Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO CONTINUO DE DILAPIDAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFERICAS. NECESSIDADE DE MUDANÇA NAS RELAÇÕES ECONOMICAS DE EXPLORAÇÃO. O TRANSPLANTE DO CAPITAL EXTERNO PARA O BRASIL E SUAS CONSEQUENCIAS. VANTAGENS CONCEDIDAS PELO BNDES PARA A IMPLANTAÇÃO DE INDUSTRIAS ESTRANGEIRAS NO TERRITORIO NACIONAL.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ECONOMIA NACIONAL.:
  • REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO CONTINUO DE DILAPIDAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFERICAS. NECESSIDADE DE MUDANÇA NAS RELAÇÕES ECONOMICAS DE EXPLORAÇÃO. O TRANSPLANTE DO CAPITAL EXTERNO PARA O BRASIL E SUAS CONSEQUENCIAS. VANTAGENS CONCEDIDAS PELO BNDES PARA A IMPLANTAÇÃO DE INDUSTRIAS ESTRANGEIRAS NO TERRITORIO NACIONAL.
Publicação
Publicação no DSF de 20/07/1996 - Página 12808
Assunto
Outros > ECONOMIA NACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, EFEITO, PROCESSO, GLOBALIZAÇÃO, ENTRADA, CAPITAL ESTRANGEIRO, EXPLORAÇÃO, DESTRUIÇÃO, ECONOMIA NACIONAL.
  • CRITICA, VANTAGENS, BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E SOCIAL (BNDES), CONCESSÃO, EMPRESA ESTRANGEIRA, PREJUIZO, DESENVOLVIMENTO, INDUSTRIA NACIONAL.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há dois segundos fiz a minha inscrição para tentar fazer algumas elucubrações, alguma reflexão sobre os vários motivos - e ficamos perplexos diante dos seus aspectos protéicos, variados - que nos convocam à fala.

Gostaria, inicialmente, de recordar que uma economia dependente, hospedeira, subjugada, como são as economias brasileira e periféricas de um modo geral, sofre um processo contínuo de exploração e de dilapidação. E esse processo se manifesta de diversas formas. É tão interessante a maneira pela qual o pensamento dominante também nos influencia e nos cega, que adotamos mecanismos de diversas ordens: políticos, econômicos, financeiros e psicológicos, que nos tornam dominados. Passamos a entrar em relações sadomasoquistas - e isso é um discípulo de Freud que nos explica. Não são apenas relações individuais que adquirem essa perversidade sadomasoquista. Diz ele que também as relações sociais, numa economia dividida entre explorados e exploradores, adquirem esse conteúdo. Passamos a gostar de ser explorados; passamos a admirar os nossos exploradores; passamos a reverenciar a exploração que pesa sobre nós, que pesou sobre nossos avós e que pesará - se não mudarmos essas relações - sobre nossos filhos e netos.

Infelizmente, algumas cabeças que sabiam disso, que já tinham determinado essas relações e escrito sobre elas, como, por exemplo, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, que mostrou, em um de seus livros, chamado O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios, que no Brasil se constituía, por meio dessas relações implementadas pelo transplante de capital, que capital é poder sobre coisas e pessoas. E, sobre essas relações econômicas que se transplantaram para cá, após a 2ª Guerra Mundial principalmente, trazendo a tecnologia que foi tão louvada, Celso Furtado dizia que, a partir dos setores de ponta, haveria uma cascata tecnológica, que o mundo transplantaria para cá, o que iria revolucionar toda a sociedade, democratizar o Brasil e permitir que, como o seu mestre Raul Prebisch também dizia, se acabasse com a inflação. E que a tecnologia, ao capitalizar o campo, iria aumentar a produção e a oferta de produtos agrícolas, reduzindo e acabando com a inflação, e que também as relações sociais seriam harmonizadas por essa tecnologia. Mas aconteceu justamente o contrário: a inflação aumentou e dividiu mais a sociedade brasileira, em que nós, caipiras, dominávamos.

