Discurso no Senado Federal

RAZÕES PARA A APRESENTAÇÃO DE PROPOSTA DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO, QUE DA NOVA REDAÇÃO AOS ARTIGOS 22 E 24.

Autor
Gilvam Borges (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: Gilvam Pinheiro Borges
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA CONSTITUCIONAL.:
  • RAZÕES PARA A APRESENTAÇÃO DE PROPOSTA DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO, QUE DA NOVA REDAÇÃO AOS ARTIGOS 22 E 24.
Publicação
Publicação no DSF de 11/05/1996 - Página 7905
Assunto
Outros > REFORMA CONSTITUCIONAL.
Indexação
  • JUSTIFICAÇÃO, EMENDA CONSTITUCIONAL, AUTORIA, ORADOR, ESTABELECIMENTO, PRERROGATIVA, UNIÃO FEDERAL, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL (DF), LEGISLAÇÃO, MATERIA, DIREITO PENAL, LEGISLAÇÃO PROCESSUAL.
  • DEFESA, AUTONOMIA, ESTADOS, FUNÇÃO LEGISLATIVA, OBJETIVO, RESPEITO, DIVERSIDADE, PAIS.

O SR. GILVAM BORGES (PMDB-AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. taquígrafos, servidores da Casa em geral, Srs. jornalistas, hoje, sexta-feira, venho à tribuna para apresentar uma proposta de emenda à Constituição e comentá-la um pouco. É o seguinte o seu texto:

      "Dá nova redação aos arts. nºs 22 e 24 da Constituição Federal, atribuindo competência legislativa concorrente à União, Estados e Distrito Federal em matéria de Direito Penal e Processual Penal.

      As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam as seguintes emendas ao texto constitucional:

      Art. único - Os arts. 22, I, e 24, I, da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:

      Art. 22 - Compete privativamente à União legislar sobre:

      I - direito civil, processual civil, comercial, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

      Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

      I - direito penal, processual penal, direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

      JUSTIFICAÇÃO

      Sr. Presidente, uma das grandes contradições brasileiras no campo político-administrativo reside no modelo de federalismo, vigente entre nós desde a primeira Constituição Republicana de 1891.

      De tradição autoritária e vertical, que remonta à sua longa experiência colonial e ao Império, o Estado brasileiro, sob a inspiração do constitucionalismo americano, adotou a forma federal sem maior convicção, conservando, na prática, muito vivas suas velhas feições de Estado unitário.

      Na primeira República, ainda presentes os ventos liberais soprados do hemisfério norte e para acautelar o regime nascente das ameaças à unidade nacional representada pelos movimentos regionais separatistas, tão comuns no Império, a idéia federativa chegou a gozar, em nosso meio, de algum prestígio.

      Foi breve, porém, a carreira desse federalismo à moda americana, ou seja, dando competência legislativa exclusiva à União sobre um elenco discriminado de matérias, em relação de tipo fechado e enumerativo, e reservando aos Estados todos os poderes remanescentes não expressamente cometidos ao ente federal.

      Fatores diversos, alguns de natureza geral, como a tendência universal à maior intervenção do Estado na economia e outros, de ordem local, como acentuação das desigualdades regionais ensejadas por um sistema rígido e desequilibrado de repartição das receitas tributárias, determinaram, porém, o progressivo agigantamento da União em face das unidades federadas periféricas.

      Assim, a Constituição de 1934 representou o início da decadência do federalismo republicano com a assunção pelo ente central de inúmeras competências antes atribuídas pelos Estados-membros.

      Desde então, assistimos em nosso País a um lento mas contínuo esvaziamento de poder local em proveito da esfera federal, reduzindo-se os Estados a parceiros menores do pacto federativo, condenados à tutela em sua quase minoridade política.

      Com isso, mutila-se a eficácia democrática do ideal federativo, baseado na idéia de delegação e descentralização do poder, no sentido de realizar o primado da periferia do sistema sobre o seu centro, isto, do real (Estado-membro) sobre a ficção (União).

      A utopia democrática é aproximar-se do modelo ideal de "self government", onde todos os cidadãos sejam plenamente representados, e a forma federativa pretende justamente servir a este objetivo, através da descentralização do poder político como fator de eficiência de governo e de delimitação do próprio poder.

      Quanto mais próximo do cidadão o poder, maior legitimidade e eficiência terá o seu exercício.

      Este também o ensinamento da Professora Fernanda Dias Menezes de Almeida, verbis:

      "A vantagem desta descentralização das tarefas públicas é que em geral as decisões são tomadas ali onde seus efeitos podem ser melhor apreciados. A "proximidade do cidadão" da administração pública leva a uma justiça objetiva maior em cada caso e uma consideração mais intensa das caractéristicas regionais e locais".

