Discurso no Senado Federal

ANALISE SOBRE A PRIVATIZAÇÃO E REFORMA DO ESTADO PROPOSTA PELO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.

Autor
José Eduardo Dutra (PT - Partido dos Trabalhadores/SE)
Nome completo: José Eduardo de Barros Dutra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRIVATIZAÇÃO.:
  • ANALISE SOBRE A PRIVATIZAÇÃO E REFORMA DO ESTADO PROPOSTA PELO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
Aparteantes
Vilson Kleinübing.
Publicação
Publicação no DSF de 02/04/1996 - Página 5649
Assunto
Outros > PRIVATIZAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, REFORMULAÇÃO, ESTADO, PRIVATIZAÇÃO, EMPRESA ESTATAL, PROPOSIÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA.

O SR. JOSÉ EDUARDO DUTRA (PT-SE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, se existe um tema na política nacional de hoje que se apresenta para a sociedade revestido de estereótipos, de meias verdades e meias mentiras, esse tema é o da privatização e da reforma do Estado.

Por incrível que pareça, os responsáveis pela construção do Estado patrimonialista brasileiro apresentam-se nesse debate como os paladinos da modernidade, da reforma, da transparência e da democratização, enquanto os setores que não têm e não tiveram nenhuma responsabilidade na construção desse Estado, desse modelo de empresas estatais, apresentam-se - e aí por culpa nossa também - como os conservadores, como os defensores do status quo, como os defensores da continuidade desse tipo de Estado, que tem como principal característica o fato de ser um Estado extremamente privatizado e que tem servido, ao longo do tempo, para favorecer a acumulação capitalista privada.

Por ocasião do famigerado Governo Fernando Collor de Mello, apresentou-se um programa dito de modernização, onde o Estado chegou ao cúmulo de gastar dinheiro em propaganda para falar de si próprio e para justificar a venda, a toque de caixa, de diversas empresas brasileiras. Esse Governo teve o destino que merecia.

Ao assumir o atual Governo, em discurso e em programa, dizia-se que era necessário modernizar o Estado, era necessário privatizar, mas era destacado com muita ênfase que o modelo de privatização que seria implantado por este Governo seria profundamente diferente daquele implantado pelo antecessor, pelo Sr. Fernando Collor de Mello. Lembro-me que o Presidente Fernando Henrique Cardoso foi taxativo em duas questões: primeiro, que não se privatizaria apenas o filé das empresas, deixando-se o osso para a sociedade e o Tesouro continuarem roendo; segundo, que iria acabar com o absurdo da utilização das chamadas moedas podres para a compra de empresas estatais, utilização essa que, levando em consideração o valor de face dessas moedas podres, desses títulos, com certeza é muito superior ao valor real.

Por ocasião da discussão do projeto que estabelecia a cisão da Light, aqui nesta Casa, tivemos a ocasião de afirmar que o Governo Federal estava começando a trair um dos pontos do seu programa, no que diz respeito à privatização, porque aquele projeto nada mais era do que separar a parte boa da Light da sua parte podre; ou seja, separar-se a Light Rio da Light São Paulo, onde estão os famosos "micos" da Eletropaulo, que chegam a atingir em torno de R$570 milhões, para poder facilitar a privatização da parte boa da Light, que era a Light Rio. Naquela ocasião, dizíamos que essa cisão se chocava com o discurso inicial do Governo de que não se separaria o osso do filé no processo de privatização.

Estamos assistindo agora à traição a um outro princípio reafirmado não apenas pelo Governo, mas pelo próprio Ministro José Serra, quando esteve aqui no início do ano passado: que as privatizações seriam feitas em dinheiro, não mais se utilizando o instituto das moedas podres.

Contudo, o Governo Federal - que fala grosso com o Congresso Nacional, com os petroleiros, com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que tem "aquilo preto" (nas palavras abalizadas do Ministro Sérgio Motta) - submete-se à chantagem dos investidores, daqueles que sempre querem comprar parcela do Estado por preço abaixo do que realmente vale, e, assim, delibera que vai aceitar as famosas moedas podres, vai aceitar títulos públicos pelo valor de face para pagar até 30% no processo de privatização da Light.

O Governo ainda tem a cara de pau de afirmar que não está baixando o preço, que está apenas admitindo a utilização de moedas podres no processo de privatização. Ora, se até 30% do valor da Light poderão ser adquiridos com moedas podres e se existe um deságio de até 50% entre o valor de face desses títulos e seu valor real, tem-se que, em uma aritmética rápida, na prática, se abaixa o preço da Light em torno de R$400 milhões.

Ora, quando se estipulou o processo de privatização, o modelo de privatização da Light, formou-se uma comissão de técnicos, de especialistas para se estabelecer o preço a que essa empresa seria vendida, levando-se em consideração não apenas o seu patrimônio, a sua perspectiva de crescimento, mas o próprio mercado. De repente, todo esse estudo é jogado na lata do lixo apenas pela chantagem dos investidores.

A argumentação é que o preço da Light, US$2,7 bilhões é muito alto para o mercado.