Em 1952, meu pai comprou um automóvel Ford zero-quilômetro em Belo Horizonte. Lá, havia somente três carros iguais ao dele. Havia também um Hudson e uns cinco Chevrolets numa sociedade tão pobre como aquela, em que os artigos de luxo, como o automóvel, eram raros. Lembro-me de quando meu pai comprou uma geladeira, em 1930, vários políticos que se transformaram em políticos nacionais - não vou dizer o nome dessas pessoas - foram lá ver a novidade.

Somos uma sociedade paupérrima e fomos dominados de repente, não porque quiséssemos, mas porque houve necessidade, devido ao capital acumulado e sobreacumulado nos Estados Unidos nessas indústrias de ponta, de carros, rádios, e, depois, de televisões e de computadores. Eram esses os setores que dominavam e que atraíam o capital e a tecnologia até os anos 30. Depois dessa época, o principal setor, o que dinamizou a economia capitalista do mundo, foi o bélico-espacial. O setor bélico recebeu, só nos Estados Unidos, em 1988, US$371 bilhões, uma vez que o setor de luxo entrara em crise em 1929. Imaginem que os Estados Unidos produziram 5,3 milhões de carros em 1929. Isso é uma maravilha: 27 milhões de carros circulando! Era o estoque de carros existente para uma população de 120 milhões. Uma verdadeira maravilha!

O crédito ao consumo havia se desenvolvido. Crédito que não existia no Brasil quando a indústria veio para cá. E a renda per capita havia também crescido ao longo do desenvolvimento dos Estados Unidos; e para lá não foi o capital estrangeiro em grande escala. O capital estrangeiro que foi para lá construir as ferrovias recebeu o calote, porque os Estados Unidos nunca pagaram a dívida. Como disse o Professor Arthur Schlesinger, um dos principais assessores do Presidente Kennedy: "os Estados Unidos agem como aquela prostituta, que, depois de ganhar muito dinheiro na sua juventude, já velha, resolve moralizar e fechar a zona". Então, na visão desse Professor, os Estados Unidos, depois de velho, obriga os pequenos, os pobres a pagarem a dívida externa, o que eles, Estados Unidos, jamais fizeram quando eram pequenos.

Lembramos, mais uma vez, o General Ulysses Grant, um herói estranho da Guerra de Secessão, que foi Presidente dos Estados Unidos e que dizia que esse país deveria continuar protecionista por mais cem anos porque o liberalismo é uma política que os Estados Unidos deveriam adotar depois que dominassem o mundo, como aconteceu com a Inglaterra.

O liberalismo é uma política adequada àqueles países dominantes, que precisam das matérias-primas do mundo, liberalmente abertas para eles, que precisam dos mercados para colocação de sua produção excedente. O liberalismo é uma política adequada aos ricos, aos advanced capitalists countries de hoje, aos ACCs de hoje, mas completamente equivocada quando aplicada à periferia. No centro, o tal do liberalismo é a manifestação da esperteza e da inteligência; na periferia, da burrice e da subserviência. Por isso é um artigo de exportação; por isso os Estados Unidos jamais puderam ser realmente liberais ou neoliberais, no sentido que hoje entendemos. Como um governo que gasta U$2 trilhões por ano pode ser neoliberal? Como pode ser ausente, gastando essa quantia por ano?

E o que acontece novamente agora, com essa nova inserção, com essa nova transformação do mundo? Algo muito parecido, sim, com aquilo que aconteceu depois da II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos, para ganharem a guerra, elevaram a sua dívida pública a 119,9% do seu PNB. Houve anos em que os Estados Unidos tiveram um déficit orçamentário de 39% do PIB. Quando a II Guerra Mundial chegou ao fim, os Estados Unidos estavam exaustos, já não podiam continuar a gastar para mover a economia interna. O que fizeram? Exportaram a dívida pública. O governo americano reduziu a sua dívida pública de 120% para 50% do PIB em sete anos. Por quê? Como é que conseguiram fazer isso reduzindo as suas despesas, reduzindo o seu déficit, sem provocar uma grande crise? Porque nós, periféricos, de novo, compramos no lugar do governo dos Estados Unidos, importamos bugigangas, queimamos as nossas reservas economizadas durante a guerra e recorremos, em 1948, já a um empréstimo externo de US$300 milhões.

