Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA 13 DE MAIO, ANIVERSARIO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA 13 DE MAIO, ANIVERSARIO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Marina Silva, Pedro Simon, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 15/05/1996 - Página 8027
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, BRASIL.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, ATUALIDADE, NEGRO, BRASIL, HISTORIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, DISCRIMINAÇÃO, NATUREZA SOCIAL, PAIS.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não poderia deixar de comentar, nesta oportunidade, sobre o dia 13 de Maio.

O ano de 1995 foi importante para nós afro-brasileiros, porque consagrou-se como o Ano Zumbi dos Palmares, tendo em vista o tricentenário de sua morte.

Comemorações foram realizadas de norte a sul do Brasil, culminando com a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, em 20 de novembro, que levou a Brasília milhares de pessoas num ato de protesto contra as condições em que vive o povo negro do nosso País, em função da exclusão social determinada pela discriminação social e racial.

Voltamos a celebrar mais uma data, o 13 de Maio, aniversário da Abolição da Escravatura no Brasil, fazendo uma reflexão acerca das condições dessa população, à luz deste que é considerado o Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo.

Em 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei nº 3.353, Lei Áurea, que dizia:

      "Art. 1º - "É declarada extincta, desde a data d'esta lei, a escravidão no Brasil.

Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário."

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Quando o fez, não foi por nenhum sentimento de humanidade, mas sim porque o trabalho escravo, a essa altura, tornara-se antilucrativo, já que não era capaz de suprir as necessidades econômicas do País.

O abolicionista Joaquim Nabuco afirmou:

      "...a escravidão, assim como arruína economicamente o País, impossibilitando o seu progresso material, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia o capital do seu curso normal..."

Esta afirmação revela, de forma inequívoca, porque a abolição da escravatura não foi uma dádiva da Princesa Isabel. O ato da princesa só oficializou o fim de uma instituição - a escravidão - porque, na verdade, já não interessava mais para eles a mão-de-obra escrava naquelas condições.

Quando o fim da escravidão tornou-se irreversível, o Brasil abriu as portas para a entrada do trabalhador europeu. Ora, se queríamos verdadeiramente a libertação dos escravos, por que não aproveitar a mão-de-obra dos negros, assalariados no mercado de trabalho? Mas isso não aconteceu, porque os trabalhadores europeus vieram para o mercado de trabalho brasileiro.

      "O negro e o liberto perderam em toda linha. Na competição com os imigrantes, foram desalojados pelas preferências dos proprietários pelo "homem livre", visto como mais apto e produtivo. Os salários vis que lhes ofereciam, enquadravam-se numa política geral de salários baixos. O ex-escravo viu-se na contingência de repudiar as ofertas de trabalho, pois enxergavam nela a continuidade da escravidão por outros meios. Tiveram de retrair-se, retomando os caminhos que os levava de volta às regiões de origem, submergindo na economia de subsistência, ou recorriam ao parasitismo sobre a mulher negra, ou tinham de submeter-se aos "trabalhos sujos", "trabalhos de negros" .

      Esse foi um trabalho sobre o negro, do meu saudoso e querido companheiro Florestan Fernandes."

Criaram-se mecanismos para impedir a integração do negro na sociedade de classes e, esta mesma sociedade que enriqueceu com o seu trabalho, o levou à marginalidade, sem emprego, sem moradia, sem comida e sem esperança de ter uma vida digna.

      "O 13 de maio não descerrava para o negro "novas oportunidades". Extinguia as velhas ocupações sem engendrar outras novas. Então começa a pugna feroz do negro para "tornar-se gente", para conquistar com suas mãos sua auto-emancipação coletiva.

O Brasil seria um outro país hoje, caso a abolição fosse acompanhada por uma adequada reforma agrária - que hoje estamos brigando, discutindo e lutando para que seja feita -, em que as famílias dos ex-escravos tivessem recebido pequenas propriedades agrícolas aptas à produção. Tais famílias, como é sabido, detinham, então, secular experiência rural.

