Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA FOME E DA MISERIA NO PAIS, RESSALTANDO A MA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, FALTA DE EMPREGO, O NÃO-ACESSO A TERRA E AOS SERVIÇOS DE SAUDE.

Autor
Casildo Maldaner (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/SC)
Nome completo: Casildo João Maldaner
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIO ECONOMICA.:
  • REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA FOME E DA MISERIA NO PAIS, RESSALTANDO A MA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, FALTA DE EMPREGO, O NÃO-ACESSO A TERRA E AOS SERVIÇOS DE SAUDE.
Aparteantes
Lauro Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 23/07/1996 - Página 12871
Assunto
Outros > POLITICA SOCIO ECONOMICA.
Indexação
  • ANALISE, INDICE, POBREZA, FOME, MISERIA, RENDA MINIMA, BRASIL, NECESSIDADE, IMPLEMENTAÇÃO, PLANO DE GOVERNO, APLICAÇÃO DE RECURSOS, POLITICA SOCIAL, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, DIREITOS, ALIMENTAÇÃO, POPULAÇÃO CARENTE.

O SR. CASILDO MALDANER (PMDB-SC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, nobres colegas, vou tecer alguns comentários em relação às pessoas que não se alimentam o suficiente no Brasil e sobre os meios para resolver-se este tão profundo e angustiante problema que aflige milhões de brasileiros. Precisamos identificar quem são esses brasileiros, onde e como vivem, para que possamos proporcionar-lhes algumas soluções.

Diante da incidência da fome no Brasil, cabe perguntar: que valor tem uma vida humana em nossa sociedade?

Nos últimos quatro anos, a questão da fome veio à tona no País de maneira tão intensa que a conseqüência terá de ser a valorização da vida e o fim da miséria entre nós. Do contrário, será mais um reforço às crenças de fracasso que o País tem sobre si mesmo. Mas isso não será possível se os responsáveis pela condução das políticas sociais não tiverem como valor fundamental a preservação da vida em condições dignas para toda a população.

Cabe perguntar, diante dos números desencontrados, quantos são, na verdade, os que passam fome? Qual a origem de tanta miséria? E, mais importante: o que estamos fazendo para acabar com ela?

Os números são tão aterradores, que mais levam a um sentimento de impotência do que estimulam o desafio de vencer a fome.

Inicialmente, Srªs e Srs. Senadores, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA, estimou-se em 32 milhões os famintos do Brasil. Trinta e dois milhões de pessoas estariam abaixo da linha de pobreza. Trinta e dois milhões que não ingeririam o mínimo de calorias necessárias para se manterem.

Depois, chegou-se a um número menor: cerca de 17 milhões de brasileiros são miseráveis. Alguns, por absurdo que pareça, respiraram aliviados e chegaram até a comemorar esse "desconto" de quase 50% no nosso contingente de miseráveis.

Hoje, segundo a Avaliação da pobreza no Brasil pelo Banco Mundial, o número de brasileiros situados abaixo da linha da pobreza é de 24 milhões.

Trinta e dois milhões, dezessete milhões ou vinte e quatro milhões? Quanto é isso? O que isso representa? Trinta e dois milhões equivalem à população inteira do Estado de São Paulo; vinte e quatro milhões correspondem à soma da população do meu Estado de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Dezessete milhões equivalem às populações da Bahia e do Maranhão.

Caros colegas, visualizem esse contingente de pessoas famintas. Estou fazendo comparações em relação a isso. Poderemos até dizer que 24 milhões de pessoas equivalem à população da Argentina.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, um notório solitário, afirmou certa vez: "passou de três, é multidão". Penso que raciocínio parecido deve ser seguido quando se trata da fome.

Na mesma lógica, para evocar uma cena conhecida de muitos no premiado filme "A lista de Schindler", os sobreviventes do massacre oferecem ao protagonista o anel com a seguinte inscrição: "Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro". É um reconhecimento daqueles que, naquele contexto histórico, tinham condições de se reproduzir e de se manter enquanto povo, graças a uma coisa: estavam vivos!

O número não importa. Se há fome, o Governo deve fazer de tudo para combatê-la. Esta é a realidade.