Portanto, nós, a Argentina, o México, e a Europa - esta última, graças ao Plano Marshall - nos tornamos importadores dessa produção norte-americana, cujo mercado estava ameaçado porque o principal comprador, o governo norte-americano, esbarrara no teto a sua capacidade de compra, ao elevar "ao Himalaia" de 120% do PNB a sua dívida pública. Aumentamos, então, a nossa dívida externa juntamente com a Argentina para comprarmos dos Estados Unidos aquilo que o governo norte-americano já não podia comprar.

A nossa dívida externa é a dívida pública dos Estados Unidos externalizada. E agora, de novo, grande parte desse aumento da nossa dívida externa, que passou para US$150 bilhões, é justamente o resultado dessa abertura ao mundo. Abertura ao mundo para quê? O governo dos Estados Unidos, que chegou a ter um déficit orçamentário de US$320 bilhões, conseguiu, em quatro anos, reduzi-lo para US$116.9 bilhões, no ano passado. Então, de novo os Estados Unidos, o governo norte-americano, ciente de uma dívida pública de US$5 trilhões, não podendo continuar a ser o grande comprador que foi, o comprador do excedente - agora não só do excedente gerado internamente, mas também do excedente gerado no Japão, na Alemanha, na França -, passou a ser o grande mercado. Assim, os Estados Unidos, para absorverem esse excedente, passaram a ter uma dívida total de US$20 trilhões: famílias, empregos, governo federal, governos estaduais, dívida externa, empresas e famílias. Se acrescentarmos a isso juros de 6 a 7% ao ano, veremos que os banqueiros norte-americanos estão recebendo US$1,4 trilhão como remuneração desse imenso crédito acumulado no grande país cêntrico.

Portanto, eles têm que reduzir essa dívida. O caminho, novamente, é empurrá-la para nós, como aconteceu no pós-guerra. E logo em seguida, vêm as indústrias sobreacumuladas, as indústrias de luxo, que são transplantadas para a nossa pobreza. Aqui, essas indústrias violentam. É um verdadeiro estupro que se verifica quando um país pobre como o Brasil tem que criar um mercado para os artigos de luxo. O populismo é incompatível com o elitismo dessa produção, uma produção voltada para 10% da população, para 4%, que têm que ficar cada vez mais ricos, para, ao lado dos carros, comprarem computadores; ao lado dos computadores, telefones, desses enjoados que ficam aborrecendo a gente aí - essa telefonia infernal! -, e essas bugigangas todas. E aparecerão novas bugigangas. Isso não acaba nunca! Novas gerações de novas bugigangas encantadoras, sedutoras, lindas, maravilhosas!

Portanto, Sr. Presidente, Srs. Senadores, estamos em uma nova etapa, e é o próprio Governo que reconhece e alardeia isso. Só que agora não estamos mais como na época do Juscelino, em que a dívida externa não chegava a US$1 bilhão. A nossa hoje vai a US$151 bilhões!

O salário mínimo, em 1959, era cinco vezes maior do que o de hoje. Nós o achatamos para formarmos o mercado dos não-caipiras, dos espertos, dos milionários, daqueles que podem passear o seu narcisismo pelos países da Europa quantas vezes quiserem. E, depois de empossados na Presidência da República, trinta e duas vezes foram lá!

Se o Brasil hoje, em matéria de telefonia, possui dos velhos telefones que Pedro II trouxe, comprando lá do Graham Bell - esse nosso velho telefone, que algumas vezes é preto, outras vermelho, outras verde, só muda a cor -, só 7,2% da população brasileira pôde a eles ter acesso, de acordo com esclarecimentos do ex-Ministro das Comunicações ontem nesta Casa.

