Discurso no Senado Federal

O PROBLEMA DA FOME E DA MORTALIDADE DA POPULAÇÃO INDIGENA BRASILEIRA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • O PROBLEMA DA FOME E DA MORTALIDADE DA POPULAÇÃO INDIGENA BRASILEIRA.
Publicação
Publicação no DSF de 25/07/1996 - Página 13169
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • ANALISE, GRAVIDADE, PROBLEMA, FOME, MORTE, INDIO, PAIS, NECESSIDADE, RESPEITO, DIREITOS, DEMARCAÇÃO, PROTEÇÃO, TERRAS INDIGENAS, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, PRESERVAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a fome e a morte estão na imprensa diária de forma tão marcante, que corremos o risco de ficarmos insensíveis a esse fenômeno. Pela mídia, ficamos sabendo da fome de que são vítimas povos da África, como os de Biafra, de Serra Leoa, de Uganda ou de Ruanda. Somos até solidários e clamamos contra o preconceito racial e a intolerância religiosa, que levam à guerra -- e esta a milhares de mortos -- na Bósnia, no Líbano, em Israel ou na Irlanda.

Entre nós, temos conhecimento da fome que assola as populações nordestinas ou das periferias dos grandes centros. Somos até capazes de nos solidarizarmos com campanhas como essa contra a fome. Temos até mesmo a capacidade de nos chocarmos com episódios grotescos, como o de moradores de um lixão que aproveitavam restos humanos para matarem a fome.

Entretanto, Sr. Presidente, estamos cegos e surdos para a fome e a morte que atingem a nossa população indígena. Nem os jornais noticiam, nem a televisão cobre esse assunto. Não temos informações. Logo, para nós, o problema não existe. Ou talvez seja mais fácil nos solidarizarmos com a fome de longínquos povos africanos do que com a de vizinhos povos indígenas.

E é isso que acontece. Salvo algumas exceções -- como as notícias publicadas na revista IstoÉ de 19-7-95 e na Folha de S. Paulo de 7-6-96 --, a fome entre os indígenas não é objeto de notícia em nossa imprensa.

Mas a fome existe e é grande entre os povos indígenas. Em levantamento que abrangeu mais da metade das suas terras, constatou-se que, em mais de 80% delas, há fome. Seja essa leve, devido a causas sazonais, como ocorre em pouco menos de 30% das terras, seja mais ostensiva, com fome e carência alimentar, situação existente em mais da metade das comunidades.

Dessa maneira, vê-se que em menos de 20% das terras indígenas pesquisadas não há fome. Na totalidade das comunidades indígenas, a situação não será diferente.

Os dados são de um levantamento do Istituto de Estudos Sócio-Econômicos -- INESC, em associação com a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida; com o Projeto Estudo Sobre Terras Indígenas no Brasil, do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro -- UFRJ; e com a Associação Nacional de Apoio ao Índio -- Bahia, -- ANAÍ-BA. Com o nome de Mapa da fome entre os Povos Indígenas no Brasil, o relatório denuncia um aspecto bastante cruel das relações entre os brasileiros ditos civilizados e os povos indígenas.

Essa constatação fica mais evidente quando observamos a longevidade dos índios no Brasil. Mais uma vez, é preciso lembrar o quanto nos estarrecemos diante da expectativa de vida dos povos africanos: 40 anos em Serra Leoa ou 44 anos em Uganda.

Mas, no Brasil, a expectativa de vida dos indígenas não passa de 43 anos. Vinte e quatro anos a menos que a do brasileiro não-índio, que é de 67 anos. No Vale do Javari, no Amazonas, a "morte severina" dos índios chega aos 24 anos, idade inferior àquela em que morre de velhice ou de emboscada, antes dos 30, o retirante nordestino.

Ao analisar as causas, não se precisa ir muito longe: a terra.

No Nordeste, falta terra para os índios, premidos que foram pela sociedade branca para aldeamentos minúsculos ou para favelas à margem das cidades, como é o caso do povo Kariri-Xokó, em Porto Real do Colégio, Alagoas. Ou o caso dos pataxós, de Porto Seguro, reduzidos a artesãos sem poderem ao menos coletar matéria prima para seus produtos em sua antiga área, hoje transformada em parque nacional.

