Pronunciamento de Benedita da Silva em 23/07/1996
Discurso no Senado Federal
SAUDANDO O INDESP, BRAÇO EXECUTIVO DO MINISTERIO EXTRAORDINARIO DOS ESPORTES, PELO TRABALHO QUE VEM REALIZANDO. REGOZIJO PELA PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NOS JOGOS PARAOLIMPICOS, A REALIZAREM-SE NO PROXIMO MES EM ATLANTA - ESTADOS UNIDOS. COMENTARIOS ACERCA DO PODER DA COMUNICAÇÃO, A EXEMPLO DA CENA MOSTRADA NA NOVELA ' REI DO GADO' DE UM SENADOR DISCURSANDO SOBRE REFORMA AGRARIA. IMPACTO RACISTA DA MUSICA 'VEJA OS CABELOS DELA', DE TIRIRICA.
- Autor
- Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
- Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
ESPORTE.
IMPRENSA.
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
- SAUDANDO O INDESP, BRAÇO EXECUTIVO DO MINISTERIO EXTRAORDINARIO DOS ESPORTES, PELO TRABALHO QUE VEM REALIZANDO. REGOZIJO PELA PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NOS JOGOS PARAOLIMPICOS, A REALIZAREM-SE NO PROXIMO MES EM ATLANTA - ESTADOS UNIDOS. COMENTARIOS ACERCA DO PODER DA COMUNICAÇÃO, A EXEMPLO DA CENA MOSTRADA NA NOVELA ' REI DO GADO' DE UM SENADOR DISCURSANDO SOBRE REFORMA AGRARIA. IMPACTO RACISTA DA MUSICA 'VEJA OS CABELOS DELA', DE TIRIRICA.
- Aparteantes
- Eduardo Suplicy, Lauro Campos, Lúcio Alcântara, Marina Silva, Ney Suassuna.
- Publicação
- Publicação no DSF de 24/07/1996 - Página 13058
- Assunto
- Outros > ESPORTE. IMPRENSA. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
- Indexação
-
- ELOGIO, ATUAÇÃO, MINISTERIO EXTRAORDINARIO, ESPORTE, INCENTIVO, PRATICA ESPORTIVA, PESSOA DEFICIENTE, DIVULGAÇÃO, COMPETIÇÃO ESPORTIVA, DEFICIENTE FISICO.
- ANALISE, PRIORIDADE, MINISTERIO EXTRAORDINARIO, ESPORTE, DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL, SOCIALIZAÇÃO, OPORTUNIDADE, JUVENTUDE, POPULAÇÃO CARENTE, APOIO, REALIZAÇÃO, OLIMPIADAS, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
- ANALISE, PODER, IMPRENSA, FORMAÇÃO, OPINIÃO PUBLICA, COMENTARIO, PROGRAMA, TELEVISÃO, ASSUNTO, ATUAÇÃO, SENADOR, DEBATE, REFORMA AGRARIA.
- PROTESTO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, MUSICA, CANTOR, COMPOSITOR, ESTADO DO CEARA (CE).
A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é minha intenção fazer alguns pronunciamentos que reflitam o acompanhamento que venho realizando com relação às políticas governamentais, ações e recursos dispensados ao Estado do Rio de Janeiro e também a outros Estados do País, que também acompanho, visitando pelo menos uma vez por ano. Como representantes das unidades da Federação, temos que conhecer a realidade dos outros Estados para poder ajudar, fazendo com que divulguem o que atribuímos ser positivo para o desenvolvimento de cada um.
Pela oportunidade desta ocasião, em que o espírito olímpico paira sobre todos nós, escolhi o Ministério Extraordinário dos Esportes e o trabalho que o Indesp, seu braço executivo, vem realizando. Um excelente trabalho. Pretendo manter aquilo que considero um dever do parlamentar, que é o seu espírito crítico, fiscalizador. Mas, também e igualmente, a coerência e o reconhecimento a tudo aquilo que de positivo está sendo desenvolvido pelo Governo.
