Discurso no Senado Federal

ATUALIZAÇÃO, NA TENTATIVA DE COMPREENDER AS ELEIÇÕES QUE TRANSCORREM NA RUSSIA, DE TRABALHO DE SUA AUTORIA, PUBLICADO EM 1991 NA REVISTA DO SINDICATO DOS PROFESSORES, SOBRE A CRISE DO CAPITALISMO NA UNIÃO SOVIETICA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • ATUALIZAÇÃO, NA TENTATIVA DE COMPREENDER AS ELEIÇÕES QUE TRANSCORREM NA RUSSIA, DE TRABALHO DE SUA AUTORIA, PUBLICADO EM 1991 NA REVISTA DO SINDICATO DOS PROFESSORES, SOBRE A CRISE DO CAPITALISMO NA UNIÃO SOVIETICA.
Publicação
Publicação no DSF de 03/07/1996 - Página 11320
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, PROCESSO, EVOLUÇÃO, DECADENCIA, COMUNISMO, MUNDO, OPORTUNIDADE, REALIZAÇÃO, ELEIÇÕES, PAIS ESTRANGEIRO, RUSSIA, SIMULTANEIDADE, CRISE, CAPITALISMO, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, domingo que vem vai ocorrer o segundo turno das eleições na Rússia e muitos saúdam o acontecimento como se fosse um avanço real da democracia.

Quando foi declarado o colapso da chamada experiência de construção do socialismo real no espaço da União Soviética, reli e fiz uma análise retrospectiva das leituras que tinha feito anteriormente. Cheguei à conclusão de que praticamente todos os grandes líderes intelectuais da União Soviética desde a Revolução de Outubro estavam conscientes do que dizia Lênin: o socialismo não será para nós; talvez seja para os nossos filhos ou para os nossos netos.

Não foi no dia seguinte à revolução socialista, que completou e continuou a revolução burguesa ali feita em fevereiro do mesmo ano, que, por uma obra mágica, se construiu uma sociedade socialista naquelas bases precárias, arcaicas, da sociedade da velha Rússia. Lênin repetiu várias vezes que era preciso uma globalização, era preciso que se constituíssem rapidamente os estados unidos socialistas da Europa. Se isso não acontecesse, dizia ele, apenas os trabalhadores da União Soviética não poderão sustentar por muito tempo o socialismo."

Em 1934, em uma conferência feita em Copenhague, Trotski falou praticamente a mesma coisa: - "Quer por um erro de nosso Governo, quer por mais uma tentativa - desta vez bem sucedida - de agressão externa, o socialismo venha a desaparecer na União Soviética, ele renascerá, uma vez que as condições que possibilitaram a sua eclosão inicial venham a se repetir".

Paul Mattick, um brilhante economista alemão, que se refugiou nos Estados Unidos e ali criou uma revista, em seu livro chamado "Marx e Keynes - O Limite da Economia Mista", dizia que a revolução de 1917 foi uma revolução capitalista, keynesiana e não socialista.

E, à medida em que a releitura vai sendo feita, vai se fortalecendo, na minha consciência, a nítida convicção de que o festejado fracasso do socialismo na União Soviética não passou de uma crise do capitalismo.

Na realidade, Charles Bettelheim, que desde 1935 estudou o idioma russo e escreveu vários livros sobre aquela sociedade, aquela formação econômico-social, inclusive um livro, em quatro tomos, intitulado A Luta de Classes na União Soviética, também afirma que a Velha Rússia, o autoritarismo, o despotismo, a centralização sobreviveram à Revolução Vermelha de 1917 e impediram que o socialismo realmente se edificasse naquele espaço.

Bettelheim, em seu livro de 1974, considera que as relações despóticas, a hierarquia, a distribuição social do poder e dos privilégios continuaram capitalistas após a Revolução de outubro.

