Discurso no Senado Federal

UTILIZAÇÃO ARBITRARIA DAS MEDIDAS PROVISORIAS.

Autor
Ney Suassuna (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PB)
Nome completo: Ney Robinson Suassuna
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PODERES CONSTITUCIONAIS.:
  • UTILIZAÇÃO ARBITRARIA DAS MEDIDAS PROVISORIAS.
Publicação
Publicação no DSF de 30/08/1996 - Página 15184
Assunto
Outros > PODERES CONSTITUCIONAIS.
Indexação
  • CRITICA, ABUSO, EDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), EXECUTIVO, USURPAÇÃO, COMPETENCIA LEGISLATIVA, CONGRESSO NACIONAL, DESEQUILIBRIO, EXERCICIO, DEMOCRACIA, PAIS.
  • COMENTARIO, APRESENTAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, CONTENÇÃO, ABUSO, EDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), PAIS, MANUTENÇÃO, INDEPENDENCIA, PODERES CONSTITUCIONAIS, ESPECIFICAÇÃO, LEGISLATIVO.

O SR. NEY SUASSUNA (PMDB-PB. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste período de mudanças estruturais profundas que o Ocidente está enfrentando no relacionamento econômico entre países e dentro dos países, existe uma contrapartida política constante. O processo chamado de globalização pressupõe a existência de um sistema político representativo, baseado no voto e no livre funcionamento do Congresso Nacional, ou do Parlamento, conforme a cultura de cada Nação.

O sistema de pesos e contrapesos, inaugurado pela democracia norte-americana, não permite que um único Poder tenha a capacidade de decidir, de maneira hegemônica, sobre determinado assunto. E se ocorrer um confronto a respeito de matéria relevante, o Poder Judiciário soluciona a controvérsia. Essa é a norma em todos os países democráticos do mundo.

Na Europa, o sistema de governo predominante é o parlamentarismo. O primeiro-ministro é a expressão da maioria eventual, criada por condições político-partidárias ou situações externas. É notável o exemplo inglês na Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill foi um excepcional e combativo Primeiro-Ministro, quando se tratou de fazer a guerra ao nazismo. Ele conduziu os exércitos aliados, tomou providências, admitiu e demitiu, fez gastos militares, tudo com o consentimento do Parlamento. Terminado o conflito, o eleitor inglês optou por outra fórmula. Churchill voltou para casa. Perdeu o Poder.

Nos Estados Unidos, o Presidente pode fazer a guerra nuclear - pode até explodir o mundo -, desde que obtenha aprovação do Congresso. É o homem mais poderoso do mundo, capaz de exercer a sua influência sobre a mais distante das Nações, mas não pode dar um único passo sem o consentimento da maioria do Parlamento. Não existe, no sistema democrático, a possibilidade do Poder Executivo, por intermédio do presidente, impor soluções e definições ao seu país.

Tudo deve ser discutido, negociado e votado dentro do Congresso Nacional, nas duas Casas - Câmara e Senado. Essa é a norma básica da convivência harmônica, pacífica e legítima entre os Poderes da República. Quando ocorre de um Poder se colocar em posição de impor suas decisões sobre os outros dois, a estabilidade democrática fica em situação crítica. Usualmente, a prevalência de um Poder sobre os demais resulta na ditadura, seja civil ou militar. Mas pode ocorrer um vício constitucional, cuja a conseqüência é essa anomalia.

No Brasil, nos governos militares, o Presidente da República dispunha do poder de outorgar atos institucionais, que tinham força de lei. Era a ditadura. Ainda no primeiro governo civil, o Presidente continuou a dispor do instituto do decreto-lei, que tinha força de lei e gerava conseqüências a partir do momento de sua edição. O constituinte de 1988 revogou esse dispositivo e criou a medida provisória, com o objetivo de entregar ao governante a possibilidade de decidir sobre questões graves em momentos difíceis do País.