Assim, sem nenhum constrangimento, embora não tenha procuração do Ministro Edson Arantes do Nascimento para fazê-lo, gostaria de tecer algumas considerações sobre o trabalho que S. Exª vem realizando à frente do Ministério Extraordinário dos Esportes, em especial do Indesp - Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto. Diferentemente do que pensam alguns, esse trabalho é muito sério e merece o apoio de todos, independentemente de simpatias pessoais ou injunções partidárias. É com esse espírito que venho à tribuna para falar dessas iniciativas.
Há pouco mais de um mês, o Brasil assistiu a cenas de alto impacto emocional, transmitidas do Rio de Janeiro pela Rede de Televisões Educativas e também por emissoras comerciais. Eram os II Jogos Brasileiros Paradesportivos, competição que reúne atletas portadores de deficiências: paraplégicos, deficientes visuais e auditivos, amputados e outros. Esses atletas deram a todos nós, considerados normais, uma comovente demonstração da capacidade humana de superar barreiras e vencer obstáculos.
Na verdade, competições desse tipo vêm sendo realizadas no Brasil há pelo menos três décadas, mas jamais tiveram uma repercussão à altura dos esforços dos participantes. A grande novidade dos jogos deste ano foi exatamente a maciça repercussão obtida junto ao grande público, e isso se deveu ao engajamento do Ministério Extraordinário dos Esportes, por meio do Indesp, que, além de entrar com recursos financeiros, obteve parcerias importantes, como o Governo do Estado do Rio de Janeiro, a Confederação Nacional dos Transportes - CNT, a Golden Cross, a Caixa Econômica e a Petrobrás. Foi também o Ministro Pelé quem convenceu artistas e atletas famosos e intelectuais a emprestarem sua imagem para a divulgação dos Jogos Paradesportivos, sem ônus para os cofres públicos.
No mês que vem, em Atlanta, o Brasil estará participando dos Jogos Paraolímpicos com uma delegação de 57 atletas, quando poderemos vê-los em ação por meio da Rede de Televisões Educativas. Oxalá as demais possam fazer coro a essa iniciativa.
O esporte para pessoas portadoras de deficiência é um dos principais programas do Ministério Extraordinário dos Esportes, seguindo uma filosofia que privilegia o chamado esporte socioeducacional. A idéia é que o Estado se afaste progressivamente do chamado Esporte de Alto Rendimento, deixando-o para as chamadas entidades de administração do desporto, que são as diversas federações e confederações, as quais devem conduzi-lo de acordo com sua capacidade, seus interesses e suas necessidades.
Cabe, então, ao Estado a utilização do esporte como veículo de uma ação socioeducacional destinada a levar alimentação, saúde, educação e cidadania aos grupos menos favorecidos de nossa sociedade, com destaque para crianças, adolescentes, idosos e pessoas portadoras de deficiência.
Foram essas linhas que levaram à criação do Esporte Solidário. Lançado em agosto último na Baixada Fluminense, região escolhida por ser uma espécie de vitrine das carências de nossa população urbana, o Esporte Solidário baseia-se em cinco pilares: reforço alimentar, reforço escolar, educação para a saúde , arte-educação e, evidentemente, esporte. A ênfase não é a construção de obras faraônicas, mas, antes, o aproveitamento de infra-estrutura já existente, por meio de parcerias com organizações públicas e privadas.
O programa Esporte Solidário já está em funcionamento em cinco Estados: Ceará (Fortaleza), Pernambuco (Recife), Rio Grande do Sul (Porto Alegre), Santa Catarina (Florianópolis) e Bahia (Feira de Santana). Até setembro, estará funcionando em Goiás, Amazonas, Rondônia, Piauí, Maranhão, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Paraná.
Também merece relevo o programa Esporte Educacional. O objetivo é difundir maciçamente, por intermédio das escolas, os benefícios que o esporte pode trazer à saúde física e mental da população.
Toda essa ênfase na área socioeducacional não significa, em absoluto, descaso para com o Esporte de Alto Rendimento, mesmo porque o Indesp é obrigado por lei a repassar, para essa finalidade, às unidades da Federação verbas oriundas da Loteria Esportiva. Além de patrocinar a participação de equipes de várias modalidades em competições de âmbito continental e mundial, em parceria com o Comitê Olímpico Brasileiro, o Indesp está apoiando, de várias maneiras, a participação brasileira nos Jogos Olímpicos de Atlanta.