      "Os negros, quando não eram mantidos nas fazendas, onde muitos ex-escravos continuaram trabalhando, partiam para a periferia das cidades de onde nunca mais saíam. O processo de enfavelamento urbano, a partir daí, se agigantou. As doenças - sífilis, tuberculose, lepra, esquistossomose e outros males, como a loucura - reduziram a vida média da população negra. De um lado, a desvalorização profissional representada pelo aviltamento salarial, de outro, um aspecto mais grave, porque de ordem psicológica, o estigma secular de ter sido escravo por tanto tempo".

Esse é um trabalho do ilustre professor, intelectual, Hélio Santos, que hoje faz parte do grupo interministerial do Presidente Fernando Henrique Cardoso, para as populações negras.

Saindo da senzala para o trabalho livre, o negro não encontrou emprego. Para sobreviver, o ex-escravo teve que ir morar nas favelas, debaixo das pontes, e a ex-escrava teve que vender o corpo para sustentar a sua família e a si próprio. Está aí a origem da prostituição no Brasil.

      "Portanto, o 13 de maio dobra a última página de uma tragédia. O negro era expulso de uma economia, de uma sociedade e de uma cultura, cujas vigas ele forjara, e enceta, por conta própria, o penoso processo de transitar de escravo a cidadão".

Passados 108 anos de extinta a escravidão no Brasil, os ex-escravos continuam nas favelas, morando embaixo das pontes, sem teto, salário mínimo, vítimas de grupos de extermínio e as mulheres negras sendo esterilizadas.

As condições em que os negros exercem sua cidadania precisam ser reconhecidas por todos como anômalas. Cálculos do IBGE indicam que 44,2% da população brasileira, ou mais de sessenta e cinco milhões de pessoas são de pretos ou pardos. No entanto, nas esferas de influência e de poder, a presença negra é restrita, para não dizer nula.

As estatísticas sobre concentração de renda no Brasil - a maior de todas - não deixam margem de dúvida sobre as diferenças raciais; de cada 100 afro-brasileiros que trabalham, cerca de 1/3 vive apenas com R$100,00 por mês, ou seja, com o salário mínimo. Por outro lado, em cada grupo de cem "pretos" que trabalham, temos apenas dois que atingem a privilegiada faixa dos que recebem mais de R$2.000,00 - estamos falando dos intelectuais.

O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, lançou ontem, 13 de maio, o Plano Nacional de Direitos Humanos. É uma iniciativa louvável e pioneira, que devemos saudá-la com muito entusiasmo, principalmente porque Sua Excelência é uma pessoa comprometida com as questões sociais.

Foi importante a iniciativa de poder, em relação à comunidade negra, colocar os objetivos do Presidente com um programa específico. O Presidente tem a intenção de respaldar as decisões do grupo de trabalho interministerial, criado em 20 de novembro de 1995, que tem a finalidade de desenvolver políticas para a valorização da população negra. Pensam incluir o quesito cor em bancos de dados públicos sobre populações. Aí perguntariam: O que tem isso a ver? Porque nos dados do IBGE comprovamos que apenas 44% da população brasileira é considerada preta ou parda, porque, lamentavelmente, os caracteres que identificam uma etnia não são usados nas pesquisas brasileiras. Portanto, somos negros, pretos, pardos, mulatos, morenos, feijãozinho, moreninhos, todos os "inhos", mas não existe uma pesquisa científica que caracteriza uma etnia. Esse processo é de branqueamento da sociedade brasileira, porque somos miscigenados e nossas origens, evidentemente, nessa miscigenação tem majoritariamente a comunidade negra como população. E é necessário que esse quesito possa identificar. Fazem até gracinhas e piadinhas com relação a isso, porque se diz que filho de negro nasce branco, então, por conseguinte, identifica-se a cor a partir do nascimento, e lá está colocado que ele é pardo. E pasmem, pois no meu registro de nascimento sou parda. Imaginem a Benedita parda. Não tem condição! Mas consta em minha certidão, porque não identificaram os caracteres, as origens da minha etnia. Isso acontece.Por isso, é importante incluir o quesito "Cor" em bancos de dados públicos sobre a população.