Mas, para combater a fome entre nós, cabe indagar de onde vem tanta fome. Para responder a esse questionamento, devemos ter em mente o conceito de segurança alimentar que leva em conta se há ou não alimentos suficientes para toda a população sendo produzidos no País. A resposta de cientistas, empresários do setor agrícola e autoridades governamentais é positiva: sim, o Brasil produz o suficiente para manter sua população.

Numa enquete realizada pela revista Manchete Rural, foram ouvidos os maiores líderes empresariais do setor agrícola e eles foram quase unânimes em afirmar que a fome está mais ligada à baixa renda dos consumidores do que à falta de alimentos no mercado.

A Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, assegura que o Brasil possui tecnologia e terras para expandir sua agricultura, o que é uma verdade. E tal expansão pode atender não só ao aumento natural da demanda, como também ao incremento de consumidores, caso a população atualmente abaixo da linha de pobreza adquira meios para consumir mais alimentos.

Está claro, caros colegas, que a fome em nosso País vem da má distribuição de renda, da falta de emprego, do não-acesso à terra, do não-acesso aos serviços de saúde etc.

Para resolver a questão, precisamos saber onde estão e quem são esses miseráveis que freqüentam as estatísticas. Eles estão na zona rural do Nordeste, onde são 44% da população. Mas não só aí. Encontram-se também em Curitiba, em Porto Alegre, em Florianópolis, onde constituem mais de 7% da população. E aqui lembramos que a menor incidência de pobres em uma região não significa que a situação seja menos grave. Não significa isso.

A pessoa situada abaixo da linha de pobreza, homem ou mulher, está em uma família numerosa, é analfabeta ou freqüentou menos de quatro anos a escola, mora na periferia das cidades ou na zona rural e tem menos acesso aos serviços de saneamento do que os de maior renda. Tenha-se em mente, ainda, a particularidade de que as crianças são a grande maioria dessa população miserável.

Nem mesmo o novo relatório da Organização das Nações Unidas - ONU, que avalia o grau de desenvolvimento humano no País, pode tirar nossa atenção um só segundo dessa questão. Embora o relatório revele que alguns dos nossos Estados recebem uma boa pontuação, a grande maioria está entre o médio e o baixo padrão de desenvolvimento humano. E mesmo nos Estados em que esse padrão é mais elevado - inclusive Santa Catarina se encontra entre eles -, sabemos que, internamente, a distribuição dos benefícios não é equânime. Às vezes, é até mais cruel a disparidade entre aqueles a que nada falta e aqueles a que nada tem acesso.

Cabe analisar a ação do Governo para combater a fome entre os brasileiros e as políticas implementadas para resgatar a dignidade dos excluídos.

A maior política utilizada, segundo o Executivo, foi o próprio Plano Real que, reduzindo a inflação, favoreceu os mais pobres, porque estes aplicam a maior parte do orçamento familiar em alimentação e agora vêem corroídos com tanta rapidez seus parcos ganhos.

Não negamos o mérito que a estabilização dos preços tem, nem negamos que o fim do imposto inflacionário beneficia as camadas mais pobres. Entretanto, quem não tinha acesso a emprego antes, não passou a ter agora. Pelo contrário, com a retração da economia, diminuiu o número de empregos formais. Esta é uma realidade constatada no Brasil, inclusive o próprio Executivo a reconhece.

Devemos lembrar, também, que as pessoas situadas abaixo da linha da pobreza exigem respostas imediatas. Não têm o que esperar. É uma questão de sobrevivência, de saúde.

Neste sentido, não podemos negar, o Governo acenou com o Comunidade Solidária, criado justamente para dar essas respostas imediatas.

Entretanto, em seu primeiro ano, a atuação do Comunidade Solidária foi muito tímida - vários Senadores têm reclamado disso -, foi muito aquém das necessidades e alcançou resultados menos significativos do que programas semelhantes, executados nos anos anteriores nas áreas sociais. Penso, até, que o próprio Governo reconhece isso.

É preciso lembrar que o Comunidade Solidária não inovou, não criou novos programas; ele apenas "adotou" programas que há muito existiam nos ministérios da área social. Esses programas, uma vez selecionados, receberiam o selo do Comunidade Solidária e, como tal, passariam a ter tratamento prioritário.