Uma das ações mais importantes nessa área é a Casa Brasil, espécie de embaixada do esporte brasileiro durante os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Atlanta, com vistas aos jogos de 2004, outra parceria com o Indesp - Comitê Olímpico.
Eu poderia descrever várias iniciativas do Indesp no Rio de Janeiro e em outros Estados. Para esse seu trabalho profundo e diversificado pelo esporte em nosso País, é preciso que haja, sobretudo, uma contribuição, não apenas apoio político.
Por que venho à tribuna falar desse programa? Porque ele está levando oportunidades a jovens e adolescentes carentes da Baixada Fluminense, das favelas do Rio de Janeiro, oportunidades que resgatam, sem dúvida nenhuma, os talentos existentes nessas localidades, com capacidades de produzir e oferecer, dentro de suas aptidões, meios para que sejam aproveitados.
Sabemos perfeitamente que esse aprendizado ajuda no desenvolvimento neuropsíquico e, sem dúvida nenhuma, cria possibilidades para que esses alunos, quando do desenvolvimento desse projeto em escolas, tomando-os como centro de suas atividades, enriqueçam suas capacidades intelectuais e suas personalidades.
Tenho acompanhado o trabalho de organizações não-governamentais e, por isso, achei por bem vir à tribuna falar a respeito do trabalho que esse ministério tem executado.
Uma das formas encontradas, que tem dado certo, para tirar vários adolescentes da marginalidade, tem sido o trabalho cultural e o desportivo. E uma das preocupações que temos com o chamado poder paralelo é o fato de investirem nessas áreas, nas comunidades carentes. E, na medida em que o poder público começa a ocupar esse lugar, afastamos esse chamado poder paralelo dessas atividades e, ao mesmo tempo, damos oportunidades para esses jovens que lá estão.
Por tudo isso me congratulo com o trabalho que vem sendo realizado pelo Ministério Extraordinário dos Esportes, e os nossos votos de que seja concluída a maior parte das ações previstas para os próximos trinta meses. O Brasil, com certeza, vai lucrar muito; todos vamos lucrar; o Rio de Janeiro também vai lucrar; as comunidades faveladas das baixadas no Estado do Rio de Janeiro, quero crer em outros estados, irão certamente lucrar com essas medidas.
Mas é preciso também garantir rubricas orçamentárias e sabemos da dificuldade que esse Ministério tem tido nessa área, pois estamos acompanhando suas atividades. Quero dizer que inicio hoje esse compromisso de pronunciar-me a respeito dos investimentos que estarão sendo aplicados no Estado do Rio de Janeiro.
Escolhi, por razão do momento, o Ministério Extraordinário dos Esportes, mas quero crer que outros serão de minha preocupação e darei a este Plenário toda a contribuição possível para que, com transparência, possamos defender verbas para projetos em nossos estados. Acho perfeitamente legítimo buscar-se recursos para os estados, mas é preciso saber por quê, para quê, e trazer essa discussão para a tribuna é antecipar a discussão orçamentária, para que o Orçamento não seja apenas um instrumento de "politicagem" ou de "politiqueiros" ou um instrumento "eleitoreiro" ou eleitoral, mas que sirva, evidentemente, para respaldar financeiramente as iniciativas do poder Executivo, da União, dos estados e dos municípios.
Eu gostaria, antes de encerrar o meu pronunciamento, já que não foi possível fazê-lo anteriormente, conceder um aparte ao Senador Ney Suassuna, que gostaria de fazer uma referência à novela Rei do Gado. Sei que a censura não vale para ninguém e para nenhum momento. A liberdade é de extrema importância, disso nós sabemos, e por isso a temos buscado, mas queremos que a verdade possa ocupar o primeiro lugar.
A mídia tem um poder extraordinário, porque ela pode criar e cria conceitos, ela define comportamentos, ela dá diretrizes. O poder da comunicação em determinado momento da história brasileira tem sido maior que o poder político.
Sabemos que Benedito Rui Barbosa é um dos que têm levantado, no seu trabalho, temas altamente conflitantes. Se não há uma solução, pelo menos serve como debate nacional. Nesse momento, que estamos assistindo por intermédio da novela "Rei do Gado", é que a questão da reforma agrária passa a ter, por esse poder que é a comunicação, uma atenção.
