Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, SEU USO E INTERPRETAÇÃO SOCIAL. POLITICA DO MENOR NO BRASIL.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, SEU USO E INTERPRETAÇÃO SOCIAL. POLITICA DO MENOR NO BRASIL.
Aparteantes
Bernardo Cabral.
Publicação
Publicação no DSF de 30/08/1996 - Página 15242
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, INTERPRETAÇÃO, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, EXISTENCIA, PREVISÃO, GRADUAÇÃO, PENALIDADE, SIMULTANEIDADE, DEFESA, POLITICA, RECUPERAÇÃO, MENOR, AMBITO, INSTITUIÇÃO PUBLICA.
  • DEFESA, MANUTENÇÃO, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, MOTIVO, POSSIBILIDADE, RECUPERAÇÃO, MENOR, INTEGRAÇÃO, FUTURO, SOCIEDADE.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, está de novo em discussão nos noticiários diários o Estatuto da Criança e do Adolescente, agravada a questão agora por um aumento da criminalidade no Estado de São Paulo e, sobretudo, pelo grau da violência dessa criminalidade.

Como é voz comum e corrente nessa matéria, inevitavelmente, figuras gradas, como secretários de segurança, juízes e jornalistas, insistem num ponto que, por mais que se esclareça, permanece como um ponto fixo, inarredável. Refiro-me à idéia falsa de que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite que o menor em estado de delinqüência não sofra as penas da lei. Como há menores em estado de delinqüência, e delinqüência violenta, normalmente passa-se para a sociedade a idéia de que o Estatuto da Criança e do Adolescente é o grande responsável por esse fato.

Isso merece meditação e esclarecimento. O esclarecimento está ligado diretamente à leitura do Estatuto. Observa-se que grande parte das autoridades que se manifesta contrariamente a ele não o leu. O Estatuto tem 267 artigos. Há cerca de seis ou sete anos, quando Deputado Federal, fui membro da comissão que o elaborou. Acompanhei, pari passu, a motivação profunda do Estatuto e sobre ele gostaria de dar alguns esclarecimentos a esta Casa e ao público em geral, caso alguma repercussão possam ter essas palavras.

Em primeiro lugar, quero me referir topicamente ao art. 112 do Estatuto. Ele diz respeito diretamente à gradação das penas propostas para os menores em estado ou de delinqüência ou de pré-delinqüência ou em estado de potencial delinqüência.

Não se pode caracterizar a postura do menor de rua como necessariamente delinqüente ou em estado de delinqüência beligerante, perigosa. Ela sofre gradações. É como um processo de avanço na escala do crime: primeiro, são pequenos furtos, atos marginais de alguma natureza, consumo de drogas; depois, parte-se, em alguns casos, para a delinqüência chamada pesada.

Há uma gradação nessa matéria. O Estatuto não foi feito para ser um instrumento de repressão; ao contrário, foi feito para ser um instrumento de proteção e de elevação do menor:

      "Art. 112 - Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as segunintes medidas:

      I - advertência;

      II - obrigação de reparar o dano;

      III - prestação de serviços à comunidade;

      IV - liberdade assistida;

      V - inserção em regime de semiliberdade.

      VI - internação em estabelecimento educacional."

Diante do bombardeio que recebe o Estatuto da Criança e do Adolescente, é preciso parar e meditar sobre a lucidez desse texto, que torna gradual, em virtude da compreensão profunda do problema do menor, a escala de penalidades para atitudes infracionais - advertência, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade e até, finalmente, a internação em estabelecimento educacional.

Portanto, fique claro de antemão, não ser o Estatuto da Criança e do Adolescente, como diz a autoridade policial, quase sempre para acobertar a sua incompetência no caso, um estatuto de proteção ao menor. Dizem: "Nada podemos fazer contra o menor adolescente, há que soltar o menor infrator."

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, isso não é verdade. Não está na lei. Não está no espírito do Estatuto, como veremos adiante.

Gostaria agora de citar o artigo que tem a ver diretamente, com o art. 112, citado. Refiro-me ao art. 174, que é muito interessante tendo em vista a técnica legislativa e, sobretudo, o conteúdo social humano existente no seu teor.