Um outro objetivo da proposta do Presidente da República e também do Grupo Interministerial é a adoção do sistema de "quotas compensatórias" para os negros em empresas, escolas, para facilitar o acesso dos negros aos grupos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia.

Lembro que, nesta Casa, estão tramitando projetos de minha autoria que refletem a minha vontade mas que também são resultado de toda essa luta. Tratam das políticas de quotas.

Não foi fácil garanti-las para as mulheres na disputa do processo eleitoral. Acompanho essa luta desde o meu mandato na Câmara dos Deputados e conheço as dificuldades que teremos para introduzir a política de quotas para a comunidade negra. Pensam que estamos fazendo um racismo ao contrário.

Não é possível que uma população como a nossa, miscigenada - e a maioria de nós está no processo de produção, executando tanto trabalhos que exijam esforço físico como trabalhos que exijam esforço intelectual - não tenha visibilidade. Isso ocorre porque não estamos ocupando os espaços.

Tal é a defasagem, a distância, que, se não criarmos mecanismos compensatórios, dificilmente estaremos em igualdade de condições nos próximos cem anos. Mesmo que a comunidade esteja produzindo intelectualmente, esforçando-se, dificilmente a contribuição da comunidade negra e muito menos a sua representatividade nos espaços chamados de decisão serão visíveis.

Por isso, é importante que o negro esteja profissionalizado e que as universidades possam garantir igualdade de condições para todos. Não estamos reivindicando uma universidade para negros, porque entendemos que, no nosso País, há miscigenação. Queremos a integração das nossas etnias.

Entretanto, há dificuldade de acesso dos negros às universidades. Nós sabemos das dificuldades. A maioria de nós que conseguimos freqüentar as universidades o fizemos a nossa custa. Tivemos de trabalhar duro durante o dia para cursar a universidade à noite. As universidades chamadas públicas têm-nos colocado à margem, até porque não temos acesso ao tipo de conhecimento exigido nos testes e nas provas de admissão à universidade. E não nos é possível evidentemente freqüentar os cursinhos, caríssimos por sinal, e passar noites a fio estudando para poder passar no famoso vestibular.

Então, optamos? Não! Não optamos. Nós nos esforçamos e estudamos porque queremos viver a experiência do saber, mas não nos é facilitada a aquisição do saber, devido às condições sociais em que a maioria dos negros brasileiros vive.

Entre os objetivos do programa do Governo está também o de estimular a presença dos grupos étnicos que compõem a população brasileira em propagandas institucionais. Neste ponto eu gostaria de ressaltar que tenho um projeto que resulta também do amadurecimento das nossas discussões. Estabelece quotas para a presença da imagem do negro nos meios de comunicação. Por quê? Porque não há visibilidade da figura negra, a não ser como marginal. Dificilmente a figura negra, que tem contribuído, que faz parte da sociedade brasileira, está presente.

Há críticas ao projeto argumentando que essa exigência é uma discriminação, questionando por que não há a mesma exigência com relação ao japonês, ao italiano.

Não é procedente. As condições sociais e as oportunidades oferecidas aos italianos, aos portugueses, aos japoneses que vivem no Brasil são totalmente diferentes das dos negros. Também não procede dizer que é uma discriminação ao contrário. Não há nada pior para nós do que não ver a nossa imagem refletida.

Eu, uma pessoa esclarecida, amarguei o domingo, Dia das Mães, por assistir na televisão a todos os programas que foram feitos em homenagem às mães e perceber que não tiveram a sensibilidade de mostrar uma mãe negra na televisão em nenhum programa em nenhum canal. Os nossos filhos não se viram como crianças. Não puderam prestar homenagens as suas mães a nível nacional porque lá não se encontravam.