Sabemos, porque já foi dito pelo Senador Eduardo Suplicy em aparte ao Senador Ney Suassuna, que aquele plenário vazio mostrado naquele momento, onde o Senador fazia discurso da tribuna e não era ouvido. Talvez a leitura feita pelo Senador Ney Suassuna não fosse aquela feita pelo Senador para milhares e milhares de cidadãos telespectadores. Talvez num alcance maior do que verdadeiramente temos atingido desta Tribuna do Senado Federal da República. Naquele momento, com os olhares voltados para a televisão, tenho certeza de que perpassou, naquele discurso e na interpretação do ator, um conteúdo invejável da realidade brasileira, levando às lágrimas não apenas o ator, na sua representação, mas muitos que estavam atentos àquele capítulo. Estava assistindo, por contingência de um repouso forçado pela hepatite, e vi como ele chegou às lágrimas. Mas percebi também que muitas das vezes temas que trazemos para esta tribuna não têm a repercussão devida, por incomodar ou ferir interesses ou por não interessar, naquele momento, à mídia.
Sabemos disso tudo quando ocupamos a tribuna, mas sabemos também que a realidade dura de ver uns conversando, outros dormindo, outros lendo jornais e outros saindo, na medida em que o ator falava, é uma verdade lamentável que acontece no nosso cotidiano real. Mas nem por isso deixamos de cumprir com a nossa tarefa, porque entendemos que a política não se exerce pura e simplesmente no momento em que estamos neste plenário.
Ela ocupa, sem dúvida nenhuma, de 12 a 14 horas da nossa atuação, pois o nosso trabalho não é apenas em plenário, como também não se encerra quando se encerra a nossa sessão. Temos uma demanda enorme, e exatamente por isso é que precisamos desse chamado poder da comunicação, não para promover individualmente qualquer um de nós, mas para repercutir a realidade que vivemos dentro e fora do plenário. Sem dúvida alguma, Benedito Rui Barbosa merece o nosso agradecimento por colocar um tema de grande dificuldade para ser debatido neste Congresso Nacional, no Senado Federal ou na Câmara dos Deputados.
Sr. Presidente, a reforma agrária não é um tema apenas para os partidos políticos, para o Congresso Nacional e para os sem-terra, agricultores, fazendeiros ou rei da soja. A reforma agrária é um tema para ser desenvolvido pela Nação brasileira, não apenas pela necessidade que temos de reforma agrária, mas porque precisamos não inviabilizar as iniciativas que estão sendo tomadas.
Preocupa-me, sem dúvida nenhuma, ouvir alguém dizer que as infiltrações existentes vão desqualificar o movimento. O Movimento dos Sem-Terra é um movimento organizado desde aquele que está com a sua enxada numa lavoura até os que freqüentaram as universidades. Sem dúvida nenhuma, é preciso encontrar harmonia entre os sem-terra, os agricultores e os fazendeiros e, nessa harmonia, se possível, um caminho para a solução da tragédia.
Tudo isso foi possível ser abordado ainda hoje nesta Casa, em aparte ou como faço agora, porque tivemos o meio de comunicação enfatizando numa novela esse tema. Ao fazer a leitura do poder da comunicação, reportei-me a outra notícia também alvo de críticas, que, estarrecida, pude ler. Como sempre, há uns contra, outros a favor.
Sr. Presidente, como sei desse poder da comunicação, eu queria dizer, desta tribuna, que o nosso queridíssimo Tiririca, que hoje está vendendo como água seus discos, equivocou-se quando, também pelo poder de comunicação que exerce, colocou uma música que, sem dúvida nenhuma, por um lado, tem apoio daqueles que dizem que é radicalismo de um movimento negro ou que é pura e simplesmente uma questão de um jeito carinhoso do Tiririca tratar a sua neguinha.
Quero aqui dizer que essas palavras têm um poder altamente discriminador. Podemos até achar graça, mas só quem tem consciência é que sabe perfeitamente que o poder da comunicação leva a que se reproduza aquilo contra o que, anos a fio, estamos lutando e que a nossa Constituição diz que é crime inafiançável.