      É essencial que o poder, especiamente o poder para legislar, tenha, tanto quanto possível, aderência à fonte primeira de sua emanação, isto é, a sociedade: ubi societas ibi ius.

      Nessa linha de raciocínio, não vemos qualquer razão para manter na órbita federal, de modo exclusivo, a competência para legislar sobre matérias em que sobrelevam os aspectos sociais e culturais peculiares à cada região do imenso território nacional.

      Um exemplo de matérias que deveriam, de há muito, estar sendo legisladas no âmbito estadual são, ao meu ver, o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Há regiões brasileiras onde até hoje têm atualidade conceitos contidos no Código Penal, tais como "mulher honesta", "temor reverencial" e a criminalização de práticas como o adultério, coisas que, em centros mais urbanizados do País, soam como medievalismos incompreensíveis.

      Por outro lado, o rigor da cominação e execução das penas de alguns delitos não podem ter o mesmo tratamento num estado sitiado pela violência e pelo crime organizado como o Rio de Janeiro, e num estado de menores concentrações urbanas e de maiores conflitos rurais, pela redistribuição da terra, por exemplo.

      Além disso, temas polêmicos, mas de conteúdo progressista inegável como a descriminalização do aborto, de algumas drogas e da eutanásia, podem ser avaliados de modo bastante diferente pela população de cada Estado, conforme o grau de informação e hábitos culturais neles prevalentes.

      A dificuldade de atualização de nossos diplomas penal e processual penal, de que tanto se reclama no Brasil, deve ser debitada principalmente ao imobilismo decorrente da necessidade de um grande acordo nacional para efetivar alterações em assuntos que repercutem de modo diferenciado por região, não se justificando a espera eterna de um consenso impossível para aprovar as mudanças necessárias.

      De resto, são inúmeros os exemplos de países de regime federativo que têm seu direito criminal sob a responsabilidade legislativa dos Estados-membros, incluindo-se entre eles os Estados Unidos da América, a Alemanha Ocidental e a União Soviética sob a Constituição de 1977.

      De todo modo, tivemos o cuidado na presente Emenda, de garantir à União o poder de editar normas gerais sobre a matéria, sempre que o interesse nacional o recomende no exercício da competência concorrente.

      Este o sentido desta proposição: contribuir para o reforço do federalismo brasileiro, em que o Estado-membro não seja apenas uma sombra do poder central e, além disso, ajudar na libertação dos cidadãos da camisa de força de padrões normativos artificialmente homogêneos na disciplina de situações regionais de fato o mais heterogêneas possível, no âmbito da questão criminal."

Sr. Presidente, há três dias venho refletindo sobre essas situações e, dentro da praticidade, buscando alternativas e soluções. Acredito até que, pelo acompanhamento que fazemos através dos veículos de comunicação, da imprensa particularmente, observamos melhor a dimensão fantástica do nosso País. Temos praticamente vários países dentro do próprio Brasil, apesar de falarmos a mesma língua - o que nos une. Formamos um país fantástico.

Voltei sempre os meus olhos para o Rio de Janeiro, com esses sucessivos massacres, esse confronto das instituições, esse equilíbrio que se busca e, de repente, vemo-nos impotente.

Ontem mesmo, eu observava os aumentos sucessivos, por exemplo, nos planos de saúde - uma desorganização generalizada; e as autoridades sem condições de obter resultados positivos. O que observamos é uma enorme vacância, não sei se pela nossa dimensão ou se pela nossa própria cultura.

Estou apresentando essa proposta de emenda à Constituição com um único objetivo. Vou dar um exemplo, Sr. Presidente. Este País precisa discutir com mais profundidade esta questão. Precisamos dar mais poder para o Poder, principalmente localizado nos Estados, para que tenham condições de administrar isso.

O Rio de Janeiro sempre aparece como um Estado problemático, o centro nevrálgico do tráfico de drogas, das gangues, dos assaltos a bancos, do crime organizado. Será que a sociedade desse Estado, através de suas autoridades: seus Governadores, seus Deputados, que fiscalizam o Governador e elaboram as leis do Estado, os seus municípios todos, através dos seus Vereadores e Prefeitos, não poderia discutir um pacto e ter condições de legislar sobre questões penais? Darei um exemplo. O que o homem mais teme? A morte. Eu, particularmente sou contra a pena de morte, porque vejo de um outro prisma. O bandido, o delinqüente, que é diferente do marginalizado, pratica toda uma sorte de crimes hediondos: estupro, homicídio, chantagem, e, de repente, o Estado lhe premia com a sua morte no paredão, em cadeira elétrica, ou com uma injeção letal. Entendo isso como um prêmio. O que esse homem vai sofrer? Por quanto tempo: alguns segundos? Meia hora? Sr. Presidente, nada pior para um homem do que o cerceamento da sua liberdade, pois é quando ele começa a conviver com a sua consciência. Isso é que o Estado tem que fazer. Entendo dessa forma.

