Discurso no Senado Federal

REGISTRO DA CONCLUSÃO DO RELATORIO DOS PROCURADORES DO TRABALHO, DR. VICTOR HUGO LAITANO E DR. JOÃO BATISTA LUZARDO SOARES FILHO, SOBRE A EXISTENCIA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO ESTADO DO ACRE.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • REGISTRO DA CONCLUSÃO DO RELATORIO DOS PROCURADORES DO TRABALHO, DR. VICTOR HUGO LAITANO E DR. JOÃO BATISTA LUZARDO SOARES FILHO, SOBRE A EXISTENCIA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO ESTADO DO ACRE.
Publicação
Publicação no DSF de 03/04/1996 - Página 5738
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • REGISTRO, RELATORIO, PROCURADOR DO TRABALHO, INVESTIGAÇÃO, DENUNCIA, TRABALHO, REGIME, ESCRAVATURA, ESTADO DO ACRE (AC), CONCLUSÃO, EXISTENCIA.
  • ANALISE, PROBLEMA, DUPLICIDADE, TITULO, POSSE, TERRAS, ESTADO DO ACRE (AC).
  • CRITICA, MODELO, REFORMA AGRARIA, AUSENCIA, INFRAESTRUTURA, ASSISTENCIA, ASSENTAMENTO RURAL.
  • APREENSÃO, PREJUIZO, MEIO AMBIENTE, EXTINÇÃO, RESERVA, MADEIRA DE LEI, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, EFEITO, PROSTITUIÇÃO, CRIANÇA, ADOLESCENCIA.

A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs Senadores, quero aqui fazer um registro do relatório apresentado pelo Dr. Victor Hugo Laitano e João Batista Luzardo Soares Filho, ambos Procuradores do Trabalho, designados para investigação no Estado do Acre, sobre a questão de trabalho escravo nos seringais e dentro das florestas, na exploração irregular de madeira.

Por uma determinação do Ministério Público do Trabalho, essas autoridades se dirigiram até o Estado do Acre e produziram uma peça documental em que se dá conta da existência de trabalho similar à escravidão nos seringais do Estado do Acre.

Numa matéria produzida pelo jornalista Altino Machado, da qual gostaria de ler alguns trechos, fica bem claras as condições e os motivos pelos quais essas pessoas, em pleno Século XX, ainda se submetem a esse tipo de exploração, a essa forma desumana de expropriação da sua força de trabalho. Diz a matéria do jornalista Altino Machado:

      "A existência de trabalho escravo de seringueiros, no Vale do Juruá, no Acre, está sendo objeto de uma ação civil pública, solicitada pelo Ministério Público do Trabalho.

Segundo denúncia formulada pelo sertanista Luis Antônio de Macedo, a empresa Marmud Cameli - notem bem V. Exªs, esse nome não nos é estranho: Marmud Cameli é a empresa do Governador Orleir Messias Cameli, do Estado do Acre -, da qual é sócio o Governador do Acre, Orleir Cameli, é acusada de praticar crimes e danos ambientais durante a extração de madeira na região, inclusive em área indígena, obrigando índios e seringueiros a trabalharem mediante endividamento fraudulento e violência física, como meio de supervisão e de forçar essas pessoas a prestarem serviços sem nenhum tipo de remuneração.

      "A Procuradoria-Geral do Trabalho pediu, ainda, a abertura de um inquérito civil público, no Município de Sena Madureira, no Vale do Purus, para identificar as madeireiras e as condições de trabalho dos extrativistas.

      O cenário desses problemas é a luta pela posse da terra. Os procuradores colheram denúncias de que 56% dos 15 milhões de hectares de terras acreanas são tituladas, 38% desse total teriam títulos superpostos, sem ações discriminatórias, podendo ser anulados e as terras arrecadadas pelo INCRA."

Esse é um dado muito preocupante, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores. A titulação das terras no Acre tem superposição onde, muitas vezes, há um confronto entre propriedade particular com propriedade particular, ou seja, dois supostos proprietários da mesma área, e, muitas vezes, confronto com a própria União, o Estado, além daquelas que são tuteladas pela União, que é o caso das reservas extrativistas e das reservas indígenas.