Também no Sul e Sudeste é a terra que falta para os tupiniquins e para os guaranis do Espírito Santo. No Rio Grande do Sul, são inúmeros os grupos que habitam acampamentos às margens das rodovias, como os guaranis e kaingangues.

No Centro-Oeste, em boa parte das vezes, os índios têm a terra. Mas essa terra ou foi invadida por criadores e fazendeiros, ou foi degradada pela extração da madeira e expulsão da caça. Os rios, por sua vez, foram assoreados pelo desmatamento ou envenenados pelos agrotóxicos das lavouras extensivas. Esse é o caso da maior parte das terras indígenas do Mato Grosso.

Aos índios resta a alternativa da semi-escravidão em fazendas da região, cedendo aos impulsos consumistas por nós transplantados para sua cultura. Ali, os jovens aceitam trabalhar sob condições degradantes para adquirir bicicletas, relógios, rádios e outros equipamentos que lhes causam fascínio. Outra alternativa é a morte, como é o caso dos índios Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, entre os quais se registraram duas centenas de suicídios em dez anos, entre 1986 e 1995. E, também aqui, a falta de terra é apontada como a causa desses suicídios.

No Norte, tanto faltam demarcar e homologar terras indígenas, como falta respeitar os limites dessas terras. Muitas terras não estão identificadas. Muitas das identificadas não foram decretadas. Há decretadas que não foram homologadas, assim como existem homologadas que não são respeitadas. Esse é o caso do Amazonas, de Roraima e de Rondônia, onde garimpeiros invadem as áreas indígenas, na febre do ouro.

Também os fazendeiros, com seus rebanhos, invadem, desmatam e inviabilizam a cultura de subsistência indígena, baseada secularmente na caça, na coleta e na pesca.

Não podemos esquecer os pescadores que, de forma predatória, invadem os lagos, que são as reservas de pesca. Em pouco tempo dizimam os cardumes, tornando inviável a subsistência dos índios ribeirinhos. É curiosa a situação de uma comunidade do Amazonas que se endivida com os regatões, versão ribeirinha dos famosos barracões. Uma vez endividada, adota métodos predatórios de pesca, para obter maiores resultados. Com ameaça à própria sobrevivência no futuro, pescam em grande quantidade e salgam o peixe para melhor conservá-lo até que venha o regatão. A ironia é que o maior motivo de endividamento é ... a compra do sal.

Mas não é nova a fome entre os índios. Tanto que a FUNAI, assim como Organizações Não-Governamentais ligadas à causa indígena, tem buscado contribuir com o chamado desenvolvimento econômico daqueles povos.

Dessa forma, identificam-se casos em que cooperativas foram fundadas, postos da FUNAI foram transformados em sedes de fazendas, máquinas agrícolas foram compradas, reses foram emprestadas para iniciarem criações de gado, comunidades foram financiadas por multinacionais para coletarem plantas de uso farmacológico, madeiras de lei foram vendidas para serrarias, e assim por diante. Muitos foram os "projetos econômicos" a que os índios tiveram acesso. Por que persiste, então, entre os povos indígenas, tanta fome?

A explicação é óbvia para a quase totalidade dos casos: todos os projetos foram fundados na lógica do mercado. De um mercado branco, "civilizado", capitalista, com vistas à acumulação.

Entretanto, a lógica dos indígenas continua coerente a seus princípios ancestrais seculares: são caçadores e coletores. Não são agricultores, não são pecuaristas, não são industriais. O financiamento para as roças comunitárias nos padrões "brancos" é aceito, às vezes, porque vem acompanhado de um subsídio enquanto a colheita não vem. Terminado o subsídio, terminou o interesse. Não há mais o que "colher" daquele projeto. Findo o apoio de uma multinacional para colher uma planta, com a ganância desperta e o consumismo entranhado, os índios vendem suas reservas para inescrupulosos madeireiros. Desonestidade dos indígenas? Não! Outro povo, outra cultura, outra lógica, outro raciocínio, outra razão. Nossos "padrões de mercado" não valem para esses povos. Para eles, mais vale presentear outros quando há sobra, ou festejar quando há abundância do que acumular. Fora disso, o excedente não tem função.

