Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE AS CAUSAS GERADORAS DA VIOLENCIA URBANA.

Autor
Nabor Júnior (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AC)
Nome completo: Nabor Teles da Rocha Júnior
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • REFLEXÕES SOBRE AS CAUSAS GERADORAS DA VIOLENCIA URBANA.
Publicação
Publicação no DSF de 13/03/1996 - Página 3938
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO SOCIAL, AUMENTO, VIOLENCIA, PAIS.

O SR. NABOR JÚNIOR (PMDB-AC. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, todas as pesquisas realizadas nos últimos meses apontam a violência cotidiana como preocupação maior dos cidadãos brasileiros. Uma chacina, no mínimo, é registrada a cada semana nas grandes cidades, hoje inchadas pela migração dos trabalhadores rurais desempregados, paralelamente ao brutal achatamento salarial e aos alarmantes índices de desemprego que os institutos técnicos denunciam em seus relatórios.

Os diagnósticos para essa epidemia explosiva são divulgados diariamente, revelando fatores que, somados, não poderiam apresentar outros resultados. Falência das antigas estruturas familiares e dos núcleos domésticos; desemprego e falta de perspectivas profissionais; repercussão dos escândalos financeiros e dos grandes golpes bilionários; ausência dos poderes públicos no controle e na repressão aos criminosos; tráfico de tóxicos, hoje encastelado e inatingível em refúgios encobertos pela miséria das favelas; quebra da economia rural de pequena escala, o que empurrou os seus tradicionais trabalhadores para aquelas habitações subumanas, já saturadas pelos próprios excedentes urbanos; programação das emissoras de TV e filmes destinados à juventude, todos centrados na mais desvairada e repugnante agressividade gratuita e destruidora de valores essenciais à própria dignidade de viver. E, coroando tudo isso, a impunidade, a certeza - que têm os criminosos - de que não serão apanhados e, se o forem, poderão protelar indefinidamente a condenação que certamente merecem.

Os pontos que estou listando representam apenas os mais importantes, para entendermos a eclosão da violência alarmante e endêmica, vivida pelo Brasil neste final de Século. Neles encontraremos as principais raízes do problema, a infecção generalizada que contaminou o corpo da nossa Pátria.

A falta de cultura e de educação básica não permitiu à cidadania brasileira superar a desagregação familiar decorrente da explosão econômica que marcou a nova fase das relações industriais, comerciais e de serviços em todo o mundo. A contribuição paterna, como tradicional provedora do núcleo doméstico, tornou-se insuficiente ante a elevação das despesas e a progressiva desvalorização de seus rendimentos. As mulheres tiveram de ausentar-se dos lares, em busca dos recursos próprios e da justa realização de seus projetos de afirmação pessoal, como profissionais - mas não houve qualquer contrapartida do Estado em termos de creches públicas e apoio à educação da infância e da juventude. O resultado dessa omissão estatal é visível nas calçadas, nas esquinas e nos escuros da noite: uma legião de menores abandonados, futuros prováveis adolescentes infratores e adultos delinqüentes. Muitos, decerto, conseguirão fugir ao destino perverso - mas isso, sem dúvida, será obra da misericórdia divina e de qualidades pessoais inatas dos sobreviventes.

Não podemos esquecer que violência é um fato social materializado, não uma simples abstração semântica. É sempre praticada por alguém ou algum grupo social, contra alguém ou algum grupo social; tirando-se os indivíduos patologicamente deformados em sua personalidade, os agentes da violência são aqueles forçados à marginalidade por diversos incentivos, que vão desde a cobiça insana até o desespero dos irremediavelmente marginalizados pela comunidade.

Não é por acaso que as grandes chacinas, a execução coletiva praticada por marginais travestidos de justiceiros, essas matanças estão banalizadas, desgraçadamente, pela mídia - tal a freqüência com que ocorrem. São tragédias que se repetem nas periferias de grandes centros, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, muitas vezes sob as promessas de "segurança" para os pequenos comerciantes e de "justiça e ordem" nas localidades. Aí encontramos outra raiz do problema: a falência do Estado, em sua missão elementar de dar tranqüilidade e paz aos cidadãos, garantindo-lhes patrimônio e a própria vida do núcleo familiar.

Os chefes de polícia rechaçam essa afirmação, dizendo que controlam suas respectivas jurisdições. Mas a realidade vem desmentir, cabalmente, a pretensa eficácia da ação oficial: o poder paralelo e os exércitos formados pelos grandes traficantes e donos das favelas é uma realidade visível e incontestável. De que adianta a polícia acuar, prender ou mesmo provocar a morte de um inimigo público, se a demonstração de força feita pelos seus aliados, em represália, chega ao ponto de decretar luto "oficial" nos respectivos redutos, obrigando todos os comerciantes da área a fechar as portas por um ou até três dias? O que tem maior veracidade: o ato afirmativo da polícia, ao retirar de circulação o marginal, ou a solidariedade forçada que se espelha no feriado imposto pelos seus sucessores?