Trata-se, portanto, de um problema sério. Segundo levantamento preliminar, feito pelo Incra no Estado do Acre, 40% das terras desapropriadas pelo Incra já retornaram às mãos de grandes proprietários, o que faz com que a União tenha um prejuízo muito grande. Daqui a alguns dias, novamente, teremos uma grande quantidade de trabalhadores sem terra, precisando que a União faça novos investimentos de desapropriação.

Cabe um parêntese: sempre se joga a culpa nos trabalhadores por abandonarem suas terras e suas propriedades.

Quero aqui fazer uma ressalva no sentido de que os trabalhadores da Amazônia, que fazem parte desses projetos de assentamento, sem infra-estrutura de estrada, sem atendimento de saúde, sem escolas para os seus filhos, bombardeados pela malária, como muito bem colocou aqui, ontem, em denúncias, o Senador Nabor Júnior, além das hepatites "A", "B" e "C", são obrigados a saírem de suas propriedades, vendendo-as por pouco, quase nada, para um grande fazendeiro, indo para a periferia da cidade. Lá, tornam-se mão-de-obra desqualificada, subempregados e presa fácil para esse tipo de trabalho escravo que está sendo denunciado no relatório dos Procuradores do Trabalho. Isso porque há prática de determinadas pessoas inescrupulosas, que arregimentam trabalhadores - são os chamados "gatos" -, os "gatos" arregimentam pessoas e levam-nas para as grandes fazendas. Nessas fazendas, que são isoladas, muitas vezes só se chega de avião, utilizando pistas particulares, ou depois de vários dias de viagem de barco. Essas pessoas não têm como retornar para casa e se submetem a todo tipo de exigência desses "gatos" e dos grandes proprietários de fazendas.

Faço este registro porque essa é uma situação grave e existe ação contundente de parte do Ministério Público e das autoridades competentes.

Sr. Presidente, há títulos de propriedades dos quais as autoridades federais ou estaduais não questionam a origem nem a veracidade. Uma investigação confirmaria facilmente a existência de mais títulos de propriedades do que terras.

O Procurador da República no Acre, Luís Francisco Fernandes de Souza, disse que o trabalho rural, no Acre, sofre tanta exploração quanto a natureza. Realmente, isso é verdade. Trabalhador e natureza se equivalem no que se refere à exploração a que são submetidos por pessoas e empresas inescrupulosas.

O Ministério Público Federal está empenhado em possibilitar que procuradores regionais do trabalho atuem no Acre de forma permanente para que possam mover ações civis públicas. Luís Francisco Fernandes de Souza atribui o elevado índice de prostituição infanto-juvenil e o tráfico de adolescentes para casas de prostituição ao êxodo rural praticado por essas atividades, digamos assim, excludentes da sociedade, que não permitem forma de sobrevivência digna para a maioria das jovens. "O interior do Acre está sendo destruído pelos pecuaristas, madeireiros e seringalistas com a derrubada de grandes áreas de terra, utilizando-se para isso de motosserras, tratores e Tordon, e o agente-laranja, que foi, inclusive, usado na guerra do Vietnã", afirma o procurador.

Os danos ambientais e o trabalho escravo têm sido estudados por vários pesquisadores. O próprio Governador Orleir Cameli, em 1990, foi indiciado, a pedido do Procurador José Roberto Santoro. Em que pese aos estudos e ao inquérito, na prática, os seringueiros continuam marginalizados, exceto nas reservas extrativistas e nas áreas indígenas, onde o regime de trabalho é cooperativista. O Acre concentra uma das últimas reservas de mogno do Planeta, e quem surge no caminho das madeireiras e da pecuária extensiva é ameaçado.

O vigário de Sena Madureira, Padre Paolino Baldassari, que teve a oportunidade de ter uma audiência com o Presidente Fernando Henrique Cardoso para reivindicar ações enérgicas no sentido de coibir a devastação da floresta e seu conseqüente empobrecimento mediante a retirada ilegal de mogno, teve pouco sucesso ou muito pouca ação por parte das autoridades constituídas no que se refere a esse pleito.

Não estávamos reivindicando apenas uma ação policial. Estávamos reivindicando também alternativas de vida para as populações tradicionais, porque se elas tiverem meios de sobrevivência não serão obrigadas a vender sua madeira por um preço insignificante.

Padre Paulino - é bom que se ressalte - é um dos ameaçados de morte por ter denunciado o desmatamento e o regime de trabalho escravo dos acreanos na exploração ilegal do mogno.