Portanto, há necessidade de dar visibilidade ao povo brasileiro. Desejamos isso porque somos povo brasileiro. Não queremos privilégios ou prioridades, mas é preciso ajustar as nossas consciências.

Quando aceitamos naturalmente a ausência dessa imagem é porque, inconscientemente - ou talvez conscientemente -, concordamos com a prática de exclusão dessa população que amamos e que é pura e simplesmente brasileira.

O Sr. Pedro Simon - V. Exª me permite um aparte, Senadora Benedita da Silva?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Ouço V. Exª, Senador Pedro Simon.

O Sr. Pedro Simon - Entendo a profunda mágoa de V. Exª, que deve ter sido a mágoa de milhões de brasileiros, mães e filhos. Na verdade, em toda a publicidade que houve em torno do Dia das Mães não se incluiu nenhuma pessoa negra. Aliás, isso ocorre praticamente em todas as publicidades brasileiras. Por isso, de certa forma, o pacote sobre direitos humanos lançado ontem pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso consta um item que considero muito importante e que V. Exª principalmente - bem como todos nós - deve, a partir de hoje, cobrar. Faz parte das medidas anunciadas pelo Presidente estimular a presença dos grupos étnicos em propagandas institucionais controladas pelos órgãos do Governo. Poderia ser acrescentado que o Governo fará as propagandas institucionais em setores particulares, onde isso também deverá ser cumprido. Parece brincadeira, mas um país como o nosso, que tem mais de 50% de negros, precisa de algo dessa natureza, para que se estimule que, nas campanhas, na publicidade - e não é só na publicidade, mas no relacionamento normal entre as pessoas - possa ouvir-se um negro falar sobre a sociedade, falar sobre a cultura, falar sobre tudo, não apenas na hora da violência, na hora do roubo, na hora da falcatrua. V. Exª está trazendo à baila com muita sensibilidade este tema, chamando a atenção para um detalhe: no Dia das Mães não houve uma mulher negra recebendo ou trasmitindo uma mensagem. Mas vamos fazer justiça: este é o dia-a-dia da televisão brasileira. O Presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu que a partir de hoje a campanha institucional do Governo terá de contar obrigatoriamente com um percentual de pessoas negras. Eu acrescento que podemos ir além: podemos cobrar dos proprietários de canais de televisão que nos seus canais isso também aconteça. Meus cumprimentos e minha solidariedade ao profundo e sério, magoado - aliás, justa mágoa - pronunciamento de V. Exª.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Senador Pedro Simon, agradeço o aparte de V. Exª, que vem, sem dúvida, enriquecer o meu pronunciamento nesta tarde.

Quero apenas destacar que não há mágoa. A mágoa não faz parte deste contexto. Há dor. Somos brasileiros e brasileiras e o que gostaríamos, na verdade, era de não tratar deste assunto. V. Exª oportunamente questiona: que país é este que necessita de uma programa dessa natureza para que seus filhos sejam reconhecidos.

Oh, Pátria amada, não podes ser idolatrada, porque não és gentil!

É preciso ter cautela ao trazer essas questões para os debates, para não ferir, para não ser considerado discriminação, como se fôssemos uma sociedade democraticamente racial, vivendo num regime em que pudéssemos ligar a televisão, abrir a revista, ler os jornais e estarmos lá, pura e simplesmente.

Quando nos referimos àquele percentual, longe ele está de expressar os nossos objetivos. É apenas simbólico, uma forma de chamar a atenção, como o fizemos com os 20% para as mulheres, porque somos bem mais e muito mais merecemos. Era um símbolo para que se iniciassem os debates. As questões aqui colocadas e a iniciativa do Presidente da República servem para iniciá-los.

