Pronunciamento de Artur da Tavola em 11/09/1996
Discurso no Senado Federal
CENTENARIO DA MORTE DE CARLOS GOMES. HISTORICO DA VIDA E DA OBRA DO COMPOSITOR.
- Autor
- Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
- Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- CENTENARIO DA MORTE DE CARLOS GOMES. HISTORICO DA VIDA E DA OBRA DO COMPOSITOR.
- Aparteantes
- Edison Lobão, Iris Rezende, Pedro Simon.
- Publicação
- Publicação no DSF de 12/09/1996 - Página 15914
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
-
- HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, CARLOS GOMES (RS), COMPOSITOR, ESTADO DE SÃO PAULO (SP).
- ANALISE, HISTORIA, BIOGRAFIA, CARLOS GOMES (RS), COMPOSITOR, BRASIL.
- TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, DOCUMENTO, CONTEUDO, TEXTO, AUTORIA, MARIO DE ANDRADE, INTELECTUAL, COMPARAÇÃO, OBRA MUSICAL, HEITOR VILLA-LOBOS, CARLOS GOMES (RS), COMPOSITOR.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, traz-me à tribuna um assunto talvez não candente, nem polêmico e que possivelmente não tem a atração dos temas da atualidade.
Dentro de cinco dias passar-se-á o centenário da morte de Carlos Gomes, e creio que o Senado da República não deve deixar passar essa data sem alguma manifestação, uma vez que temas de natureza cultural, humana e até política estão envolvidos na vida, na obra e na trajetória de Carlos Gomes.
Primeiro, algumas generalidades sobre ele e sua vida.
Nasceu em Campinas, no Estado de São Paulo, no mês de julho de 1836 e morreu aos 60 anos, em Belém do Pará, exatamente no dia 16 de setembro de 1896, e morreu nesse estado porque lá ele encontrou trabalho.
Carlos Gomes, após uma vida de muita atividade, vive a disjuntiva de voltar ao Brasil, exatamente quando a República se iniciava. Ele, pessoa que fora indicada pelo Imperador para estudar na Europa, ali formou a sua bagagem musical e cultural. Embora com temas brasileiros, de certa forma, corporificou um material musical, digamos, cosmopolita - uma mistura do nacionalismo no tema e do cosmopolitismo na concepção musical. Carlos Gomes volta ao Brasil e, segundo suas próprias palavras em cartão amigo, diz: "No Rio não me querem nem para porteiro de conservatório, em São Paulo nem para cocheiro."
O fato é que, repudiado, vai ao Pará, onde morre a 16 de setembro de 1896. A formação musical é familiar e, também, feita no Conservatório do Rio de Janeiro. Muito moço, com 24 anos, Carlos Gomes já publica sua primeira obra, uma cantata litúrgica. Logo depois, em 1861, encena no Teatro Nacional a sua primeira ópera: "A Noite no Castelo", obra iniciante de um autor jovem com formação exclusivamente brasileira até então.
O ano de 1863 marca o começo de uma trajetória alucinante, como iremos ver mais adiante, quando Carlos Gomes, com 27 anos de idade, vai a Milão estudar com Lauro Rossi, enviado pela Coroa brasileira, com o apoio do Imperador. Interessante que, na juventude, Carlos Gomes fora amigo, ainda em São Paulo, de um grupo republicano, e ele tinha iniciações maçônicas. Posteriormente, a vida lhe traz as primeiras dificuldades. De formação republicana, mas talentoso que era, recebe do Imperador a láurea de uma bolsa na Itália, o que lhe permite abrir as portas, no ano seguinte, do Teatro La Scala, até então o templo da grande ópera mundial.
Façam-se parênteses para dizer que a Europa, nesse tempo, vive duas realidades operísticas muito agudas e intensas: a italiana e a alemã. Na primeira, o consagrado autor Verdi que, ao morrer em 1901, pôde viver ao longo do século XIX. Puccini e Rossini são exemplos de outros grandes mestres da ópera daquele país. Houve alguma presença francesa como as de Bizet e Saint Saëns. Do outro lado, na ópera alemã, inteiramente diversa, imperava o gênio de Wagner com suas obras imortais e uma concepção operística completamente diferente da italiana, porquanto voltava-se para os grandes temas das lendas e mitologias germânicas, direcionadas para uma visão grandiosa da ópera como espetáculo e uma visão orquestral muito distinta.
Havia, portanto, ao tempo da formação de Carlos Gomes, naquele país, a predominância do espírito romântico na ópera italiana. Porém, Carlos Gomes opera na linha do que se chamou ou já foi chamado de romantismo exótico.
O Romantismo, como se sabe, foi um movimento literário e musical que desenvolveu certas peculiaridades: o culto à natureza, a visão da vida e da obra de arte como algo sublime, capaz de redimir o ser humano, os temas ligados às paixões e às dores individuais e, em alguns países, o nativismo - os temas nacionais são de certa forma paralelos ao movimento romântico. São características do Romantismo, portanto, um grande culto à natureza e, sobretudo no campo existencial, a tendência a colocar na primeira pessoa o sentimento. Ou seja, o Romantismo individualiza o sentimento e o amplifica, diferentemente ou como reação ao Classicismo, que antes glorificava os grandes temas, os temas da mitologia, os temas da humanidade, as grandes idéias. O Romantismo é uma cessação dos temas grandiosos, da humanidade, das grandes idéias e uma entrada na temática individual, no sofrimento individual, na primeira pessoa.