Não é nenhum radicalismo, não é nenhum sectarismo. Tanto não é que é duro repetir estas palavras, mas eu o faço desta tribuna, porque aqui detenho - por segundos, mas detenho - um certo poder de comunicar-me e - por que não? - de reivindicar. E digo que esta música "Veja os Cabelos Dela" tem uma letra altamente preconceituosa.
Ela diz:
"Alô, gente, aqui quem fala é o Tiririca.
Eu também estou na onda do axé music. Quero ver os meus colegas tudo dançando.
Veja, veja os cabelos dela, parece bombril de arear panela.
Quando ela passa, me chama a atenção, mas seus cabelos não têm jeito não.
A sua catinga quase me desmaiou. Olha, eu não agüento seu grande fedor.
Veja, veja os cabelos dela, parece bombril de arear panela.
Eu já mandei ela se lavar, mas ela teimou e não quis me escutar.
Essa nega fede, fede de lascar. Bicha fedorenta, fede mais que um gambá.
Veja, veja os cabelos dela.
Como é que é? A galera toda aí com as mãozinhas para cima.
Veja, veja os cabelos dela.
Bonito, bonito! Ai, morena! Você, garotona. Veja, veja os cabelos dela."
Sr. Presidente, sem nenhum radicalismo, confesso que tenho dificuldade. Sou uma mulher consciente, tenho orgulho da minha raça, orgulho do meu País, orgulho de ser brasileira. Quero crer que o Tiririca não tem essa consciência. Ele é apenas um instrumento desse inconsciente com o qual convivemos naturalmente na sociedade brasileira. São músicas, palavras, gestos, mas nada disso tem importância, porque já convivemos naturalmente com essa situação.
Portanto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, essa letra não passa de radicalismo de gente negra. Para Benedita da Silva, a letra dessa música tem muito a ver com o racismo que está introjetado na sociedade brasileira.
O Sr. Ney Suassuna - Permite-me V. Exª um aparte?
A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.
O Sr. Ney Suassuna - Senadora Benedita da Silva, V. Exª aborda um tema que realmente é muito complicado em nosso País. Quase sempre se diz que não há racismo no Brasil, mas quando se ouve uma letra como essa percebe-se que o racismo existe disfarçadamente. Diz-se que esse é um jeito de o Tiririca se dirigir à sua morena, mas nunca ouvi alguém falar que a pessoa amada tem mal cheiro. Isso parece modus in rebus com o que eu falava hoje em relação às novelas de televisão, nas quais sempre o político e o empresário são corruptos ou ladrões. Essas coisas são colocadas nas cabeças das pessoas e, com o tempo, acabam parecendo normais. V. Exª está coberta de razão. Fica parecendo que isso é normal e que somos radicais quando reclamamos, como no presente caso, em que V. Exª faz a sua reclamação, que penso ser justíssima, ou no caso em que fiz uma reclamação sobre o que é dito de forma genérica. Fala-se como essas coisas fossem normais e naturais. Não são normais nem naturais. Temos sempre que procurar ver as exceções e não permitir que coisas assim sejam ditas, principalmente por aqueles que têm a mente ainda muito verde, os jovens, que vão absorvendo e achando que isso é normal. Isso não é normal. Solidarizo-me com V. Exª.
A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª.
O Sr. Lúcio Alcântara - V. Exª me concede um aparte?
A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo aparte ao nobre Senador Lúcio Alcântara.
A Srª Marina Silva - V. Exª me permite um aparte?