Como um órgão público pode deixar de retratar, ou de reproduzir, a imagem do seu País? É impossível. Por isso a iniciativa do Presidente da República não pode e não deve estar restrita - e temos na Casa projetos - apenas à instituição, mas deve-se estender à iniciativa privada, principalmente quando temos o dever de votar, como votamos, concessões de rádio e televisão. No entanto, não temos sequer o direito de aparecer nessas televisões. Será que é pedir demais? Não, mas não queremos que apareça simplesmente por aparecer. Temos atores, atrizes, gente que produz. Temos pessoas que, verdadeiramente, mostram o Brasil como ele é, de uma maneira belíssima.

Eu poderia resgatar aqui várias figuras, que são ilustres desconhecidas, mas que têm contribuído, e muito, para a imagem desta Nação. Todavia, elas estão no anonimato. Penso que o negro mais conhecido do País é o Pelé, hoje Ministro Extraordinário - e temos que acabar com essa situação e começar a ver as coisas de fato - , que contribuiu com o seu trabalho, com o seu futebol, para que este País se tornasse conhecido.

Temos de reconhecer esses valores. Nesse contexto, podemos ressaltar a Bahia, que é altamente privilegiada. É o único lugar a que vou neste País, em que ligo a televisão e me vejo. Fora esse Estado, não me vejo em nenhum outro. Então, torna-se um país dentro de outro país. E é o coração da África brasileira.

É preciso que tenhamos coragem de resgatar para o povo negro e para a sociedade brasileira a sua dignidade, a sua imagem. Isso requer de nós firmeza para votarmos esse projeto aqui, não de uma forma rancorosa, como revanchismo, mas como defesa do direito dos cidadãos negros deste País.

O Sr. Eduardo Suplicy - Senadora Benedita da Silva, V. Exª me concede um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Eduardo Suplicy - Senadora Benedita da Silva, gostaria de externar minha solidariedade a essa disposição de V. Exª de apoiar, de criar, de apresentar inúmeras iniciativas que venham resgatar, garantir a todos os membros da população brasileira os direitos plenos da cidadania, a participação, seja na educação, no ensino superior ou nos meios de comunicação, e que a população negra tenha oportunidade igual à de qualquer outra em nosso País. A ressalva de V. Exª faz-me lembrar de algumas imagens recentes de felicidade, de alegria que estão chegando a nós pelos meios de comunicação, especialmente nesses meses recentes, em diversas manifestações na África do Sul. É realmente impressionante ver o rosto daquela população, até mesmo quando do jogo do Brasil versus África do Sul, onde existem apenas atos simbólicos de transformação realizados pelo Presidente Nelson Mandela. Recentemente, o ex-Ministro e Embaixador Rubens Ricupero escreveu um artigo sobre fatos que presenciou e que o impressionaram muito. S. Exª escreveu também a respeito das transformações naquele país. Pode-se observar, no rosto da população da África do Sul, um sentimento de ganho de dignidade, de respeito mútuo, de reconhecimento, em seus atuais governantes, de que algo de muito relevante está acontecendo, depois de décadas de história trágica, de impedimentos do sistema do apartheid. Abordo esse assunto porque, obviamente, isso significa a esperança de mudança, da possibilidade de transformação. A reflexão de V. Exª, por outro lado, traz-me uma preocupação de algo que li hoje nos jornais relativamente à África. Há uma foto impressionante de quatro mil africanos da Libéria, que foram colocados em um navio, pois o seu país, em guerra, fez com que várias pessoas se vissem na necessidade de sobreviver, de sair de sua própria terra e ir em busca de algum outro porto. Chegando em Gana, tiveram dificuldade em desembarcar. Trata-se até mesmo do direito de existência que as pessoas têm de, em condições mínimas, poderem viver em paz. O pronunciamento de V. Exª fez-me ligar esses fatos recentes, divulgados pelos meios de comunicação, aos atos ocorridos em Johanesburgo, Pretória e outras cidades da África do Sul, que expressam o sentimento de que alguma coisa de muito especial está acontecendo ali e que vem na direção daquilo que V. Exª gostaria que ocorresse mais rapidamente em nosso País, em favor da população negra que, por tanto tempo, encontrou-se em dificuldades.

