Discurso no Senado Federal

SITUAÇÃO DESESPERADORA DAS SANTAS CASAS DE MISERICORDIA E APELO AS AUTORIDADES PARA VIABILIZA-LAS.

Autor
Júlio Campos (PFL - Partido da Frente Liberal/MT)
Nome completo: Júlio José de Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • SITUAÇÃO DESESPERADORA DAS SANTAS CASAS DE MISERICORDIA E APELO AS AUTORIDADES PARA VIABILIZA-LAS.
Publicação
Publicação no DSF de 30/05/1996 - Página 9083
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • APREENSÃO, GRAVIDADE, RISCOS, PREJUIZO, MANUTENÇÃO, SANTA CASA DE MISERICORDIA, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, ESTADO DE MATO GROSSO (MT), RESULTADO, CRISE, SISTEMA NACIONAL DE SAUDE, CONGELAMENTO, PAGAMENTO, DESTINAÇÃO, INSTITUIÇÃO HOSPITALAR.
  • SOLICITAÇÃO, MELHORIA, TRATAMENTO MEDICO, POPULAÇÃO CARENTE, NECESSIDADE, RECURSOS, MANUTENÇÃO, SANTA CASA DE MISERICORDIA.

O SR. JÚLIO CAMPOS (PFL-MT) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, antes do descobrimento do Brasil, no dia quinze de agosto de 1498, era inaugurada em Portugal a primeira SANTA CASA DE MISERICÓRDIA, sob os auspícios da Rainha de Portugal, Dona Leonor de Lencaster, viúva do Rei Dom João II e irmã do Rei Dom Manoel, o Venturoso.

O espírito desbravador e conquistador de novas terras do povo português levou a instituição das Santas Casas ao além-mar: no ano de 1543, no Estado de São Paulo, na cidade de Santos, surgia a primeira Santa Casa do Brasil, com o apoio decisivo de Braz Cubas.

O ponto focal da ação das Santas Casas, em consonância com as obras de Misericórdia, é, resumidamente, SERVIR À POBREZA, nos aspectos Corporal e Espiritual.

Quinhentos anos de obras de Misericórdia, de serviço à pobreza - aos fracos, aos necessitados, aos indigentes, aos doentes, aos aflitos, aos agonizantes, aos órfãos, aos velhos, aos desprezados pelas famílias, aos marginalizados - ultrapassariam os limites deste meu pronunciamento e nos levariam a penetrar no imenso e inesgotável repositório de Obras de Misericórdia realizadas pelas Santas Casas em meio milênio.

Essas obras, que em muito ultrapassam o que atualmente se conhece como "direitos humanos", se referem a "ensinar os simples; dar conselho a quem pede; castigar os que erram; consolar os desconsolados; perdoar os que nos ofenderam; sofrer injúrias com paciência; rezar pelos vivos e pelos mortos; remir os cativos; visitar os presos; curar os enfermos; cobrir os nus; dar de comer aos famintos; dar de beber a quem tem sede; dar pouso aos peregrinos e enterrar os mortos".

O homem que foi a pedra angular, coluna de sustentação e verdadeiro fundador das Santas Casas, o sacerdote espanhol que vivia em Portugal, Frei Miguel de Contreiras, assim resumiu a missão das Santas Casas: "tratar os enfermos; patrocinar os presos, socorrer os necessitados e amparar os órfãos", além das obras correlatas como asilos para invalidez e velhice.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores.

Essa obra magnífica, mais que secular, essa obra de grande significado espiritual e humano, esta bela realização que herdamos do espírito ao mesmo tempo humilde e altivo do povo português, essa obra que permanece através dos séculos corre sérios riscos de ser desvirtuada, de ser prejudicada e, infelizmente, até mesmo desaparecer em decorrência da crise do Sistema de Saúde do Brasil.

Recebi Ofício da Câmara Municipal de Rondonópolis, do meu Estado de Mato Grosso, relatando a Indicação número 34/95, do Vereador Milton Gomes da Costa, e aprovada por unanimidade, pleiteando a instituição de um Fundo de Emergência à Saúde, em que os recursos deveriam ser destinados especificamente às Santas Casas de Misericórdia, em decorrência da situação financeira crítica da área da Saúde, em que hospitais estão sendo fechados por falta de recursos.

Rondonópolis, região de grande desenvolvimento agropecuário e industrial, passou a ser considerada um pólo de saúde, concentrando o atendimento médico-hospitalar de toda uma região geoeconômica, na qual exerce grande influência.

O atendimento das Santas Casas é considerada do melhor nível, não apenas do ponto de vista quantitativo como principalmente qualitativo, principalmente em decorrência de uma demanda crescente nos últimos anos, havendo necessidade imediata de as Santas Casas de Misericórdia investirem em equipamentos e aparelhos imprescindíveis a um atendimento condigno à população carente, como direito constitucionalmente assegurado.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores.

O que aqui estou relatando não é apenas um pleito local, regional nem, tampouco, paroquial, como muitas vezes, e de modo injusto, nós políticos temos sido acusados de patrocinar por pessoas desinformadas, por pessoas que nunca conheceram o sofrimentos dos pobres, dos doentes, dos indigentes, dos marginalizados.