O Sr. Lúcio Alcântara - Senadora Benedita da Silva, vou ser muito breve, mesmo porque V. Exª tem toda a razão. Dizer que se quer emprestar a isso um sentido carinhoso é muito fácil para as pessoas que estão envolvidas com o problema. O Tiririca começou como palhaço numa pizzaria vizinha a minha casa. Então, conheço a evolução artística dele. Ele talvez seja uma pessoa realmente despreparada, talvez não tenha nem consciência do que está fazendo. É claro que, de maneira nenhuma, isso elimina a ofensa, porque nada pode justificar a utilização daquelas palavras. V. Exª própria disse que o Tiririca talvez não tenha nem consciência disso, até porque se quer banalizar essas coisas como se, banalizando, fosse eliminada a ofensa, tornando isso uma coisa trivial, comum, incorporada à nossa cultura. Não podemos aceitar isso, porque não é compatível com uma sociedade democrática que aspira à justiça e ao respeito às características de cada um de pensamento, sexo, comportamento, raça e tudo o mais. O Brasil muitas vezes é decantado como um país onde essas diferenças não são tão brutais, como são, por exemplo, nos Estados Unidos. Mas elas existem, disfarçadas, às vezes ostensivas, às vezes veladas. O Tiririca, quando cantou essa música, com o sucesso que ele tem agora, com o número de discos vendidos, terminou revelando isso. Então, o pronunciamento de V. Exª é justo, correto e cabível, até porque V. Exª demonstra compreensão com as limitações dele, que é um artista de sucesso, mas um homem comum, uma pessoa simples. Talvez ele não tenha nem se dado conta do conteúdo disso, além da troça, da brincadeira, da galhofa ou até desse sentido carinhoso que ele afirmou de público que queria emprestar a essa música. V. Exª traz um assunto sério que nos deve levar a refletir e o Tiririca a rever o que fez. Há muitas maneiras de alegrar o nosso povo, sem que isso implique em diminuir ou desqualificar os outros.
A SRª BENEDITA DA SILVA - Obrigada pelo aparte. Nobre Senadora Marina Silva, concedo-lhe o aparte.
A Srª Marina Silva - Senadora Benedita da Silva, V. Exª dizia que tem dificuldade de repetir a letra da música do Tiririca. Imagino que deva ser difícil mesmo, porque é uma peça artística carregada de preconceito, e de preconceito contra ele mesmo, Tiririca, pela sua origem e a origem das pessoas com as quais ele convive. Infelizmente, esse preconceito está no inconsciente da sociedade brasileira, até mesmo daqueles que sofrem o preconceito. Muitas pessoas da nossa cor também se divertem com esse tipo de música. Existe um mercado para ela. O que me entristece não é que um indivíduo produza isso, mas que milhões de indivíduos consumam esse tipo de arte. Isso é que é lamentável. É o empobrecimento da nossa cultura, é a falta do nosso referencial, pois, segundo os dados do IBGE, 40% da população do Brasil é de origem negra. Eu me sinto muito orgulhosa, como V. Exª, de ter essa origem. Meu pai descende, pelo seu lado materno, de português legítimo e, pelo seu lado paterno, de negro legítimo. Com a minha mãe ocorre o contrário: do lado materno, negro legítimo e, do lado paterno, português legítimo. Nasci esta mistura e tenho muito orgulho de me sentir negra, porque nasci da cor do meu avô, da minha vó e do meu pai. Milhões de brasileiros precisam aprender a gostar da nossa cultura, da nossa raça. As referências feitas na música de Tiririca, infelizmente, encontraram guarida há muito tempo nos livros didáticos. Como professora, identifiquei em inúmeros livros manifestações de preconceito contra os negros, pois o negro é sempre aquele que toma conta do curral, é sempre aquele caboclo que serve de piada para os netos do fazendeiro. Essa cultura reproduz-se de uma forma perversa como se esses cidadãos brasileiros não merecessem respeito pela sua beleza, pela sua alegria e pela sua contribuição intelectual, que maior não é porque não temos acesso aos meios de produzir conhecimento. A maioria dos empobrecidos e dos analfabetos são os negros. E a nós cabe a pecha de menos inteligentes por não termos acesso ao saber sistematizado, em função do processo de discriminação que nos foi imposto desde o período da ocupação deste País, quando os negros de forma perversa foram trazidos para cá como mão-de-obra escrava. Nem donos de si mesmos eram. Lamento que uma pessoa do povo - e fico feliz que ele esteja fazendo sucesso - como é o Tiririca não tenha tido consciência e que aqueles que produziram seu disco não tenham tido o devido cuidado. É lamentável que se estimule o mercado a vender preconceito. Lamento por isso. Parabenizo V. Exª por estar fazendo um discurso sem demonstrar raiva ou depreciar a figura do Tiririca. Devemos ter cuidado para que o Tiririca, por ser um cantor popular cujas brincadeiras agradam as pessoas humildes, venha também sofrer preconceito por essa sua condição. Temos que apontar o problema para que Tiririca repense e refaça a sua arte. Observo que o preconceito na música, na arte, não se dá apenas com relação aos negros. Infelizmente, a nossa cultura ocidental, quando utiliza a arte como estímulo ao ser humano, muitas vezes procura mais o lado triste do que o lado alegre mesmo do amor. Quantas não são as músicas que fazem sucesso falando daquelas mulheres que são acusadas de traidoras ou falando de assassinato ou de acontecimentos dolorosos? Manifestações de preconceito são cantadas e decantadas em versos, prosas e rimas sejam elas pobres ou ricas. Muito obrigada.