O Senador Esperidião Amin disse, a respeito do assunto, o seguinte:

      "Durante os trabalhos de elaboração da Constituição de 1998, os defensores da inclusão da medida provisória no texto constitucional alegavam que o Poder Executivo não poderia prescindir de algo semelhante ao decreto-lei para atuar de modo célebre diante de certos fatos que exigiam uma pronta ação da Administração Pública. Tais reclamos foram acolhidos. No entanto, a aplicação de medidas provisórias vem sendo rotineiramente desvirtuada ao serem editadas sem nenhuma relevância ou urgência. Diante desse quadro, não seria exagero afirmar que o Executivo está usurpando a função legislativa do Poder competente, representado pelo Congresso Nacional".

O ínclito jurista e Senador Josaphat Marinho escreveu em artigo recentemente publicado no Correio Braziliense:

      "De instrumento limitado e excepcional, por sua natureza, as medida provisórias multiplicaram-se e se tornaram forma fácil de legislar sobre quase todas as matérias. Com extensão abusiva, o governo ocupa espaço reservado, pela essência do regime, ao Congresso Nacional, e assim também fere o direito dos cidadãos. As centenas de medidas provisórias, editadas e reeditadas, mostram o grau de arbítrio com que têm sido usadas. São cerca de 1.500, entre as emitidas e as renovadas".

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trouxe ao plenário desta Casa a opinião conceituada de dois ilustres Senadores, de Partidos e Estados diferentes. A questão não é partidária, nem regional; é constitucional. O Poder Executivo, ao se utilizar de maneira abusiva das medidas provisórias, está substituindo o Congresso Nacional na tarefa de produzir a legislação. A medida provisória é um recurso extremo, para momentos de grave comoção nacional. Não pode e nem deve ser utilizada a qualquer instante, sob qualquer argumento.

A situação que vivenciamos hoje no País, com o uso abusivo do instituto da medida provisória faz do Presidente do Brasil o homem mais poderoso do mundo: sua vontade recai sobre 150 milhões de pessoas, imediatamente, sem a sanção, o arbítrio, o anteparo de ninguém e de nenhum outro Poder. Podendo assim continuar, indefinidamente, conforme demonstra a estatística das reedições que, na prática, tornam permanentes o instrumento conceitualmente definido como medida provisória, num caso sui generis de antinomia.

Hoje, temos duas medidas provisórias que completam 69 meses, uma provisoriedade quase que permanente, são três anos por uma lei que seria provisória. Convido, inclusive, os Srs. Senadores, para, às 15 horas e 30 minutos, no cafezinho do Senado, cortarmos uma torta pelo aniversário dessas duas medidas provisórias. É um provisório que passou a definitivo. É uma lei criada para durar pouco tempo que, praticamente, se estende sobre a Nação permanentemente, criando essa distorção.

Apresentei, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a esta Casa um projeto de lei que faria com que só durassem 60 dias as medidas provisórias, após o que, se não aprovada, passaria a ser um projeto de lei. Esse projeto foi juntado a outros projetos sobre o mesmo assunto e foi dado a uma comissão especial a obrigação de moldar todas essas opiniões em uma só, para isso foi designado o nobre e competente Senador Josaphat Marinho, que fez uma redação que concatenava e juntava todas as medidas sobre medidas provisórias.

Vão completar quase seis meses que isso foi feito e continuamos reclamando das medidas provisórias e não tomamos nenhuma medida séria sobre isso.

Por isso, a idéia de se cortar uma torta hoje para comemorar o aniversário e, quem sabe, de modo pitoresco, conseguimos acordar o Congresso Nacional para que ponha um fim a esse instrumento que é uma completa distorção do sistema democrático.

É impossível, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que um único homem possa evitar de pensar numa lei, redigi-la, mandar publicar no Diário Oficial da República e, no dia seguinte, ser obrigatória para 150 milhões de habitantes.