Mas, como dizia, se a sociedade do Rio de Janeiro, o Estado do Rio de Janeiro ou qualquer outro, pretende discutir como legislar - e penso que uma das alternativas, realmente, é implantar a pena de morte -, por que ele não tem esse direito? Não podemos lhe dar esse direito? Aqui é muito difícil.

Sou favorável a uma matéria de direito das minorias, que é um direito nosso. Pois, hoje, estamos bem, Sr. Presidente, com saúde, lúcidos, mas não sabemos sobre o amanhã. Sou a favor da eutanásia. Acho uma hipocrisia, uma maldade terrível do Estado, através de suas instituições mais conservadoras, dizer que o cidadão não tem o direito de optar, principalmente aquele que está lúcido. Um aidético, um tetraplégico, que perdeu o referencial de prazer, de vida, e faz a sua opção: o Estado não pode impor essa dor profunda a esse cidadão, através de suas instituições conservadoras, principalmente a Igreja.

Quando estava na Câmara, apresentei um projeto, foi um Deus nos acuda pelos padrões de valores que fazem o juízo de cada cidadão. E esses cidadãos são a representação das instituições às quais estão ligados, ou seja, os valores que essas instituições impõem.

Sr. Presidente, seria um grande passo se o Congresso Nacional começasse a discutir essa emenda que dá autonomia aos Estados para legislar sobre certas matérias. Se os Estados tivessem autonomia para legislar sobre determinadas questões, tenho certeza de que isso seria um grande avanço. Os Estados brasileiros com condições de legislar sobre matérias que hoje são da competência exclusiva da União.

Dou um exemplo: o Deputado Fernando Gabeira, recentemente, apresentou um projeto para a descriminalização da maconha. A sociedade, às vezes, recusa-se a discutir assuntos polêmicos. Hoje o crime organizado gira sempre em torno da droga. Um grande número de crimes é praticado por cidadãos viciados, que não têm condições de adquirir a droga. O Deputado Fernando Gabeira apresentou esse projeto pensando no direito de opção do cidadão. Mas há um outro aspecto muito importante que precisa ser avaliado: temos que voltar os nossos olhos para a história. Há quantos mil anos a sociedade se debate com o problema das drogas? A repressão deu jeito? Os americanos declararam guerra contra as drogas. Entraram nos países da América Latina, principalmente nos países produtores. Milhares de dólares foram investidos na repressão. Quais são os resultados concretos? Pelos últimos estudos, o preço da droga subiu e as quadrilhas se organizaram ainda mais.

O Rio de Janeiro ou qualquer outro Estado deve legislar sobre essa matéria conforme a sua realidade, sua cultura e seu entendimento.

Se um Estado como o meu, um pequeno Estado no extremo Norte, resolve legislar sobre uma matéria que também é tabu, como a interrupção da gravidez, ou o Rio Grande do Sul, lá no extremo Sul, isso traria um equilíbrio muito grande para o País. São problemas sérios, que a sociedade esconde, coloca embaixo do tapete. Por exemplo, hoje, os abortos clandestinos matam mais do que a AIDS, constituindo-se na quarta causa de morte da mulher.

Nós do Congresso temos que discutir essas questões e garantir o direito de escolha ao cidadão. O cidadão é que deve decidir, de acordo com sua consciência.

Eu gostaria de ter a oportunidade de discutir algumas matérias importantes com a sociedade do meu Estado, com as lideranças locais. Aqui no Congresso Nacional, em várias situações, sempre encontramos dificuldades, que considero naturais dentro do processo democrático.

Nos pronunciamentos de quase todas as autoridades federais a respeito dos mais variados temas e assuntos, podemos constatar a falta de alternativas de solução para muitos de nossas problemas. Pela dimensão do nosso País, precisamos dar condições para que os Estados legislem sobre matéria penal, tributária.

Nos Estados Unidos e em outros países mais avançados, os Estados têm autonomia para legislar, por exemplo, sobre pena de morte.

Queremos chamar a atenção do País para esse tipo de discussão.

Por hoje, nesta sexta-feira, em que o Plenário, atento, escuta este modesto discurso, quero agradecer a atenção de todos, e também do Presidente, que esteve também muito atento e preocupado com o andamento dos trabalhos.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/05/1996 - Página 7905