF, é superada apenas por dois países: Guiné Bissau e Haiti. Trinta por cento das crianças com menos de 5 anos apresentam algum tipo de desnutrição. Portanto, são seis milhões de crianças que não se alimentam de forma adequada. Mais de um milhão e meio de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos estão fora da escola. No grupo de 15 a 17 anos, a proporção dos adolescentes fora da escola atinge 61%. Nove milhões de crianças entre 10 e 14 anos vivem em situação de pobreza.

Esse quadro de abandono a que estão relegadas nossas crianças e adolescentes reproduz uma outra situação, igualmente estarrecedora: crianças vítimas de maus-tratos, espancamentos, negligências e abandono. Levantamento realizado na cidade de Fortaleza, por exemplo, revela que os parentes - pais, irmãos e avós - são os principais agressores dessas crianças. Portanto, na estrutura familiar isso também acontece. É um aspecto importante para ser lembrado nessa data.

Sabemos que isso acontece também por conta da pressão que essas famílias sofrem pelo desemprego. Muitos pais dividem com as crianças a responsabilidade pelo sustento da família. Segundo pesquisas que temos em mãos, crianças e adolescentes - não apenas em Fortaleza - estão trabalhando como escravos, sem remuneração e em condições péssimas de atendimento e de prevenção à sua saúde.

O trabalho infantil é uma realidade no País. O trabalho infantil é um fenômeno em expansão no mundo inteiro e está tirando da criança a oportunidade e a possibilidade de sonhar e de ser criança.

No Brasil, começa-se a trabalhar cada vez mais cedo: aos seis, sete, oito anos de idade. O que me espanta, Srs. Senadores, é que tive uma vida exatamente assim, e as coisas não mudaram. Aos cinco anos de idade, eu, menina de rua, já estava lá, trabalhando. Parece que é mentira, mas não posso aceitar o fato de que, em 1995, ocupando a tribuna, eu esteja lendo os dados de um levantamento segundo o qual temos crianças entre seis, sete e oitos anos de idade que fazem o papel de chefes de família. Estou com cinqüenta e três anos, já se passaram quarenta e oito anos, e não é possível que ainda possamos constatar fatos como esse.

O Sr. Jefferson Péres - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Jefferson Péres - Senadora Benedita da Silva, ouço, com a maior atenção, o seu pronunciamento, porque aborda tema realmente crucial para este País. V. Exª en passant mencionou algo muito relevante. No fundo, Senadora, o problema do menor no Brasil é o problema do adulto: é a desagregação dos lares pela miséria. Isso expele dos lares as crianças, até com a conivência dos pais, porque elas têm que sair cedo para suplementar a renda familiar; caso contrário, não sobrevivem. Ainda que os pais quisessem impedi-las, não poderiam. Se eles não têm para dar a essas crianças o mínimo para satisfazer as necessidades básicas, evidentemente que os pais perdem completamente a autoridade sobre elas. Isso é altamente preocupante, porque é um problema social de fundo, e, se não começar a ser solucionado, realmente é de se perguntar: o que será deste País amanhã, Senadora?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª.

Veja V. Exª que temos um Estatuto da Criança e do Adolescente que até hoje não foi aplicado; e, quando se comenta sobre ele, faz-se com uma outra violência: "Não, querem é pegar esses pivetes, que são marginais, querem é pegar essas crianças que estão nos agredindo e dar pão-de-ló para elas. Tem é que botar para trabalhar! Tem é que fazer isso, ou tem é que fazer aquilo. Não se pode mais punir esses marginais, esses assassinos, esses criminosos com esse Estatuto da Criança e do Adolescente".

É isso o que estamos vendo, Senador. V. Exª, no aparte, fala exatamente de uma preocupação maior, que é o amparo aos pais dessas crianças para impedir que elas cheguem às ruas. Isso é o que está faltando, e está também associado a uma política de desemprego. Precisamos empregar, precisamos dar salários.

V. Exª sabe que está acontecendo o Encontro Nacional de Trabalhadores Mirins. São 3 milhões de crianças e adolescentes que trabalham, alguns sem remuneração, outros trabalhando mais de 40 horas semanais, outros sem alimentação, em locais insalubres como minas e carvoarias - inclusive já fizemos denúncias a respeito disso; há ainda os que vendem o corpo para se alimentar. É a prostituição infanto-juvenil.