O Sr. Vilson Kleinübing - Permita-me V. Exª um aparte.

O SR. JOSÉ EDUARDO DUTRA - Concedo o aparte a V. Exª com muito prazer.

O Sr. Vilson Kleinübing - Senador José Eduardo Dutra, eu gostaria de fazer algumas observações, como Vice-Líder do Governo, sobre esse processo de utilização de moeda podre. Moeda podre é o papel emitido pelo Governo, assim como o Governo emite também o real. A mesma instituição que emite a nossa moeda emite títulos, em função dos prazos, no mercado secundário. Alguém se desfaz do direito que tem sobre parte dessa moeda para transformá-lo em ativo de curto prazo. O dinheiro tem liquidez imediata; o papel não tem. Essa é uma prática comum no mundo inteiro. Mas, no momento em que se vai honrar o papel, tem-se que honrar pelo valor de face, senão, esse papel não será emitido nunca e ninguém o aceitará. Isso ocorre em qualquer lugar do mundo. Se o Comitê de Privatização está aceitando que se pague com moedas emitidas pelo Governo, com os seus papéis, é evidente que eles os compraram com deságio no mercado. Quem perdeu não foi o Governo, mas o proprietário desse título, que abriu mão de parte do que valia o valor de face. Se essa é uma concorrência, um leilão, o princípio está mantido: quem mais pagar em dinheiro e em moedas podres ficará com a propriedade daquele leilão, ou seja, vai ganhar o leilão. Não vejo nenhum inconveniente em que se proceda dessa forma, porque, na dívida pública, esses papéis estão com o valor de face. Na hora em que foi emitido, alguém o comprou pelo valor de face. Na hora em que foi indenizado, o foi pelo valor de face. Se ninguém quiser comprar, não é obrigado; ninguém compra. É um leilão. O leilão é o jogo mais aberto que existe; as pessoas podem vender qualquer bem. É transparente e aberto. A moeda podre vale para todos os participantes do leilão; ganha quem der mais em moedas oficiais corretas, que não são podres, ou nos títulos do Governo - que são podres porque nós autorizamos aqui nesta Casa. Afinal, quem autoriza a emissão de títulos e a rolagem dos mesmos é o Senado da República; e quem os torna podres são os Senadores da República, porque nós nunca exigimos liquidez para eles, ficamos constantemente permitindo que rolem, por isso eles perdem o valor. Mas são títulos de dívida que a União terá que honrar no dia em que vencerem. Esse é um aspecto. A outra observação que eu gostaria de fazer é sobre a venda de bens públicos. Ora, por mais que me esforce, eu não consigo mais fazer essa conta. Sou funcionário de uma companhia de energia elétrica, na qual trabalhei 18 anos. Nunca a vi pagar dividendo para o povo, dar lucro para pagar para o povo. Vi, no entanto, essa empresa gastar duas, três vezes o valor que o funcionário pagava ao seu fundo de pensões, aumentando tarifas, para fazer isso internamente. O Governo brasileiro tem de começar a fazer, cada vez melhor, postos de saúde, e não de gasolina. Há um passivo, cuja rolagem custa uma fortuna todos os meses; o Brasil deve milhões e milhões, pelos quais paga 20% a 30% ao ano, mas tem ativos da dívida da Light e de outras empresas que não rendem absolutamente nada para o Governo e para a população. Vejo, nas suas observações, fundamentalmente o cuidado que esta Casa deve ter para que o processo de privatização seja transparente e não haja corrupção, para que a venda seja bem feita e ninguém se beneficie com informações internas. Com relação a isso, o PT e V. Exª estão dando um exemplo de controle do processo de privatização. Agora, se a moeda é podre ou não, parte disso será pago com moedas e títulos públicos emitidos pelo Governo, evidentemente. Deixemo-lo privatizar para cuidar daquilo que é essencial. O Governo não foi feito para cuidar de energia elétrica ou de posto de gasolina, mas de saúde e educação, e, pelo amor de Deus, deve diminuir essa dívida pública!

O SR. JOSÉ EDUARDO DUTRA - Senador Vilson Kleinübing, V. Exª tem sido absolutamente coerente na defesa dessa tese aqui no Senado, mas a sua intervenção requer alguns comentários.

Primeiramente, é verdade que os títulos da dívida pública, assim como o real, são papéis emitidos pelo Governo. Agora, concretamente, não se compra com uma nota de R$10,00 outra de RS$50,00. A prova de que existe diferença é que o próprio Governo, inicialmente, dizia que venderia apenas em dinheiro. Se ela não existe, por que o próprio Ministro José Serra disse da tribuna desta Casa que era compromisso do Governo vender apenas em moeda corrente? Então, existe diferença.

Em segundo lugar, um discurso infelizmente tem sido adotado, qual seja, o de que o Governo tem de afastar-se da atividade econômica, não deve mexer com energia, petróleo, minério, posto de gasolina, para priorizar a saúde, a educação, o saneamento básico, ou seja, aquelas áreas típicas de Estado.