Isso não existe no mundo democrático de nenhum país. É excesso de poder. Um poder açambarcado do povo, açambarcado do Congresso Nacional.

Até o dia 9 de janeiro de 1995 foram editadas 824 medidas provisórias, das quais 459 foram reedições, ou seja, mais da metade. Até 21 de junho de 1996, são 1.503 medidas provisórias, algumas delas já em situação escandalosa, como é o caso dessas duas que hoje comemoramos o aniversário reedição no 69º mês. A Medida Provisória de nº 327, que cria o Programa Nacional de Desestatização, foi reeditada 37 vezes e, pior, teve redações diferentes que ampliaram - uma coisa que também não podia ser permitida - ou modificaram sua abrangência. A medida provisória que dispõe sobre as atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União já foi republicada 21 vezes; a das Notas do Tesouro Nacional, 32 vezes.

Podemos nos valer de outros exemplos. A Medida Provisória nº 813, a primeira do Governo Fernando Henrique Cardoso, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, já foi republicada 18 vezes e ainda está em tramitação.

É preciso perceber, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que a medida provisória gera imediatos efeitos logo após a sua edição. O mecanismo cria sobre o Congresso Nacional uma pressão enorme e avassaladora, uma vez que torna impossível qualquer modificação posterior naquilo que está feito. A Medida Provisória que criou o Plano Real tramitou durante quase dois anos no Congresso Nacional, quando o Plano já estava na rua. Era impossível qualquer modificação em um texto que já havia gerado direitos, expectativas e situações concretas.

É evidente, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que o Presidente da República deve dispor de um mecanismo excepcional para decidir questões importantes em momentos de crise. Mas somente nos momentos de crise. Não é possível que a democracia brasileira, depois de tantas lutas, esteja escorrendo pelo ralo da história por causa da vontade de poder dos burocratas da Esplanada dos Ministérios.

Esse é um outro grande problema, Sr. Presidente. Hoje, quando se vai a um Ministério resolver um problema, a burocracia de segundo e terceiro níveis diz: "Não há problema, vamos fazer uma medida provisória". Então, para que Congresso Nacional, se por medida provisória pode-se legislar imediatamente neste País?

O que está ocorrendo, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é o exercício das políticas públicas, propostas pelos técnicos dos mais diversos ministérios, por intermédio das medidas provisórias. As verdadeiras questões nacionais não mais são discutidas no Congresso Nacional. Ao contrário, elas chegam aqui na forma de medida provisória já em vigor e gerando efeitos. Não há, diante dessa realidade, nada a ser discutido. O Governo prescinde do debate parlamentar e de sua maioria no Congresso. Os burocratas decidem e impõem sua vontade ao povo, sem terem recebido desse povo um único voto.

Não faz sentido que o Brasil esteja vivendo essa controvérsia constitucional. Houve, neste País, a menos de uma década, um esforço para renovar e remodelar as instituições. A democracia venceu. Não é razoável que o Congresso seja colocado à margem das graves questões nacionais e se veja impossibilitado de sobre elas discutir.

É imperioso, na dimensão do Estado de Direito, conter a edição de medidas provisórias. O Governo deve se submeter às normas constitucionais e não deve transgredi-las por motivo de ocasião. O Brasil não pode ficar à mercê da vontade de uns poucos. Isso contraria a lógica do regime e agride a democracia. É fundamental, é urgente, é necessário votar a emenda constitucional que limita a utilização das medidas provisórias, para o bem da democracia e o respeito ao direito do cidadão.

Enfatizo que às 15h30min estaremos cortando a torta de aniversário das duas medidas provisórias, que já estão completando três anos e meio. Se fosse pelo regime do concubinato, já haveria o direito à metade dos bens do parceiro.

Não podemos permitir que leis provisórias sejam permanentes e que continuem a criar a distorção que estão criando.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/08/1996 - Página 15184