Fenômenos semelhantes se encontram na sociedade brasileira e em sua História, onde, por exemplo, a abolição da escravidão conservou as relações sociais e econômicas de exploração, de subordinação do negro ao branco, de exclusão do negro de ter acesso ao poder, ao capital, à educação, à habitação, e a desvalorização social do negro. Também a independência política foi proclamada sem mudar praticamente nada, uma vez que ela deveria ter-se dirigido contra quem a declarou, Pedro I, personificação do poder colonial português.

Para Bettelheim, a construção do socialismo deveria -tal como Rosa Luxemburg disse a Lênin - priorizar o desenvolvimento da democracia na sociedade, nas organizações populares, nos sovietes (conselhos populares), no Estado, ao invés de um desenvolvimento das forças produtivas.

Lênin viria, em 1920, atrair o capital estrangeiro para o processo de acumulação que se iniciava. E Trotski viu claramente, na sua A Revolução Traída, que onde não se haviam desenvolvido forças produtivas suficientemente, a fim de criar uma sociedade bem abastecida, uma sociedade farta, era provável que houvesse uma recaída do sistema político socialista para os níveis de produção e desenvolvimento capitalistas correspondentes.

Norberto Bobbio, tal como Mattick, apontou a ilusão de considerar-se a experiência soviética como socialista. "E, nesse caso, a Revolução de Outubro teria sido uma revolução sem cabeça ou com uma cabeça diferente daquela que durante muito tempo e com tanta insistência lhe foi atribuída?" Se o socialismo verdadeiro nunca existiu na União Soviética, ele não poderia ter entrado em crise lá. O fracasso da "formação social soviética" não significa fracasso da construção do socialismo verdadeiro. "Quase todo o ocidente", continua Norberto Bobbio, "considera (o atual estado da União Soviética) um Estado socialista abortado ou jamais nascido".

Herbert Marcuse, em seu livro O Fim da Utopia, escrito em 1967, mostra-se convencido de que a tentativa de construção da utopia socialista fracassara na União Soviética. Nisto ele concorda com a quase unanimidade da Escola de Frankfurt. Estou de acordo com a afirmação de Marcuse, segundo a qual, "na situação atual, não existe uma área exterior ao capitalismo e que mesmo as sociedades socialistas e comunistas são hoje ligadas ao capitalismo num sistema mundial, presentemente unidos para a vida ou para a morte".

"É difícil fazer com que as pessoas compreendam que o que lá acontece não é absolutamente socialismo", repete Marcuse, coberto de razão, em seu livro O Fim da Utopia, de 1967.

O socialismo tornou-se um fardo insuportável para os oportunistas de esquerda que, desejosos de se tornarem confiáveis à burguesia nacional brasileira, jogam fora, sem conseguir criticá-los, a filosofia de Marx e o socialismo, num só golpe.

No seu debate de 1967 - O Fim da Utopia - Marcuse se refere à formação econômica e social soviética dizendo que o "o que lá acontece não é absolutamente socialismo", e nota uma convergência tal de interesses (entre Estados Unidos e União Soviética) em oposição aos (países) pobres que identifica os dois grandes estados acima de qualquer diferença entre sociedade capitalista e sociedade socialista."

E não é por coincidência que o autor anteriormente por mim citado, Paul Mattick, afirma que não existe país mais parecido com os Estados Unidos do que a União Soviética. Essa sua observação é da década de 60.

Igualmente, Jacques Ellul - O Inelutável Proletariado - previu a crise econômica na União Soviética e afirmou que a contradição fundamental - entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção - não se circunscreveria ao modo de produção capitalista como Marx determinara, mas que continuaria a atuar no socialismo soviético, provocando crises semelhantes às que produz sob o capitalismo.

Obviamente, o que Jacques Ellul afirma é verdade, porque para a União Soviética se transplantou a tecnologia capitalista e ali permaneceu incrustada às velhas reações capitalistas que se formavam no seio da sociedade arcaica russa.

Diz ainda Herbert Marcuse que Stalin defendeu este ponto de vista em seu primeiro trabalho teórico, o ponto de vista de que as crises do capitalismo seriam transferidas para a União Soviética.