Não estamos vendo, Sr. Presidente, uma associação entre os investimentos sociais que temos hoje e a educação. A escola é o maior e o primeiro instrumento de que o indivíduo deve dispor; no entanto, a nossa educação está desassociada dessa necessidade social, dessa necessidade humana que é o conhecimento, também um instrumento para que o cidadão possa galgar gradativamente a sua chamada escala do sucesso, e, assim, contribuir com o seu conhecimento na disputa, no mercado de trabalho, por melhores condições de trabalho e de salário.

Então, sabemos que as nossas crianças pobres não existem, não têm infância, não têm a sua brincadeira, a sua fantasia, os seus sonhos.

O Sr. Jefferson Péres - O mais preocupante, Srª Senadora, é a reprodução da miséria. Elas saem do lar e vão para as ruas ganhar a vida com 7, 8 ou 9 anos de idade; por isso, não vão à escola ou saem da escola; por isso, não se educam, não se qualificam. Amanhã, serão marginalizadas, serão peões de obra, enfim, ocuparão funções menos qualificadas na sociedade. Isso representa a perpetuação da miséria.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Tem razão V. Exª, até porque hoje estamos em uma outra época. Lembro-me, Senador - não gosto de ficar voltando ao passado, mas são exemplos que são interessantes trazer para cá -, que, no meu tempo, pelo menos fiz o curso primário. Apesar de estar trabalhando na rua, apesar de viver em condição de miserabilidade, garanti a escola naquele momento.

Hoje, para que os pais possam garantir as crianças em casa, elas não têm que ir para a escola, elas têm que trabalhar na rua, porque os pais não podem sustentá-las. Quando era Vice-Presidente da CPI que investigou a prostituição infanto-juvenil, lembro-me de que aquelas meninas com quem falamos tinham um sonho. Nas investigações feitas, elas diziam: "Não posso ver o meu irmão com fome". Elas se consideravam adultas, maiores, com a responsabilidade de buscar o alimento.

Desta tribuna, já comentei sobre a resposta de uma dessas meninas quando lhe perguntamos o motivo que a tinha levado a entrar naquela vida. Lógico que nós sabíamos de antemão, mas gostaríamos de ter o testemunho daquela menina. Foi muito duro ouvi-la dizer: "Fui para essa vida quando perdemos a última criação que tínhamos no quintal. E eu atirei-me nos braços de um homem como quem se atira debaixo de um trem". Para ela não havia mais esperança! E ela era uma menina!

É duro vermos, nas ruas das nossas cidades, meninas com suas crianças no colo. São um brinquedo nas mãos delas, que, na realidade, também são crianças.

Não podemos, portanto, de forma alguma, concordar em que elas não tenham seus sonhos, em que elas não tenham suas fantasias. E isso não é apenas uma questão emocional, é uma realidade que estamos enfrentando.

É preciso mesmo, nessa campanha que estamos fazendo na Frente Parlamentar em Defesa da Criança e do Adolescente, que possamos bater às portas dos Ministérios, que possamos ouvir do Governo Federal que vai, realmente, reagir diante dessa situação. E nós estaremos lá para apoiá-lo nessa sua iniciativa, porque a situação é realmente terrível.

O Sr. Bernardo Cabral - Permite-me V. Exª um aparte, nobre Senadora Benedita da Silva?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, nobre Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral - Agradeço a V. Exª, Senadora Benedita da Silva, menos para interrompê-la do que para dar um testemunho. Acompanhei o trabalho de V. Exª como Constituinte ao longo de dezenove meses seguidos. Àquela altura, V. Exª demonstrava sua preocupação com o menor abandonado, com a criança carente, temas que V. Exª desenvolveu ao longo de todo o exercício de seu mandato. Talvez poucos, muitos poucos, neste Parlamento, tenham a credibilidade para falar num assunto tão difícil - apesar de ser menor, o assunto é dos maiores - quanto V. Exª. Ainda há pouco, V. Exª registrava a sua meninice, o fato de ter conseguido completar o primário, apesar das dificuldades; mas V. Exª, Senadora Benedita da Silva, dispõe de um diploma maior, que lhe foi conferido pela universidade da vida. Foi através dela, do seu sofrimento, da sua caminhada, das suas dificuldades, do carrossel das decepções em que passeou que V. Exª chegou até esta tribuna. E hoje, às vésperas do Dia da Criança, V. Exª aborda esse tema com aquilo que mais engrandece o político, a credibilidade. V. Exª não ocupa a tribuna para fazer cena num discurso previamente preparado, como se fossem passos de dança devidamente entre os seus colegas combinados. Não. Nem pela manhã, quando V. Exª esteve comigo, ressaltou que ia ocupar a tribuna para um assunto desta magnitude. Quero fazer um ponto de referência na criança Benedita de ontem, para me fixar na Senadora Benedita da Silva de hoje. As premissas do passado de V. Exª a credenciam, Senadora Benedita da Silva, para falar no assunto com a seriedade e a magnitude que o tema reclama, e, sobretudo, para dizer que, na tribuna do Senado, há uma pessoa que, tendo sido criança sofredora de ontem, é hoje a defensora de todas elas. Meus parabéns!