O que ocorre em Mato Grosso vale para todo o Brasil, em que as Santas Casas de Misericórdia são obrigadas a pagar apenas dois reais por consulta aos médicos responsáveis pelo atendimento a seus milhares de pacientes, tudo em decorrência da crise financeira da área de Saúde, do SUS, que mantém congelados os pagamentos às Santas Casas de Misericórdia.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o tratamento humano e digno que reivindico para os pacientes mais humildes, para aqueles que secularmente têm sido atendidos pelas Santas Casas, o aporte adequado de recursos necessários ao financiamento deste setor mais que prioritário, não são uma reivindicação apenas do meu Estado.

Em passado não muito remoto, a classe média brasileira vinha sustentando com contribuições voluntárias as Santas Casas de Misericórdia, como instituições que pertencem à comunidade, que não têm proprietário, que não visam lucro, que não discriminam paciente e recebem qualquer um, de qualquer raça, de qualquer profissão, com qualquer doença, de qualquer nacionalidade, de qualquer idade, de qualquer condição social.

O empobrecimento da classe média brasileira tem impedido que ela contribua de forma substancial para o financiamento das Santas Casas, principalmente porque o número de pobres no Brasil tem crescido numa proporção geométrica, enquanto a classe média tem até mesmo diminuído ou desaparecido.

É interessante lembrar, vislumbrando o campo dos direitos humanos, uma curiosidade histórica da qual as Santas Casas de Misericórdia são protagonistas: no Brasil colônia, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro fornecia a corda aos condenados à forca.

Dizia-se que a Irmandade, seguindo os princípios da Misericórdia, intervindo em favor do condenado, fornecia a corda previamente passada numa substância química destinada a enfraquecê-la: muitos escravos foram salvos, envolvidos na bandeira da Santa Casa, que ainda hoje se encontra na Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, no bairro de Bonsucesso, na cidade do Rio de Janeiro.

Trata-se de fato histórico que deveria nos levar a refletir muito sobre a atual situação de inadimplência de tantos brasileiros necessitados de Misericórdia.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores.

O Papa João Paulo II, em sua Carta Encíclica "Dives In Misericordia", afirma que "A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria idéia de misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou. Tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia. No entanto, a este propósito, podemos reportar-nos com proveito à imagem da 'condição do homem no mundo contemporâneo', como está delineada no início da Constituição Gaudium et Spes. Aí lemos, entre outras coisas, as frases seguintes: "Assim, o mundo atual apresenta-se, ao mesmo tempo, poderoso e débil, capaz do melhor e do pior; abre-se na sua frente o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças que suscitou, as quais tanto o podem esmagar como servir: (...) É meu desejo, portanto, que estas considerações sirvam ara aproximar mais de todos tal mistério e se tornem, ao mesmo tempo, um vibrante apelo da Igreja à misericórdia, de que o homem e o mundo contemporâneo tanto precisam. E precisam dessa misericórdia, mesmo sem muitas vezes o saberem".

O fracasso de todos os sistemas totalitários na construção da utopia do "paraíso terrestre", da idéia do homem conseguir sua "libertação" apenas com a ajuda de suas próprias forças, desprezando a força da solidariedade humana, da fraternidade humana, tudo isso demonstra que não podemos nem devemos desprezar as obras de caridade realizadas durante cinco séculos pelas Santas Casas de Misericórdia.

Quando a Rainha Dona Leonor de Portugal, movida pela Misericórdia, deu a mão ao sacerdote Miguel de Contreiras, construindo a Santa Casa de Lisboa, como abrigo e hospital para as vítimas da peste, para os marinheiros doentes e para os pobres, estava sendo inaugurada uma cadeia de fraternidade que iluminou a humanidade na Europa, na América e na África. Hoje no Brasil, sessenta e dois por cento da oferta de leitos hospitalares são das Santas Casas de Misericórdia, assim como noventa e dois por cento da assistência aos idosos desamparados e oitenta e dois por cento da assistência materno-infantil.

O ensino médico no Brasil também nasceu nas Santas Casas, formando médicos, pesquisadores, farmacêuticos, bioquímicos, enfermeiras e apoiando a residência médica.

As Santas Casas, impelidas pelo Amor de Deus, como "Pai das misericórdias", sempre procurou atrair as elites para salvar os pobres, sem permitir que a elite utilizasse as Santas Casas com objetivos e interesses pessoais.

A recente tragédia nuclear de Tchernobyl demonstra que a Misericórdia das Santas Casas ultrapassou até mesmo o que se imaginava ser impossível: penetrar na antiga Cortina de Ferro. A Santa Casa de Bielorrússia trabalha atualmente com aqueles seres humanos vítimas de sentenças de morte decretadas pela imprudência e arrogância do chamado homo sapiens, ao dirigir o átomo para fins bélicos, abertos ou disfarçados.

O Brasil não pode desprezar um trabalho de quinhentos anos, um trabalho humanitário, meritório, respeitável, de Misericórdia, de acolhimento fraterno ao ser humano.

O que Dona Leonor de Lencaster, Rainha de Portugal, fez em benefício da humanidade não poderá ser destruído pelo Brasil de hoje.

Tenho a convicção de que todos os Senhores Senadores conhecem o trabalho excepcional realizado pelas Santas Casas e não permitirão que elas sejam destruídas por inanição financeira nem, tampouco, por argumentos oriundos da tecnocracia orçamentária.

É o meu pensamento.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/05/1996 - Página 9083