A produção de carros, individualistas, egoístas, levam necessariamente à concentração da renda. Numa sociedade em que não há mercado, como se distribuir os carros que constituíam objeto emblemático da economia capitalista?

A produção de carros, transplantada para a União Soviética depois dos anos 50, foi distribuída através da força política, porque o despotismo do mercado, um mercado que exclui uma grande massa e fabrica uma falsa consciência aos excluídos, dando-lhes a crença de que não são capazes e merecedores de receber uma renda digna que lhes permita o acesso à compra dos produtos de luxo, que sempre moveram a economia capitalista.

Lá, na ditadura do mercado livre, obviamente os critérios da distribuição e exclusão foram políticos, realizados através do despotismo que prevalecia no capitalismo antes de a economia de mercado vir a se constituir. Isso ocorria no tempo do despotismo esclarecido, onde os processos de distribuição da riqueza pareciam-se muito com os de uma economia sem mercado que se instalava na União Soviética.

A partir de determinado momento, com o crescimento da produção, é evidente não haverá a possibilidade de se legitimizar a distribuição desses produtos, porque quando dois milhões de carros são produzidos não são destinados apenas àqueles que pertençam à nomenclatura e às burocracias civil e militar. No entanto, temos dois milhões de carros à disposição da sociedade. Quais os eleitos agora, se vinte ou trinta milhões se encontram no mesmo status, no mesmo nível de renda, também merecedores de participar como consumidores daquela produção?

Portanto, a insatisfação acompanha o transplante da produção capitalista, e ali se cria a cozinha egoísta, a habitação individualista, o carro, meio de transporte egoísta. Em 1953, foram grandes as discussões: dever-se-ia permitir a entrada dessas indústrias e, junto com elas, do egoísmo, do individualismo, da exclusão, da elite, ou priorizar apenas os meios de transporte coletivo e as formas coletivas de vida e de convivência?

Estou fazendo um resumo ligeiro de um trabalho que realizei em 1991, publicado na Revista do Sindicato dos Professores, e que agora atualizei, tendo em vista a tentativa de entender esta eleição que terminará domingo na Rússia.

Gostaria de apenas enfatizar a semelhança estrutural entre a tecnologia capitalista, que foi transplantada para lá, e a impossibilidade de construção de uma sociedade socialista, com base nesta tecnologia capitalista.

A tecnologia não é um produto exógeno como pensa Schumpeter, mas é sociomórfica, recebe a forma das relações sociais que produzem essa tecnologia.

A tecnologia capitalista foi, até 1929, voltada para os artigos de luxo e, depois disso, ela piorou, porque, a partir de 1929, volta-se para a produção destruidora, para a produção bélica, que é hoje o setor com o maior peso no PIB mundial - em segundo lugar vem o setor da cocaína, o setor do tráfico, o setor dos barbitúricos.

De modo que, então, a nossa cultura expressa na sua prática, nas coisas cujas palavras não somos capazes de escutar - as palavras das coisas - as suas prioridades reais: a guerra e os entorpecentes; o resto é produto de cabeças bem-intencionadas.

Ao desviar as forças produtivas para a produção bélica, a União Soviética, que, em 1917, tinha um PIB e uma renda per capita vinte e sete vezes menor do que a dos Estados Unidos, no final do processo, desviando forças produtivas potenciais para a defesa, para a guerra, para o espaço, entrou também nessa perigosa forma de dissipação.

No capitalismo, a indústria bélica, a dissipação, diz Keynes, é a única solução. "Penso ser incompatível com a democracia capitalista que o governo eleve seus gastos na escala necessária para fazer a grande experiência que demonstraria a minha tese, exceto em condições de guerra. Se os Estados Unidos se insensibilizarem com a grande dissipação decorrente da preparação das armas, aprenderão a conhecer sua força." afirmou Keynes.

A força do capitalismo, de acordo com Keynes, só pode vir dionisiacamente contrabalançada ou em coordenação e em conjugação com as forças destrutivas: Eros e Tanatos conjugados; e, agora, no capitalismo, com as forças destrutivas altamente potencializadas pelo lucro, pela mais alta taxa de lucro, que o Governo injeta e cria nesses setores destrutivos.