A revista Veja desta semana traz uma história um tanto esquecida, uma reportagem muito bem feita sobre o que era o Brasil há pouco mais de cem anos, quando, por mais de três séculos, aqui havia a escravidão. V. Exª, portanto, nos traz a consciência de que tanto há por fazer para transformar aquilo que não foi realizado nestes 108 anos, desde 1888.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, Senador Eduardo Suplicy...

O Sr. Romeu Tuma - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Peço desculpas a V. Exª, Senador Romeu Tuma, mas o nobre Senador Antonio Carlos Magalhães, fora do microfone, falou algo que soou bem aos meus ouvidos e eu lhe dei atenção...

O Sr. Romeu Tuma - Gostaríamos de saber o teor do aparte, pois, para que V. Exª tenha sorrido e se mobilizado, deve ter sido bastante agradável.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Só gostaria de agradecer ao Senador Suplicy o aparte e conceder...

O Sr. Pedro Simon - Ele deve ter dito que um bom pedaço do seu discurso vai sair na TV da Bahia. Penso que seria bom para V. Exª, para o Senado e para a Bahia. Seria um mérito da Bahia, já que foi muito importante saber que se pode assistir na televisão da Bahia, como V. Exª disse, aquilo que, lamentavelmente, não se assisti no resto do Brasil.

O Sr. Antonio Carlos Magalhães - Agradeço a V. Exª, Senador Pedro Simon.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte ao Senador Romeu Tuma.

O Sr. Romeu Tuma - Senadora Benedita da Silva, pouco poderia acrescentar ao que V. Exª está descrevendo e aos apartes que recebeu, mas lembro-me de uma viagem que fiz à África, e o Senador Eduardo Suplicy lembrou do navio que praticamente não tem onde ancorar, uma miséria, um desrespeito de praticamente toda a humanidade contra um grupo de pessoas que querem apenas viver. Sem comida, ao relento, navegando, como se fosse uma novela, uma desgraça que deveria levar todos nós aos prantos. Vemos no noticiário como se uma novela fosse. Creio que - citando a revista Veja, à qual o Senador Eduardo Suplicy já fez referência - esse levantamento que V. Exª faz e algumas reivindicações do projeto que V. Exª apresenta são justos e corretos. Entendo que não podemos pensar nos fatos como se fossem um remorso pelo que se fez ou com pena. Direitos não se discutem, procuram se impor. Creio que na teoria que V. Exª traz não há mágoa, há dor, porque os direitos não estão sendo respeitados. Estamos solidários com V. Exª. Acredito que V. Exª terá uma frente que vai colaborar para ver aprovado e fazer parte de nosso ordenamento jurídico os direitos que os negros têm na composição da sociedade brasileira.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª. Quero dizer aos Senadores Eduardo Suplicy e Romeu Tuma que acompanhei de perto o que aconteceu na África do Sul. Estive lá por várias vezes e chamou-me a atenção, quando, no processo eleitoral, vi pessoas com 70, 80 anos dizerem que estavam votando pela primeira vez. Portanto, eles queriam votar, e votavam no Mandela porque queriam ver a África do Sul unida.

Ninguém dizia que queria eleger o Mandela para que ele pudesse expulsar todos os brancos de lá. Não! Eles queriam trabalhar, e a composição política feita pelo Mandela, de sustentação, inclusive, deu-nos uma garantia, uma segurança de que aquele país, apesar do apartheid, estaria sendo governado por alguém que tinha consciência de que, ainda que fosse minoria a etnia branca, ela fazia parte daquela sociedade, e que ali eles deveriam governar. Assim é a África do Sul, assim está sendo a África do Sul, e nós temos orgulho disso!

Ontem, tive a oportunidade, Senador Romeu Tuma, de ver, numa manifestação feita pelo Vereador Antônio Pitanga, na Câmara dos Vereadores, as personalidades do mundo negro sendo homenageadas. Algumas são belíssimas, como o caso de Saul, que foi o escultor de Zumbi, que está sendo exibido aqui no Distrito Federal. É do Rio de Janeiro, é um negro competente, inteligente, intelectual, um homem da arte. Inúmeras outras mulheres e homens negros também foram homenageados.