Ora, desde que começou o programa de privatização no Brasil, foram vendidas mais de 30 estatais, no valor aproximado de 11 bilhões. Durante esse período, a ação do Estado melhorou nessas atividades que lhe são típicas? Para onde foi o dinheiro?

É verdade, sim, que temos sido profundamente irresponsáveis. Embora tenhamos, muitas vezes, votado contra, assumimos também a culpa pela irresponsabilidade de termos autorizado a rolagem de títulos. V. Exª é testemunha de que chegamos a rolar até ARO.

Concretamente, rola-se uma vez, uma segunda, e assim por diante. Porque se rolou para a Paraíba, deve-se rolar para Minas Gerais e para Pernambuco; chega-se a uma bola de neve, que não sabemos onde vai parar, disso temos certeza.

Mas, voltando à questão da Light e, um outro ponto que iria tocar quando V. Exª pediu o aparte, a chantagem a que o Governo se submeteu não foi apenas no que diz respeito à mudança do valor. Agora, o Governo admite que, no prazo de oito anos, não se fará a revisão das tarifas. Possíveis ganhos de produtividade ou redução de custos que a nova Light privada poderá implementar não serão repassados para o consumidor. Muitas vezes, o descuido da privatização também é o de que as estatais são ineficientes, caras e, se forem privatizadas, as tarifas irão ser reduzidas, o consumidor pagará menos, etc. No entanto, o Governo acaba de ceder também a essa chantagem de não fazer revisão tarifária no caso da Light num prazo de oito anos. Fazendo um paralelo entre a argumentação apresentada pelo Governo no sentido de mudar as regras da privatização da Light, alegando o seu alto preço. Está aí a privatização da Vale do Rio Doce que envolverá valores, no mínimo, três vezes maior. O Governo está pagando a dois consórcios, sendo que em um deles faz parte a KPMG e do outro faz parte a Ernest & Young em torno de R$5 milhões - R$2.6 milhões para um e R$2.4 para outro - para fazer o processo de modelagem da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, incluindo preço, forma de privatização, modelo de privatização, participação de empregados, etc. Será que, depois de efetuado esse trabalho, após esses consórcios receberem para fazerem todo essa tarefa será que também, a partir das pressões do mercado, ou dos japoneses, ou dos australianos, ou seja de quem for, para, no processo de compra da Companhia Vale do Rio Doce, o Governo vai novamente ceder a essa chantagem, vai falar fino com esses investidores e recuar em tudo aquilo que vier a ser determinado pelas empresas que estão fazendo esse consórcio de privatização? Isso retoma um tema que esteve um pouco afastado do plenário do Senado, mas acreditamos que voltará à discussão no mês de abril, que é o projeto de nossa autoria que condiciona a privatização da Companhia Vale do Rio Doce à autorização legislativa.

Infelizmente estamos vendo o tratamento que tem sido dado pela empresa em relação a isso, como sendo mais uma queda de braço entre o Presidente do Senado e o Presidente da República, ou entre a oposição e a situação. Por diversas vezes, fizemos questão de registrar aqui que esse projeto não encaramos como projeto da oposição, primeiro porque evidencia uma preocupação com a privatização da maior empresa estatal brasileira, que tem atuação em nove Estados, e esses 27 Senadores desses 9 Estados conhecem muito bem o papel que tem a Companhia Vale do Rio Doce na forma dos seus Estados, como também para o País. Em segundo lugar, porque é um projeto que muito mais do que uma queda de braço entre a Presidência do Senado e o Governo Federal, ou a Oposição e o Governo é um projeto que propõe a simples retomada de um prerrogativa que o Congresso Nacional tinha antes do Governo Fernando Collor de Mello Porque foi um Congresso acuado, acovardado, que aprovou a Lei nº 8.031, que dá plenos poderes ao Poder Executivo para privatizar o que quiser, da forma que quiser. Deve-se registrar, inclusive, que mesmo aquele Congresso acuado e acovardado, ao receber a Medida Provisória nº 151 - se não me falha a memória - que estabelecia o Programa Nacional de Desestatização, mesmo aquele Congresso aprovou um projeto de lei de conversão em que, em determinado parágrafo, dizia que o Congresso Nacional poderia, por meio de projeto de decreto legislativo, retirar qualquer empresa do Programa Nacional de Desestatização se entendesse que essa empresa fosse estratégica. No entanto, esse artigo foi vetado pelo ex-Presidente Fernando Collor de Mello, e o Congresso não derrubou o veto. Portanto, é um projeto que se refere a uma prerrogativa do Congresso Nacional.

Para concluir, Sr. Presidente, Srs. Senadores, procuramos mostrar que, apesar do discurso inicial feito pelo Presidente da República no que diz respeito às privatizações, ao modelo de privatizações, de que seria diferente da forma que estava sendo encaminhada pelo ex-Presidente Fernando Collor de Mello, infelizmente, as semelhanças estão ficando cada vez maiores. Espero, lembrando mais uma vez as palavras do Ministro Sérgio Motta e do ex-Presidente Collor, que as diferenças entre este Governo e o anterior não se resumam à cor daquilo.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/04/1996 - Página 5649