Em primeiro lugar, ele corporifica algo que está em todo o Estatuto, ou seja: o problema do menor delinqüente não é exclusivamente um problema de polícia; ele envolve a família, se existir; envolve a polícia, como organismo repressor; envolve o Ministério Público - o que é talvez a grande novidade do Estatuto, pois que o Ministério Público é a grande figura a comandar o processo em relação ao menor infrator ou delinqüente; envolve o Poder Judiciário e envolve a sociedade como um todo.

O Estatuto estabelece que cada Prefeitura, cada município do País, deve criar e manter dois conselhos, a saber: um conselho curial ou tutor e um conselho da própria sociedade, sendo que os membros de um dos conselhos deve ser eleito. Os conselhos são os órgãos deliberativos da política do menor em cada município brasileiro. Isso está estabelecido na Lei; é uma de suas grandes conquistas, porque descentraliza. Não mais se tem a pura e simples visão repressiva que antes dominava as relações do Estado com o problema do menor.

Então, é em função da mobilização desses segmentos da sociedade - repito: polícia, Ministério Público, Judiciário, família, conselho da comunidade - que o art. 174 reza de modo, a meu ver, luminar:

      " Art. 174 - Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente libertado pela autoridade policial"...

Muita gente, por inadvertência, pensa que aqui está a autorização para libertar o adolescente em situação de infração.

Mas o artigo continua: "... sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato,..."

Agora, atenção: "... exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública".

Não há o que sofismar sobre a clareza meridiana do art. 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele não parte para uma ação repressiva, perigosa, porque jogará o menor, que ainda pode ter uma condição de recuperação, imediatamente, aí sim, na universidade do crime. Os defensores da política repressiva, ao desejarem que menores em infração sejam jogados nas prisões comuns, estão fazendo com que eles entrem, sem vestibular, para a universidade do crime. É eximir-se da obrigação estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente, a obrigação de fazer com que a sociedade e os órgãos do Poder Judiciário, como um todo, co-responsabilizem-se por aquele menor, tanto afastando-o da sociedade, colocando-o em organismos de recuperação especializados, e não na prisão, na cadeia, quanto entrando em contato com a sua família, se for o caso.

Estamos, portanto, diante de um Estatuto que tomou por base uma filosofia de alta modernidade e de grandeza humana e cristã, se o desejarem, na sua formulação.

Qual é a filosofia de profundidade humana e cristã? Ela parte da certeza de que neste País provado está que há muito mais menores que são vítimas de violência do que menores que são autores de violência. E o Estatuto existe exatamente para preservar o direito do menor e do adolescente diante de certas invasões da sociedade, no seu aspecto doentio e brutal, no seu aspecto de legar a essa juventude e a essa infância a desgraça, o opróbrio, a miséria, enfim, o contato com os estamentos mais baixos de uma sociedade.