E eu dizia, na minha intervenção para os homenageados, que eu estava ali sentindo um orgulho muito grande, porque tenho orgulho da minha raça! Tenho orgulho muito mais porque em nós não existe ódio, não existe rancor; o que existe é beleza, humanidade, solidariedade, um desejo de ser respeitado e reconhecido nas nossas emoções e nos nossos ideais!

E V. Exª, quando diz que verdadeiramente aqui não é para os negros se sentirem culpados; nem, pura e simplesmente, devem se sentir irresponsáveis, porque serão responsáveis, se tiverem nas mãos as condições de mudar o rumo dessa história. Portanto, somos nós. O convite ao desafio está sendo feito não só para os negros ou só para os brancos, mas para nós, sociedade miscigenada brasileira, para que tenhamos uma raça brasileira. Esse é o nosso orgulho, e é isso que estamos buscando.

A Srª Marina Silva - V. Exª me permite um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Ouço com prazer V. Exª.

A Srª Marina Silva - Senadora Benedita da Silva, parabenizo V. Exª pela ação, porque V. Exª, além de fazer parte da raça negra, é também uma militante da raça negra, dentro desses valores positivos que V. Exª acaba de afirmar. Observando aqui o Plano Nacional de Direitos Humanos do Governo, há um item que trata da questão da discriminação racial, porque dados do IBGE dão conta de que 43% da população brasileira, ou seja, sua grande maioria, é de origem negra, e um país com essa quantidade de pessoas de origem negra não pode tratar uma questão tão importante como essa apenas com tipificações artificiais que nem do ponto de vista sociológico e antropológico se sustentam, como, por exemplo, o pardo, o moreno, enfim, uma grande quantidade, como V. Exª já citou, para descaracterizar ou amenizar um pouco o nosso preconceito. Meu registro de nascimento e minha carteira de identidade dizem que sou parda, mas sempre me considerei negra porque meu pai e meu avô são de origem negra, mas há uma mistura com português que resultou em um pouco de tipificação dessa natureza. Ao cidadão brasileiro deve ser também dada a oportunidade de pensar sua raça enquanto origem, já que, enquanto condição social, somos bastante discriminados e, enquanto condição de raça também, muitas vezes, somos considerados inferiores. Gostaria de fazer uma breve referência ao que falou o Senador Eduardo Suplicy sobre o navio que não encontra um porto para ancorar. Muitas vezes, existem milhares, milhões, bilhões de pessoas nesse mundo da raça negra e, às vezes, da raça branca, que não encontram um porto para ancorar e receber comida, água, dignidade, saúde, educação, enfim, respeito. Às vezes, isso acontece em pequenas quantidades, vemos isoladamente em uma família e isso parece ser normal para a cultura humana, mas, quando acontece num grande aglomerado, mil e quinhentas, cinco mil pessoas sem rumo, doentes, sem alimentação, entregues à própria sorte, isso tem o poder de, pela quantidade, nos estarrecer. Precisamos ficar, no entanto, indignados e estarrecidos, não pela quantidade, mas pela qualidade, já que por esta não importa se são mil pessoas ou apenas uma sem um porto para ancorar. É fundamental o que diz V. Exª em seu pronunciamento. A nossa luta não é para afirmar e nem para homogeneizar os valores da raça negra; mas, sim, para que se respeite a cultura branca e também para que ela nos dê o devido respeito, nos dê o devido espaço. Da mesma forma que a nossa luta de mulheres não é para suprimir os valores masculinos, mas para afirmar os valores femininos. Parabenizo V. Exª pelo discurso e digo que sou inteiramente solidária a essa luta de construírmos uma sociedade que não seja apenas de homens e mulheres, de negros, de brancos e de amarelos, mas, acima de tudo, de seres humanos.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, Senadora Marina Silva. Ao olhar, como bem colocou o Senador Eduardo Suplicy, os jornais e ver aquele navio sem rumo, com homens e mulheres buscando um abrigo, um asilo, imagino que o nosso País os acolheria, pois é hospitaleiro, se aquele navio estivesse em águas brasileiras. Poderíamos deixar que ancorasse, porque nós, negros brasileiros, sabemos que aquele será um navio negreiro se não encontrar um porto.