A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª.
O Sr. Eduardo Suplicy - V. Exª me permite um aparte?
A SRª BENEDITA DA SILVA - Com prazer ouço V. Exª.
O SR. Eduardo Suplicy - Nós, os Parlamentares, temos a atribuição constitucional de legislar, de fiscalizar, mas sobretudo somos representantes do povo. Fomos eleitos para expressar aquilo que aqueles que nos elegeram gostariam que disséssemos. Somos porta-vozes de seus sentimentos. Nesta tarde V. Exª exerce plenamente essa função. Expressa aquilo que tantas pessoas no Brasil gostariam de estar dizendo. Foi para isso que a elegeram Senadora, pelo PT do Estado do Rio de Janeiro, porque V. Exª, em todas as ocasiões, percebendo que houve qualquer coisa que possa caracterizar algo ofensivo ao homem negro, à mulher negra, vai à tribuna e fala com a delicadeza que está utilizando, com o mesmo respeito que expressa neste momento pelo cantor Tiririca, como falando a um companheiro do PT. Quem sabe até seja. Não sei. Acontece que em São Paulo uma outra composição, que me parece não ter caráter ofensivo, a música "Florentina", foi escolhida - sem guardar relação com a citada por V. Exª - como uma possível música para a campanha de Luiza Erundina. V. Exª falou hoje como que chamando a atenção de um companheiro, possivelmente simpatizante, até, do nosso partido, dizendo: "Olha, neste caso, você errou. Neste caso, você está nos ofendendo. Neste caso, você está ofendendo a mulher negra", porque não é assim que se trata uma companheira na luta fraterna que precisamos ter para superar todos os traumas, todas as formas de discriminação que caracterizaram nossa história. Cumprimento V. Exª pela forma como chama a atenção para o episódio. E gostaria também de observar algo a respeito da novela "O rei do gado", que V. Exª trouxe de novo à discussão. É interessante que em todos os lugares por onde passo agora, volta e meia alguém me diz que está nos olhando pela TV Senado: no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros lugares. Mas aqui agora o que estamos falando, aquilo que V. Exª está expressando sobre Tiririca alguém está olhando - quem sabe até o Tiririca, e seria bom que ele estivesse ouvindo. Penso que V. Exª se pronunciou positivamente no tocante àquilo que foi passado na novela "O rei do gado", como uma advertência ao Senado Federal. Quando um senador aborda as questões sobre, por exemplo, a necessidade de se fazer a reforma agrária, e o faz com propriedade, e, de repente, aqui outros senadores não prestam muita atenção, isso é algo que deveria ser levado em conta por todos nós, Srs. Senadores. Espero, portanto, que haja esse efeito positivo, inclusive fazendo o Senado reagir positivamente a crítica tão bem formulada naquele episódio.
O Sr. Lauro Campos - Permite-me V. Exª um aparte?
A SRª BENEDITA DA SILVA - Ouço com prazer V. Exª.