Nos últimos meses, a Polícia Federal apreendeu mais de 20 mil metros cúbicos de mogno, oriundos dos seringais do Acre - é bom que se ressalte que a PF agiu com pouca estrutura -, na realidade, uma quantia insignificante do volume de madeira exportado ilegalmente. "É uma prova das denúncias do Padre Paolino Baldassari", afirma o Superintendente da PF. As condições são precárias, as estruturas que possibilitariam evitar esse tipo de abuso não contam com o apoio necessário para agir da forma adequada, como exige a complexa rede de madeireiros ilegais e inescrupulosos que atuam nas florestas da Amazônia.

As condições de vida dos seringueiros e dos extratores de madeira foram presenciadas em dezembro pelos Procuradores do Trabalho Victor Hugo Laitano e João Batista Soares Filho, designados por Geraldo Brindeiro e pelo Procurador-Geral do Trabalho Jefferson Luiz Pereira Coelho, para apurar as denúncias. Mais de quatro mil trabalhadores são recrutados por "gatos" todos os anos na retirada ilegal de madeira e, a cada 500 hectares, um deles morre esmagado por uma árvore.

Isso é de se lamentar, Senador Suplicy, que neste momento preside nossos trabalhos. Acabamos de ouvir denúncia drástica sobre o que está acontecendo com os pacientes dependentes da hemodiálise, em Caruaru. No caso do Acre, onde as pessoas têm saúde, têm força para trabalhar, em função das poucas perspectivas de sobrevivência são obrigadas a ir para os grandes abates, morrendo esmagados a cada 500 hectares de floresta derrrubada.

A situação mais crítica é dos seringais Valparaízo e Russas, em Cruzeiro do Sul, onde o arrendatário Manoel Batista Lopes, pratica atrocidades contra os trabalhadores. Esse senhor, inclusive, tem a ousadia de ferir a Constituição Federal no que se refere ao direito de ir e vir do cidadão. Nas terras dele, não é possível aos trabalhadores navegarem os rios e os igarapés com seus barcos para se abastecerem de mercadorias. Ele proíbe o acesso das pessoas aos rios que passam por sua propriedade.

Pelo que entendo, os igarapés, os rios são bens públicos que deveriam ser utilizados por todas as pessoas mediante o interesse da sociedade, da coletividade, pois se trata de um bem público, um meio de acesso para assegurar aos cidadãos que moram naquelas matas o direito de ir e vir, de ter acesso à saúde e ao abastecimento das mercadorias que eles não podem produzir.

Como se não bastasse, o Sr. Manoel Batista Lopes proíbe os seringueiros de plantarem pequenas roças a fim de que se tornem dependentes do barracão de fornecimento de suas mercadorias - que ele vende a preços altíssimos - e da compra de seus produtos por baixos preços - no caso, a borracha. Além do mais, proíbe os trabalhadores de criarem associações, sindicatos ou qualquer forma de organização. A Constituição Federal assegura o direito à liberdade de reunião, de associação para todos os cidadãos.

É lamentável que, no Brasil, em pleno século XX, um coronel de barranco pratique esse tipo de atrocidade, e não se disponham de meios para mostrar que os seringueiros também são cidadãos e seres humanos.

Fiz questão de fazer esta denúncia, Sr. Presidente, porque considero dignas de registro as peças produzidas pelos Procuradores do Trabalho Victor Hugo Laitano e João Batista Soares Filho, que adentraram nos seringais do Acre, a pedido do Ministério Público do Trabalho, para apurar as denúncias de trabalho escravo.

Esta Senadora teve conhecimento de que estaria sendo processada pelo Governador Orleir Cameli por ter caluniado, difamado seu nome quando disse que praticava trabalho escravo. Tenho agora, em minhas mãos, o documento que dá conta de que realmente, no Acre, inclusive nas terras do Governador, existe a prática ilegal do trabalho escravo.

Estou encaminhando documento ao Exmº Sr. Dr. Jefferson Luiz Pereira Coelho, Procurador-Geral do Trabalho, para que tome as providências cabíveis e sugeridas pelos Procuradores do Trabalho ao final do relatório, para que seja feita justiça em uma terra que, aparentemente, ainda é de ninguém.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/04/1996 - Página 5738