Mas, pela execução dos programas e projetos, vê-se que tal adoção não foi tão benéfica.

O Tribunal de Contas da União (TCU), no Parecer sobre as contas do Governo relativas ao exercício financeiro de 1995, constatou o empobrecimento desses programas, quando comparados com o executado no ano anterior (1994).

Para se ter uma idéia, o TCU atestou a diminuição de mais de 20% nos recursos destinados aos programas voltados para a redução da mortalidade infantil; no apoio à educação fundamental, deixaram também de comparecer 20% dos recursos que haviam freqüentado o programa no ano anterior - aliás, isso fez com que o Governo acordasse e, neste ano, desse mais estímulo ao setor; a alimentação, por sua vez, emagreceu 6%; na geração de emprego e renda deixaram de ser empregados 40% de recursos; as crianças e adolescentes foram desassistidas em mais de 80% de recursos; o montante para o desenvolvimento urbano encolheu pela metade; no desenvolvimento rural foram investidos 70% a menos do que no ano anterior.

Isso está comprovado, o próprio Tribunal de Contas da União também levantou esses dados.

Revela-se, ainda, mais preocupante o quadro quando constatamos que dos mil e oitocentos Municípios identificados como alvo da Comunidade Solidária, apenas trezentos foram selecionados em 1995.

Poderíamos até ficar aliviados em saber que esse número de selecionados expandiu para mil e cem Municípios em 1996. Mas, como não houve um crescimento proporcional do Orçamento, voltamos a ficar preocupados. Esta preocupação é persistente.

Caros colegas, vemos pois que tais ações emergenciais necessárias não têm sido realizadas pelo Governo, nem na proporção nem na medida exigida.

Mas esta é a face mais imediata do combate à fome. O mais grave é verificar a ausência de medidas destinadas a acabar com a pobreza a médio e longo prazos.

Um quinto das crianças de 10 a 14 anos do Nordeste, a região mais pobre do País, nunca freqüentou a escola. Isso mostra que ainda estamos longe de universalizar a educação fundamental, instrumento que poderia contribuir para interromper o ciclo da pobreza.

É preciso criar um novo círculo, desta vez virtuoso, em vez de vicioso. Se a fome se perpetua, graças à desnutrição e a falta de educação das crianças nascidas nas famílias mais carentes, é preciso não só fornecer os alimentos, mas também associar os alimentos doados a uma educação para a saúde. E mais, é necessário incentivar os filhos de famílias mais pobres a freqüentarem a escola, inclusive com programas de transferência de renda às famílias dessas crianças.

Em alguns casos, isso vem sendo feito. Mas é muito pouco ainda. Somos incipientes nesse campo.

O Sr. Lauro Campos - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. CASILDO MALDANER - Ouço o aparte do nobre Senador Lauro Campos.

O Sr. Lauro Campos - Nobre Senador, V. Exª traz à baila, fundamentado com dados, este assunto, para mais uma vez alertar e apontar essas questões que constituem uma verdadeira tortura, se não um genocídio ou economicídio por que passa a sociedade brasileira. Gostaria de lembrar que deve haver alguma explicação para o fato de esses recursos apontados por V. Exª - 82% dos recursos destinados às crianças, de acordo com o Tribunal de Contas da União, 20% destinados à prevenção etc. - ficarem sem aplicação. De modo que não se pode dizer que o problema seja de escassez de recursos, porque mesmo quando os recursos são escassos, eles sobram, porque não há vontade política para utilizá-los. Parece-me que é preciso fazermos o diagnóstico do diagnóstico de nossas doenças. Estamos com um sistema político, um sistema econômico e um sistema social doentes. Do meu ponto de vista, os portadores particulares, individuais, das doenças são, na realidade, portadores das doenças do sistema. Muito obrigado a V. Exª.