É impressionante a juventude dos grandes líderes da criminalidade urbana, todos pouco acima dos 20 anos; muitos, aliás, acham-se abaixo dessa faixa. Sabem que o seu reinado criminoso será curto, porque alguns serão presos e confinados em presídios de segurança máxima e a grande maioria será eliminada por quadrilhas rivais ou pela polícia. E a certeza dessa vida breve lhes aguça a ferocidade e gera, até mesmo, o desapego pela própria vida - o que, inevitavelmente, multiplicará a violência de cada um de seus dias na chefia dos bandos fortemente armados.

Quanto mais crescem os índices de desemprego, maior a explosão de violência nas cidades, porque os trabalhadores ociosos e suas famílias despejados dos bairros operários ou dos redutos da baixa classe média e só encontram pouso nas favelas - que, por definição, consistem em zonas residenciais marginais e que, por cruel fato social de nossos dias, transformaram-se em feudos de criminosos organizados, cuja estrutura se fortalece na razão direta da ausência, da omissão e das arbitrariedades praticadas pelos agentes do Estado contra seus habitantes.

Quanto mais aumentam os números do êxodo rural, maiores são também os contingentes marginalizados nas periferias dos núcleos urbanos. E é por aí que a violência se mostra mais cruel e freqüente nessas comunidades abandonadas pelo Poder Público e explosivamente populosas.

Os fatos que hoje trago ao debate do Senado Federal são incontestáveis e, desgraçadamente, estão praticamente assimilados, sem maiores sobressaltos, pela cidadania - é aquela banalização da violência, a cultura da agressividade que os sociólogos e até mesmo os altos funcionários ligados à segurança pública tanto abordam em suas entrevistas periódicas.

Compreender a realidade não pode, todavia, implicar em uma virtual inação quanto a seus males; ao contrário, o Estado deve ter consciência das próprias obrigações e atuar nas duas pontas do problema da violência: em primeiro lugar, ao assumir a responsabilidade de educar, dar condições satisfatórias de trabalho e perspectivas de futuro às comunidades hoje marginalizadas ou em vias de marginalização; mas, simultaneamente, é indispensável que faça cumprir as leis, reprima com a severidade cabível as ações anti- sociais, combata sem trégua os criminosos e use de todos os recursos legais para cortar a escalada do banditismo, hoje imperante em largos espaços urbanos no País.

O Estado tem que cumprir, assim, a elementar obrigação de dar segurança a todos os cidadãos, desde os mais humildes até os privilegiados pela fortuna - mas, em contrapartida, deve exigir o cumprimento das leis a todos esses mesmos cidadãos, não importando a cor de seus colarinhos; a mesma severidade deve ser usado no trato do capo traficante e na repressão aos escroques responsáveis pelos grandes golpes no mercado financeiro. O economista PhD que falseia o balanço de um banco é tão criminoso quanto o iletrado que lidera bandos fortemente armados e alimenta os vícios dos dependentes de drogas. Talvez, até mesmo, a violência de mãos enluvadas e delicadas seja maior e mais deletéria, porque parte do pressuposto da impunidade e é praticada com o tácito consentimento das autoridades que deveriam coibi-la.

Devemos ter, sempre, a preocupação com o lado prático e pragmático das ações anti-sociais. E poderemos, assim, assumir a consciência de que existe correlação entre o dinheiro desviado pelos estelionatários das altas finanças e a falta de recursos para a sociedade. É uma conta simples: quantas crianças poderiam ser alimentadas e educadas; quantas famílias receberiam moradia digna; quantos empregos seriam gerados; quantos trabalhadores retornariam a seus postos; quantas escolas seriam construídas; quantos hospitais seriam equipados, quantas pessoas deixariam de morrer - quantos benefícios seriam gerados para a Nação com os R$ 15,16,20 bilhões roubados ou fornecidos aos criminosos de colarinho branco?

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a certeza da impunidade é uma das maiores desgraças da sociedade brasileira, pois nela estão fundamentadas as ações criminosas tanto dos bandidos comuns quanto dos delinqüentes intelectuais. Afirmei, há pouco, que a perspectiva de vida dos traficantes das favelas é curta, porque as guerras permanentes entre suas quadrilhas representam a principal origem das grandes chacinas ali registradas. Já os falsários e os beneficiários de crimes financeiros estão longe de tais perigos, pela própria natureza do meio elegante em que vivem e pela possibilidade de contratar seus próprios e custosíssimos esquemas de segurança privada. E isso chega a ser tragicamente irônico: esses elementos substituem a polícia pelas milícias particulares, na busca de proteção contra a violência que eles mesmos ajudam a criar, quando furtam recursos que seriam destinados ao progresso social do povo.