Agora, entramos com novas gerações, precisamos de capital estrangeiro e acreditamos que vamos comandar o processo. Não vamos, não. De novo, o capital estrangeiro só virá para cá escolhendo os setores que quiserem vir, na medida em que os interesses deles comandem o processo. Eles não vieram para cá produzir geladeira, televisão e automóvel para brasileiro, argentino e mexicano andarem de carro, assistirem televisão e tomarem água gelada. Vieram para cá para terem lucro e só virão para os setores lucrativos.

Agora, o que presenciamos é que no Paraná, em Juiz de Fora, em Betim, em diversos pontos do Brasil se instalam algumas novas linhas de produção de carros, de automóveis. Mas eles trazem capital para esses setores? Será que eles trazem algum capital que possa, pelo menos, compensar esse grande sucateamento de nossas indústrias nacionais? Será que eles vão poder fazer renascer novos Mindlins nas indústrias de autopeças que eles sucatearam? Será que eles vão compensar aquilo que fizeram com as nossas indústrias de tecidos, de calçados, etc.? Não, eles não trazem um tostão, exatamente como aconteceu nos anos 50. Isso o próprio Eugênio Gudin reconheceu em um artigo seu, ele que era ligado à Light, ele que era suspeito. Disse que, de cada dólar que entrou no Brasil, no Governo Juscelino Kubitschek, o Brasil colocou outro dólar. Ou seja, doou um dólar para cada dólar que entrou. De modo que o custo social desse transplante foi imenso.

Agora vemos, Sr. Presidente, que as indústrias que estão vindo para cá são financiadas pelo BNDES, os terrenos são doados pelas prefeituras. E elas fazem um leilão, o que aconteceu também nos anos 50: se o Brasil não der mais, iremos para a Argentina; se São Paulo não der mais, iremos para Minas; se Minas não nos oferecer mais benesses, iremos para o Paraná; se Belo Horizonte não oferecer mais vantagens, como aconteceu com a Fiat - 15 anos de isenção, terreno e terraplenagem no valor de bilhões e bilhões de dólares -, iremos para Juiz de Fora. Assim, vamos dando vantagens e mais vantagens. No fim, o BNDES apanha dinheiro do FAT, dos trabalhadores brasileiros, e entrega de graça para aqueles salvadores estrangeiros que nós, sadomasoquistamente, admiramos e louvamos.

Há o sofisma de agregação a partir dos diversos pontos de vista de uma sociedade: aquilo que é bom para mim poderá ser péssimo para a coletividade. Se sou banqueiro, quanto mais alta a taxa de juros, melhor para mim, mas pior para a sociedade, que não pode investir, que não pode consumir. Se sou exportador, quanto mais exporto, melhor, fico mais rico; mas se exportarmos todos os bens, os brasileiros passarão fome. Exportando 88% das laranjas, só ficamos com "avitaminose C", a gripe, enquanto os norte-americanos consomem 700 mililitros de laranja por dia. Se exportarmos nossos sapatos, como estamos exportando - e queremos continuar exportando mais -, será ótimo para os exportadores, mas péssimo para aqueles que têm que andar descalços.

Aquilo que é bom para um setor da população poderá ser péssimo para o outro; aquilo que é ótimo para o Governo, que vem aí com uma nova carga tributária, poderá ser péssimo para aqueles que vão pagar os impostos do seu salário já reduzido.

Portanto, quando aumentou a renda nacional no Brasil, o salário real de grande parte da população brasileira diminuiu. De modo que é preciso não confundir e lembrar dos sofismas de agregação que já sabiam os clássicos como Norton, Adam Smith. Keynes disse: "aquilo que é verdade a respeito de um fato particular pode não sê-lo do ponto de vista do todo".

Portanto, é preciso que tenhamos cuidado com essas nossas generalizações e totalizações, porque elas podem conter sofismas e engodos perigosos.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/07/1996 - Página 12808