Ao se transplantar a estrutura do luxo e a estrutura da destruição das forças produtivas, aptas ao capitalismo, para o espaço soviético, elas se mostraram completamente incompatíveis numa sociedade democrata, distributiva, igualitária, que se pretendia, no sonho, construir na União Soviética.

Portanto, era de se prever que realmente a experiência fracassaria. Mas a experiência fracassou, porque, para a estrutura produtiva da sociedade soviética, para as relações de produção e para as relações sociais, transplantaram-se - como agora se transplantam - as relações culturais, impedindo, dessa forma, que o socialismo verdadeiro, democrático, fosse ali erigido.

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Suplicy. Fazendo soar a campainha) - Peço a V. Exª que finalize o seu discurso, Senador Lauro Campos.

O SR. LAURO CAMPOS - Agradeço a V. Exª pela compreensão, Sr. Presidente.

Portanto, era natural que o apelo à economia de mercado fosse feito e que, também, o caos ali se implantasse. Cada setor da produção, na falta do capital constituído, capital privado, foi apropriado pelo poder, pelo poder da nomenclatura, pelos militares que se apropriaram desses setores fundamentais, principalmente o setor bélico, fazendo uma transformação, a possível, para efeitos civis, em cada ponta do mercado, não apenas no mercado da prostituição, não apenas no mercado do jogo, mas também naquele mercado em que se adquirem as casas de aposentados, transformando o comprador em seu herdeiro, e esses herdeiros mandam matar os velhos aposentados para se apropriarem desses bens.

Agora, nos cinco meses deste ano, quarenta e seis diretores de banco foram assassinados. É a máfia que se apodera de todos os setores da economia, a chamada economia de mercado.

De modo que, dentro desse caos, é aconselhável que não haja um retorno prematuro de Ziuganov. Acho preferível estrategicamente que Ieltsin continue a se desmoralizar. Sei que o custo social da permanência de Ieltsin é enorme, é imenso, mas se, por acaso, o Partido Comunista fosse vitorioso, a ele seria imputada, dentro de pouco tempo, uma segunda derrota do socialismo na Rússia.

A minha esperança é que, ao se maturar e sedimentar essa experiência - e é isso que eles querem fazer ganhando tempo -, numa próxima eleição, passem a existir as condições fundamentais e indispensáveis para uma tentativa definitiva de reconstrução do socialismo ou qualquer nome que se queira dar a essa formação econômica, social, política e cultural - o nome da rosa não importa; importa a rosa, sua cor, seu perfume, sua textura.

Espero que se tenha consciência do que ali foi feito. Não há absolutamente nada a ver com a construção do socialismo, cujos ingredientes constituem a possibilidade de crítica, a livre imprensa, o debate, a democracia e o pluripartidarismo, como Rosa de Luxemburgo, entre outras pessoas, alertou, por volta de 1918, logo após a revolução.

Sr. Presidente, infelizmente, como o assunto era muito longo e o tempo escasso, seria uma mutilação maior do que a que pratiquei em meu texto, conceder um aparte em meio a esse caminho um tanto tumultuado.

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Suplicy) - V. Exª poderá continuar seu discurso em outra oportunidade.

O SR. LAURO CAMPOS - Sr. Presidente, gostaria muito de conceder o aparte aos dois nobres Senadores que os solicitaram, se não fosse abusar da paciência da Presidência nem descumprir o Regimento.

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Suplicy) - A Presidência poderia até ser tolerante, mas há Senadores inscritos e, se não lhes for dada a palavra, perderão esse direito nesta tarde.

O SR. LAURO CAMPOS - Peço desculpas àqueles a quem não pude, infelizmente, conceder o aparte.

Sr. Presidente, peço que seja dado como lido o meu pronunciamento, pois fiz um resumo do mesmo.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/07/1996 - Página 11320