A Justiça custa a receber, para julgamento, os criminosos. E mesmo quando as autoridades cumprem sua missão e prendem os delinqüentes, a impunidade continua sendo a regra geral, porque os procedimentos judiciais costumam ser falhos, morosos, suscetíveis a chicanas desmoralizantes do próprio poder forense. Até mesmo quando um julgamento se completa em termos de transcurso decorrido, existem as portas que se abrem nas penitenciárias, portas que vão desde falsificações processuais até o reles arrombamento de paredes, de pisos e de tetos.

Uma coisa seria a garantia dos direitos legais dos cidadãos acusados de crimes; outra, muito diferente, é a expectativa de impunidade, que aposta, entre outras coisas, na alardeada falta de memória e na indiferença do povo brasileiro - esse terrível sentido de que "não adianta nada, mesmo...", um clima que se agrava quando recordamos delitos formalmente assumidos, crimes como o covarde assassinato da jovem atriz Daniella Perez, cujos assassinos confessos vêm, há quatro anos, embaralhando as ações da Justiça, com depoimentos contraditórios e manobras ridículas que, em qualquer país respeitador das leis, mereceriam uma ação pronta e eficaz. Em qualquer país civilizado, aliás, eles já teriam sido julgados há muito tempo!

Deixei para o final, propositadamente, a análise dos fatores externos, entre os geradores da violência nesses dias conturbados que vive a sociedade brasileira. Já procurei analisar, com serenidade e firmeza, as causas germinadas na própria nacionalidade, aquelas decorrentes de nossas fraquezas e omissões.

Todos esses que abordei são potencializados pela explosão de cenas terríveis nas programações do rádio e da televisão, onde a violência é a tônica e uma finalidade em si mesma. Qualquer pedagogo, qualquer pessoa com um mínimo de bom-senso e de espírito público, qualquer cidadão consciente certamente concordará que a programação exposta pela TV, levada ao recesso dos lares sem qualquer tipo de controle oficial, essa programação se assenta na violência, apresenta a violência como único recurso para a vitória, enaltece a violência como o modo mais eficaz de fazer justiça, justifica a violência como um direito básico - não apenas de legítima defesa, mas de conquista de espaços e de vitórias no dia-a dia.

Seria muito simplismo dizer que a violência do cotidiano é fruto da violência oferecida pelas telas de TV - mas não podemos deixar de ver as mortes, as explosões, os atentados, as atitudes agressivas dos chamados "heróis". Seria insensatez não admitir que essa violência esbanjada pela televisão tem efetivas conseqüências no agravamento da séria crise social hoje sofrida pelo Brasil.

Toda a minha vida pública se fundamentou na defesa intransigente das liberdades públicas, que têm no direito de imprensa e de divulgação um dos principais pilares - mas não pode existir direito absoluto e descontrolado, mesmo sob pressupostos democráticos. A sociedade tem de proteger-se, prerrogativa que cabe ao Governo fazer respeitar.

As famosas "gangues" dos condomínios de luxo do Rio, São Paulo e de tantas outras grandes cidades brasileiras são bandos de jovens criados com fartura e recursos financeiros. Sua ação, entretanto, se reveste de constante violência, porque é nesse clima que são criados os participantes, assistindo a festivais de crimes, retaliações mortais, agressões gratuitas e glorificadas pelas mensagens psicologicamente definidas de que se revestem.

Não é preciso ir ao extremo inaceitável do restabelecimento da censura policialesca, típica do regime militar, que tantas agruras causou à Nação. Mas também não podemos continuar submetidos à presença descontrolada dos agentes da violência dentro de casa, onde nossos filhos ficam sozinhos por largos espaços de tempo, enquanto pai e mãe cumprem suas obrigações profissionais. Já se chamou a televisão de "babá eletrônica"; a psicologia infantil e do adolescente afirma, sem contestações, que são baixíssimos os níveis críticos em relação às mensagens transmitidas pela TV; tudo aquilo veiculado pela telinha é absorvido, sem maiores questionamentos, pelas crianças que a assistem - ou seja, estamos em face de algo que exige ação responsável e serena do Estado, uma ação em defesa do maior patrimônio nacional: as crianças, que são, em última instância, o futuro e a esperança de um Brasil melhor.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o problema da violência, que procurei analisar em seus aspectos mais importantes, já recebeu diagnóstico científico por parte de todos os profissionais que sobre ele se debruçaram. É hora de agir. É hora de tratar essa chaga com a sensibilidade e o respeito democrático que a sociedade exige - mas sem abrir mão da firmeza e da responsabilidade, também imprescindíveis.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/03/1996 - Página 3938