Mesmo com séculos de contato com o "civilizado", como é o caso de alguns povos do litoral, até hoje não houve um aprendizado que levasse o índio a conviver ou sobreviver em contato com o branco sem se anular enquanto povo, enquanto etnia, enquanto cultura. A aculturação prevista na política indigenista significa: "-- Deixe de ser índio e transforme-se em agricultor, pecuarista, pedreiro, marceneiro. -- Deixe de perambular e fique quieto numa aldeia."

Já para os povos que foram contatados há poucas décadas, não há espaço para aculturação, apenas para a morte. Seja a morte causada pela fome, seja pelas doenças "brancas", seja pelo alcoolismo, seja pela prostituição, seja pelo extermínio puro e simples, como nos massacres noticiados de ianomâmis e tikunas, em passado recente. 

Aliás, esses massacres a povos recém-contatados são constantes ao longo de nossa história, como nos informa, pelos seus livros, há algumas décadas, nosso ilustre par nesta Casa, o Senador Darcy Ribeiro.

Não há mais espaço, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, para se tratar o índio da forma como se vem tratando. A Constituição, com as devidas peculiaridades, estabeleceu critérios para uma cidadania indígena. E essa cidadania indígena passa pela demarcação e proteção de suas terras. E, mais que isso, reconhece a pluralidade étnica do povo brasileiro, ao assegurar aos indígenas o direito a uma organização social própria, assim como o direito a seus costumes, línguas, crenças e tradições. E, sobretudo, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Essas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas por eles habitadas em caráter permanente. São as terras utilizadas para suas atividades produtivas. São as terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar. São, enfim, Sr. Presidente, as terras necessárias à reprodução física e cultural, segundo os usos, costumes e tradições daqueles povos.

E não se venha dizer que tais dispositivos atendem a interesses estrangeiros, ou que proíbem a exploração dos recursos minerais ali encontrados. Primeiro porque essas terras são da União. Segundo porque a exploração dos recursos do subsolo é possível, sim, com a autorização do Congresso e, claro, desde que não signifique a depredação dos territórios indígenas a tal ponto que lhes ameace a própria sobrevivência.

Qualquer política que vise à proteção da vida dos índios, que assegure a reprodução física, social e cultural deles como povo deve levar em conta que eles têm garantida sua presença no futuro desta nação. Pois, apesar de quinhentos anos de políticas danosas, eles não só persistem em se manterem como povo, como, felizmente, podem contribuir para uma exploração mais equilibrada dos recursos naturais, como reclama, nesta virada de século, todo o planeta.

Vários projetos nesse sentido vêm sendo implementados e mantidos por instituições de pesquisa e de apoio à causa indígena. É o caso de Rio das Mortes, em Mato Grosso, onde, com o apoio da EMBRAPA -- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, o Projeto Jaburu busca preservar e aproveitar os recursos naturais do cerrado para o consumo interno dos xavantes. Suprida a necessidade interna, o excedente é exportado.

No Pará, há o Projeto Xicrin, onde, após serem expulsos os madeireiros que exploravam os recursos naturais de maneira predatória, foi implantado um plano de manejo sustentável dos recursos madeireiros. Aliado ao monitoramento da fauna terrestre e aquática e à movimentação da população no território regularizado, esse plano tem assegurado a auto-sustentação daquele povo.

Vê-se que, para funcionarem, efetivamente, os projetos de auto-desenvolvimento sustentado precisam levar em conta a garantia aos povos indígenas de controle sobre seus territórios. São também necessários o controle dos processos produtivos instalados, a valorização do conhecimento nativo sobre o meio ambiente e o respeito às formas de organização social.

O mais importante, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é nos darmos conta de que a fome dos índios é apenas a manifestação mais visível de um processo de destruição de nossos recursos naturais: o desflorestamento, o assoreamento e envenenamento de rios, a extinção de espécies silvestres, enfim, a destruição da maior riqueza, que é a biodiversidade localizada, por exemplo, na floresta amazônica. É essencial ter em mente que preservar as condições de vida com dignidade para os indígenas é também assegurar a nossa própria sobrevivência como nação. É assegurar o nosso futuro como povo. É ter garantida a tão propalada qualidade do meio ambiente.

Era o que tinha a dizer. Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/07/1996 - Página 13169