A SRª BENEDITA DA SILVA - Obrigada, Senador. Eu ainda não consegui desassociar essa minha emoção política da emoção humana. E, no dia em que isso acontecer, é evidente que não mais poderei corresponder ao que V. Exª acabou de dizer. Realmente, estou nesta tribuna imbuída de uma vontade política, mas, sobretudo, com uma carga emocional muito grande, até porque tenho orgulho de poder estar aqui, apesar do que passei. Estou aqui porque sou uma testemunha viva de que, se houver uma oportunidade - que a mim foi dada, com todos os sacrifícios -, provavelmente não teremos mais Beneditas da Silva da vida em nenhum Senado desta República falando a respeito dessa situação, a não ser para dizer que as nossas crianças são crianças. Porque até nisso, Senador Bernardo Cabral, há uma diferença; "criança" é uma denominação dada para aqueles que podem comer, beber, ir à escola, ser vistos por outras pessoas; os outros são "menores", que estão nas ruas batendo carteira, pedindo esmolas, na mendicância. Estes são os menores; as crianças são outras.

É muito séria essa situação para que dela fizéssemos uso, neste momento, apenas para uma projeção política. Tenho absoluta certeza - e V. Exª sabe disso - de que não apenas eu, mas muitos têm contribuído para melhorar a situação dessas crianças. Lembro-me de que V. Exª, Senador Bernardo Cabral, na Assembléia Nacional Constituinte, como nosso grande Relator, foi capaz de acatar todas as reivindicações que os movimentos trouxeram e que constam da nossa Constituição. Como desdobramento, criamos o Estatuto da Criança e do Adolescente e temos o CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que tem feito um trabalho, mas não tem tido a repercussão correspondente às frases, aos artigos e aos parágrafos da nossa Constituição.

Por isso, estou aqui, falando sobre a situação dessas crianças e adolescentes, que, desde muito jovens, iniciam-se na prostituição. Temos a Casa de Passagem do Recife, que retrata perfeitamente essa situação e que realiza um excelente trabalho. A prática cotidiana da Casa de Passagem junto às mulheres e meninas informava que 45% das prostitutas tinham menos de 20 anos. Em 1994, esse percentual passou para 75%. Não podemos conviver com esse absurdo!

Outro grave problema da exploração humana é a chamada "indústria do pornoturismo". Queremos e devemos estimular o turismo em nosso País, mas o que estamos vendo crescer é essa indústria do "pornoturismo". Essa modalidade de exploração sexual está centrada nos pólos de turismo brasileiros, especialmente nas cidades do Nordeste.

Não podemos conviver também com o extermínio de meninos e meninas de rua. Temos certeza de que haverá uma ação mais rígida para darmos fim a esse ciclo de terrores da violência, dos assassinatos de crianças e adolescentes.

Não podemos concordar que o nosso País esteja sendo apontado pela ONU - dados do UNICEF - como o mais violento, tanto na questão do abandono quanto na da violência contra as crianças e adolescentes.

Passaria a tarde inteira falando a respeito desse assunto. Tenho aqui meu discurso, que não foi todo desenvolvido, o qual gostaria, para registro, que constasse na íntegra. É importante garantirmos os direitos dessas crianças.

Finalizando, Sr. Presidente, quero apenas enfatizar que a Frente Parlamentar em Defesa da Criança teve um encontro com a Primeira-Dama, D. Ruth Cardoso, quando tratamos de vários projetos com respeito à prostituição, ao trabalho escravo, ao trabalho não remunerado ou mal remunerado e às condições de trabalho. E vimos a necessidade - este é o apelo que faço a esta Casa - de que, no Orçamento, possamos garantir as rubricas para essa ação de esforços entre os Poderes, estendendo essa articulação para todos os lados, para que possamos compartilhar essa responsabilidade e garantirmos que o Governo Federal tenha verba suficiente para o implemento dessa política, tendo o Poder Legislativo como fiscalizador, para que possamos dar um basta, como já disse, a esse ciclo.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/10/1995 - Página 764