O SR. CASILDO MALDANER - Acolho o aparte de V. Exª, Senador Lauro Campos, e apenas acrescentaria que, em função dos vazios, em função das menores aplicações em determinadas áreas, como na social, na geração de empregos, na própria agricultura, houve um desvirtuamento do Orçamento de 95 em relação a 94, em função, eu diria, do próprio Plano, porque a toda ação corresponde uma reação. Para manter a estabilização do Plano, o Governo teve de reduzir a aplicação nessas áreas para poder contornar a não-inflação, contornar uma certa estabilidade. Então, transferiu, automaticamente, pela política adotada, muitos recursos dessa área para o custo do dinheiro, para especulação, para manter os títulos da dívida pública. Para segurar o Plano, para segurar a inflação, uma parte grande da sociedade pagou um alto preço, para equilibrar. Se o Governo mantiver a política cambial e monetária nessa ordem, vamos perder muito no campo social, com um custo muito alto. É preciso equilíbrio. Não se pode aplicar o choque além da voltagem. Em Santa Catarina, a voltagem é de 220. Se se aplicar uma corrente maior que isso, não há resistência. É o que está acontecendo. Para manter o Plano em certos setores, prejudica-se outros.

Além de aplicar mais recursos nas áreas de educação, saúde e creche para as famílias mais carentes, é preciso melhor gerir os programas. Segundos os cálculos do Banco Mundial, seria necessário não mais que 1% do PIB para elevar os indigentes pelo menos para a linha da pobreza. Isso seria possível, claro, se houvesse um monitoramento capaz de identificar quem são e onde estão essas famílias, pois elas seriam os alvos preferenciais dos programas sociais. Segundo o Banco Mundial, a falta de direcionamento dos gastos na área social faz com que os mais necessitados não sejam beneficiados na medida adequada.

Se a maioria dos miseráveis no campo não tem acesso à terra, é preciso proporcionar-lhes não só a terra, mas também o insumo, a tecnologia, o saneamento e o crédito que lhes possibilite, com sua força de trabalho, produzir o suficiente para dar dignidade à própria família.

A experiência demonstra que as propriedades com menos de cem hectares são responsáveis pelo que vai para a mesa do brasileiro: cerca de 40% do arroz, 80% do feijão, quase metade da produção bovina e metade da produção de leite saem dessas pequenas propriedades. Isto é o que atesta a Embrapa. Já as microagroindústrias respondem por quase 40% do valor gerado por toda a indústria de alimentos e empregam mais da metade da força de trabalho. Por que não incentivar essa experiência?

Monitorar a pobreza; direcionar as políticas sociais para os mais necessitados; proporcionar acesso à terra para as famílias de trabalhadores rurais; investir maciçamente na educação básica de crianças e adolescentes; alimentar nossas crianças; criar uma ampla rede de creches para permitir maior inserção da mulher no mercado de trabalho. Essas são medidas simples que podem resolver em definitivo o problema da fome. Se essas medidas não são tomadas, cabe perguntar, mais uma vez, se a preservação da vida humana com dignidade é ou não um valor para este Governo.

Essas eram as ponderações que eu queria trazer na tarde de hoje aos colegas Senadores, para refletirmos, meditarmos sobre o incontável número de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza e que tem necessidade de emprego, de saúde, de todo tipo de assistência que cabe ao Governo proporcionar.

Os dados apontados pela Embrapa precisam ser examinados com carinho: as menores propriedades produzem praticamente 50% dos alimentos do Brasil; as microagroindústrias oferecem mais de 50% do número de empregos e levam à mesa dos brasileiros e também exportam cerca de 40% dos embutidos, dos produtos alimentícios industrializados no campo da alimentação.

Ora, é um caminho que dá para olhar com carinho. Isso não é conversa. São dados estatísticos que temos em mãos. Penso que com isto poderíamos nos sentar à mesa para buscar um entendimento maior, a fim de retirar esse número tão expressivo de pessoas que não participam com dignidade da mesa das decisões nacionais. Quer dizer, não participam com dignidade do Brasil, estão afastadas do processo, estão afastadas de nosso convívio no dia-a-dia, estão marginalizadas. Parecem que não vivem, não convivem, não se sentem felizes e nem podem estar.

Creio que nós, o Legislativo e o Executivo, nós todos, somos responsáveis pela busca de alguns caminhos. E os dados que estou elencando aqui condizem com a realidade levantada, aliás, pelo próprio sistema oficial organizado no Brasil.

Eram as considerações, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que eu gostaria de deixar nesta tarde, nesta segunda-feira, para reflexão de todos nós, do Governo, enfim, da sociedade brasileira.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/07/1996 - Página 12871