Tive oportunidade, Senadora Marina Silva, de visitar a ilha de Goré, no Senegal, e pude observar, bastante chocada, o local que havia tido um mercado de escravos. Não havia como fugir de lá, pois à frente era só água; alguns tentavam fugir, mas, evidentemente, morriam, porque sequer tinham noção da distância até a outra margem. Pude também verificar como era difícil para os nossos irmãos e irmãs conviver naquele local com os defuntos. Isso era incrível.

Daquele entreposto - assim era chamado -, negros vieram para cá e foram para outros países. Nós conseguimos preservar, sem dúvida alguma, essa presença. Aceitamos essa herança, em que pese o Brasil ter escravizado a mão-de-obra negra.

Já me referi à Bahia anteriormente. Novamente, peço licença ao Senador Pedro Simon para dizer que a Bahia pôde também acolher muito bem esse povo negro vindo da África. Com certeza, Senegal tem na Bahia as suas raízes. Portanto, se esse navio estivesse em mar brasileiro, tenho certeza de que o acolheríamos.

Quero concluir dizendo que, apesar da iniciativa do Presidente Fernando Henrique Cardoso, ficaram ausentes da proposta governamental algumas questões de peso. Mas nós do Senado Federal poderemos - não digo corrigir, porque não há nada a ser corrigido - acrescentar algo, fazendo com que seja aplicado o art. 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, que trata das terras dos remanescentes dos quilombos.

Precisamos garantir o atendimento, através da rede pública de saúde, de serviços específicos para os casos de anemia falciforme, que verdadeiramente têm tomado conta da comunidade negra, que muito tem sofrido com essa doença. É necessário cuidar com atenção étnica o processo de hipertensão e outras doenças características da raça negra.

É essencial criar-se programas específicos de incentivos, de capacitação, de treinamento para todos, e também para homens e mulheres negros, que encontram dificuldades de acesso ao mercado de trabalho. Sempre nos cobram algo mais, e é fundamental que apenas a nossa competência seja o passaporte para ingressarmos em qualquer trabalho. Nada além disso, a nossa competência tem que bastar para entrarmos no mercado de trabalho.

É indispensável que essa história da África, da cultura dos povos africanos, que conto aos pedaços, torne-se disciplina obrigatória no primeiro, no segundo e no terceiro grau. O povo brasileiro precisa conhecer essa história maravilhosa, e por que não? Conhecemos a história de outros povos, como os italianos, os franceses, os norte-americanos, entre outros. Por que não saber da contribuição intelectual introduzida na história do nosso País pelos africanos?

Precisamos analisar a questão racial e torná-la uma questão nacional, não fazer pura e simplesmente uma política separatista. Para isso, teremos que romper com esse silêncio histórico com relação a esse assunto. É fundamental, e nós sabemos, acabarmos, de uma vez por todas, com essa questão do preconceito.

O racismo viola o direito à igualdade, um dos pilares fundamentais da democracia, e não podemos conviver com isso. A construção da cidadania para o povo negro, tão debatida durante o Tricentenário de Zumbi, precisa ser resgatada na data de 13 de maio, que foi ontem.

O mito da democracia racial está ultrapassado. O próprio Presidente da República reconheceu, recentemente, que existe preconceito racial no Brasil. Queremos, a partir de agora, ações efetivas do Estado que retirem a população negra da condição de marginalização perante a sociedade brasileira, para que tenhamos o orgulho de conviver na multiplicidade de raças e de culturas.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/05/1996 - Página 8027