O Estatuto é uma defesa da criança e do adolescente. Jamais um instrumento de impunidade. É pela ignorância ou pela má-fé de certas autoridades policiais incompetentes, acostumadas no trato da violência, que se pretende transportar à política do menor e do adolescente, neste País, uma mesma filosofia que reputo desgraçada, mas inevitável, que é a filosofia da luta direta contra a marginalidade, aquela que se estabelece hoje de modo violento e pesado, com o volume de armas e com a violência expressa, também, no comportamento dos setores marginais da sociedade. Não para o menor. O Estatuto pretende o contrário: acautelar os direitos do menor, procurar até o final recuperar o menor em estado de pré-delinqüência ou já em estado de delinqüência. Somente nos casos em que isso não for possível, levar o menor, efetivamente, ao cumprimento de uma pena que está cominada no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Sr. Bernardo Cabral - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço-o, com muita atenção, Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral - Nobre Senador, o grande problema do nosso País é aquele das pessoas que não leram e não gostaram. O fio condutor filosófico do discurso de V. Exª é exatamente nesse sentido, mostrando que houve uma campanha, eu não diria solerte, mas uma campanha desmoralizadora do Estatuto, que, ao cabo e ao fim, é exatamente o que a análise densa de V. Exª está a fazer. Quero dividir o meu aparte em dois tópicos, sendo muito breve. Primeiro, quando o menor está marginalizado e enveredando para o crime, ao ser recolhido a um instituto qualquer, ele está fazendo o que disse V. Exª: o vestibular para a universidade do crime. E aí se diz que o menor comete, ou está em estado de delinqüência, porque lhe faltam a casa, a comida, educação etc. Mas esses são fatores componentes da violência. A violência em si tem as suas raízes incrustadas numa profunda injustiça social. Se partirmos daí, notaremos que com a campanha que se forma - e quero deixar este ponto para meditação de V. Exª - de que o ideal para acabar com o crime será reduzir a inimputabilidade penal de 18 para 16. As pessoas se esquecem de que ao colocar um jovem de 16 anos na mesma cadeia com aqueles marginais altamente veteranos do crime, além da sevícia, além da promiscuidade, ele de lá sairá, antes de atingir a maioridade civil, aí sim, absolutamente doutorado no crime. Portanto, quando V. Exª aponta o culpado e a ele imputa a forma pela qual ele foge da sua responsabilidade, V. Exª está absolutamente certo. O problema, antes de ser policial, deve ser encarado como social. Acompanhei o seu trabalho e posso dizer, ao longo do tempo que me restou como Deputado Federal pós-constituinte, que conheço o estudo feito por V. Exª. Mas fique certo que ainda há um outro componente: a explosão demográfica em nosso País também contribui para isso. E o que acontece? Aquelas crianças, que o pelotão de fuzilamento, que é a fome, não mata, acabam sendo mortas por outros meios, e aí se transformam numa sepultura sem inscrição. Meus cumprimentos pelo pronunciamento.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Muito obrigado, Senador. V. Exª disse palavras luminosas. Elas são a essência do que pretendo dizer, amplificado pelo rigor e pela precisão jurídica de V. Exª.

A política do menor no País está envolvida com, praticamente, toda a sua tessitura social, pois abarca as questões educacional, habitacional, da saúde, até mesmo dos valores civilizatórios, em torno dos quais se busca organizar uma sociedade. Uma sociedade que tem valores civilizatórios diariamente expressos nos meios de comunicação, na televisão, por exemplo, pela violência, pela competição desenfreada, pela vitória permanente da esperteza e pela violência da lei, quando aplicada, é uma sociedade que transmite esses valores ao comportamento de seus vários segmentos. A questão do menor não está divorciada e isolada de um contexto em que a sociedade, como um todo, engendra os seus valores, as suas metas, as suas aspirações, as suas vontades. É claro que alguns crimes cometidos pelos menores são bárbaros. Mas é claro, também, que são bárbaros os crimes cometidos contra menores. Há uma estatística que comprova que cerca de 50% dos crimes de violência sexual contra menores são perpetrados dentro das próprias casas, dentro das próprias famílias. A violência contra o menor é incomensuravelmente maior do que a violência do menor, o que não justifica sua existência, o que não justifica que a sociedade não o puna, o que não justifica que a sociedade não o afaste, não o aparte da vida social. Mas que o faça dando-lhe uma última chance de recuperação, aquilo que os juristas há séculos têm como a noção da pena. A pena não tem exclusivamente função punitiva, mas tem, na sua evolução, a função de punir e de recuperar, velho sonho que o sistema penitenciário brasileiro até perdeu, pela crise do Estado, por vários fatores que o tornaram hoje praticamente uma escola de muito rara possibilidade de recuperação do criminoso.

Fiquem, portanto, estas palavras de alerta em relação ao desconhecimento que se tem da profundidade dessa matéria e da necessidade gritante de se adotar, em relação ao menor, um comportamento e uma política que saibam colocá-lo fora da sociedade, no caso da infração, mas que tenham permanentemente em conta o fato de que a obrigação de recuperá-lo é da mesma sociedade que o segrega.

Concordo num ponto. Tenho um projeto de lei a ser apresentado, no sentido de que certos casos de crimes cometidos por menores, tão logo eles atinjam a maioridade, não prescrevam e sigam para um ulterior julgamento. Isso, efetivamente, daria ao juiz a possibilidade de analisar o grau de recuperação desse menor ou a necessidade de, já como maior, mantê-lo afastado - digamos assim - da sociedade até a sua plena recuperação.

Agradeço o aparte brilhante do Senador Bernardo Cabral, à Mesa, a atenção dos Srs. Senadores e a gentileza da Senadora Marina Silva, que me cedeu parte do seu tempo.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. Obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/08/1996 - Página 15242