O Sr. Lauro Campos - Nobre Senadora Benedita da Silva, a maior parte dos apartes que V. Exª recebe são de companheiros seus do Partido dos Trabalhadores. Cada cabeça é uma sentença. Cada um de nós vê o problema - tão bem tratado pela sua sensibilidade na tarde de hoje - de uma maneira. Eu, por exemplo, me identifico com esta consciência de que querem desprezar, querem depreciar uma raça para melhor explorá-la. Para mim isso é o ponto nodal, é o ponto fundamental dessas tendências que sempre se perpetuam na sociedade brasileira de marginalizar e de desprezar a raça negra ou os outros contingentes tidos como não-brancos. Essa discussão me traz à memória uma tradução que fiz quando tinha dezoito anos de idade, de um livro chamado The Mind of the Primitive Man, do antropólogo Franz Boas. Traduzi esse livro e nele aprendi muita coisa, porque Franz Boas, ao contrário do Tiririca, afirma que existem diversas características na raça negra que são sintomas, que são sinais de uma superioridade de raça. Se o Tiririca se refere aos cabelos dos negros, que ele chama de "Bom bril", o Franz Boas afirma que os negros são destituídos de pelos no corpo, ao contrário dos brancos, dos dolicocéfalos, que são muito mais peludos e nesse aspecto deveriam ser considerados mais próximos dos pré-humanos. E diversas características o Franz Boas vai mostrando; através delas, traços de superioridade do negro. Nunca tive dúvida disso. Nunca tive dúvida de que, se houvesse uma raça superior - penso que não há, pelo menos socialmente superior - demonstrada pela sua história, pelo seu sofrimento, pela sua capacidade de sobreviver, essa raça seria, sem dúvida, a raça negra. Em 1958, eu estava na Itália, fazendo um curso, e lá havia uma campanha política. Reuniram-se grupos para debater os diversos temas e num deles, onde havia umas 15 pessoas, falava uma figura aparentemente bíblica, cabelos brancos e muito motivado pela sua fala. Ele defendia o racismo, defendia a superioridade de raças, era uma pessoa engajada nas idéias nazistas, de Gobineau etc. Fiquei tão extasiado, que ele olhou para mim e disse: "O senhor concorda comigo, não?" Eu disse: "Não, senhor, não posso concordar com o senhor. Não posso concordar porque eu também sou negro." E ele: "Ah, mas o senhor não é negro, o senhor é branco." Eu falei: "Não, senhor. O senhor está enganado. Eu sou negro, sou brasileiro e, se suas idéias de superioridade de raça vencerem, serei condenado à morte, ao extermínio. Então, não posso concordar com idéias cuja vitória significaria a minha derrota." Nesse sentido também tenho algo de comum que nos une, talvez inconscientemente, que nos fez procurar o mesmo partido para ali podermos expressar os nossos sentimentos e as nossas idéias comuns.
O SR. PRESIDENTE (Levy Dias) - Senadora Benedita da Silva, a Mesa pede licença a V. Exª para informá-la de que dispõe, ainda, de dois minutos para concluir os seus 50 minutos de oratória.
A SRª BENEDITA DA SILVA - Quero agradecer aos aparteantes, Srªs e Srs. Senadores, e dizer que é com muita alegria - e não poderia ser diferente - que recebo o carinho com que o Plenário tem tratado essa difícil questão. Não queremos, de forma alguma, tocar nesse assunto, porque ele, de fato, nos incomoda.
Não sei se o Tiririca, Senador Eduardo Suplicy, vai assistir ao meu pronunciamento na TV Senado, mas quero dizer-lhe que me orgulho dele, por ser um homem simples, que faz sucesso, trazendo, por intermédio da música popular brasileira, alegria aos nossos corações, e por ter tomado conta das crianças, dos idosos e de todos nós com a sua belíssima interpretação de "Florentina". Faz sucesso esta música porque fala ao nosso coração, fala do dia-a-dia, do que sentimos, daquela dorzinha de cotovelo, de tudo o que é do ser humano. Tiririca merece todo o nosso apoio. E quero que ele faça realmente sucesso, para que a nossa representação caipira seja verdadeiramente aquela que está na disputa com outros, fazendo da música popular brasileira o nosso hino, o hino da nossa Pátria.
Queremos que Tiririca seja sucesso, porém, quero pedir a ele que, por favor, não contribua de forma alguma com estereótipos, com o preconceito, com o racismo que está ocultamente introjetado em cada um de nós. Peço, sim, que faça da sua música uma bandeira para libertar os oprimidos, os que não têm vez e voz e para que os caipiras, os negros, os pobres, as mulheres, todos nós, possamos nos orgulhar de sermos o que somos.
Muito obrigada.