A escola romântica italiana, sobretudo com Rossini, com Puccini e com Verdi, qualifica e glorifica esse sentimento. É claro que em Verdi já há uma vertente um pouco distinta. Verdi é um autor eminentemente italiano, eminentemente nacional.
Haverá razões políticas nessas considerações que faço? Sim. No século XIX gestava-se o Estado-Nação. A Itália vivia a luta pela sua unificação. A unificação da Itália, como a unificação de outros países da Europa para formar a idéia de um País, de um Estado, foi a grande bandeira do século XIX. Este Estado-Nação em que ainda vivemos no século XX é formação exclusiva do século XIX. Verdi é um autor que vincula a expressão romântica da sua verve, da sua criatividade, ao caráter nacional que sempre o marcou.
Carlos Gomes vai nessa direção de um modo muito curioso. Ele é recebido na Itália com muita dificuldade, com muita indiferença. Imaginemos em meados do século passado um brasileiro na Europa. Se ainda hoje se supõe, em alguns países, ser a nossa capital Buenos Aires, o que não seria no século passado a presença de um tupiniquim brasileiro? Digo tupiniquim pela a própria formação racial de Carlos Gomes, que é muito discutida. Ele tem, para a filha, o sangue índio mesclado ao sangue português e tem, para outros biógrafos, uma presença do sangue negro, negada pela filha Ítala, em sua (dele) biografia. O fato é que Carlos Gomes era um homem muito bonito, e essa mescla do sangue negro com o sangue branco lhe deu um porte muito belo, o que foi inclusive responsável por uma série de desditas amorosas, como veremos um pouco adiante.
Chega, portanto, na Itália com muitas dificuldade de aceitação e, ali, mercê de seu talento em Milão, ele luta bastante e, afinal, consegue uma boa relação entre a sua aceitação como compositor e a afirmação da temática que estava no centro de suas obras principais.
Quais são essas duas obras nesse momento? O Guarani, de temática absolutamente brasileira, porque conta a história de um índio brasileiro, e Lo Schiavo - O Escravo -, que traz também uma temática comum ao Brasil, essas obras, de certa maneira, penetram no momento romântico da lírica italiana, dentro dessa linha chamada de romantismo exótico. Exótico apenas pelo fato de que trazia temas que não estavam ligados diretamente aos comportamentos ou aos ambientes nitidamente europeus.
O próprio grande compositor francês, Bizet, é também incluído nessa linha do romantismo exótico, com a sua ópera Carmen, e também com a sua ópera O Pescador de Pérolas. Essas duas óperas são consideradas do romantismo exótico pelo fato de que elas trazem uma temática inteiramente diversa, diferente da ambiência européia. Assim, as obras do nosso Carlos Gomes.
Essa é, em poucas palavras, a vida de Carlos Gomes. É evidente que ele é autor de muitas outras óperas e tem na sua bagagem muitas canções. Foi feita há pouco tempo uma pesquisa fonográfica, e ele tem gravações hoje de canções e de óperas em praticamente todo o mundo. Ele é um autor muito mais sedimentado no gosto universal do que propriamente conhecido no Brasil.
Gostaria de destacar, porém, na vida de Carlos Gomes, as grandes questões, as grandes querelas, os grandes problemas que envolveram uma figura da sua grandeza e da sua força. A primeira delas é a que foi levemente abordada por mim na narrativa anterior, que é a sua ida à Itália, os seus estudos e um começo de polêmica - que existe até hoje - em torno do seu nome, pelo fato de que sua obra foi violentamente repudiada pelo movimento republicano, ao qual ele era simpático, diga-se de passagem. Mas, por gratidão ao Imperador, que o levara à Europa, Carlos Gomes manifesta-se publicamente como alguém grato à forma pela qual Dom Pedro II permitira-lhe a ida à Europa e o estudo.
A primeira polêmica em torno dele, pois, tem que ver com a grande polêmica entre República e Monarquia no Brasil. Há, nesse ponto, um elemento muito interessante: o de quanto a conjuntura política interfere no julgamento artístico. Isso é um fenômeno que ocorre no mundo. Não é novidade, nem ocorreu exclusivamente com Carlos Gomes. É inevitável - eu diria - uma influência da conjuntura política sobre o autor, como é inevitável também o oposto: passada a refrega da conjuntura política, o valor de uma obra estabelece-se independentemente das causas vanguardeiras ou reacionárias que animavam o seu autor. A história da música, da literatura, está cheia desses exemplos.
Brahms, cujo centenário da morte ocorrerá ano próximo, num certo sentido, foi um conservador musical e foi atacado enormemente a seu tempo como conservador musical, porque representava um romantismo tardio e, no entanto, a sua obra maior, ignorando completamente esse tipo de discussão, atualmente é uma obra do amanho universal.
O segundo ponto polêmico na vida de Carlos Gomes, a sua segunda dificuldade, foi a resistência do meio musical italiano a um personagem vindo de um país então distante, desconhecido, um tal de Brasil, em meados do século passado. O que tem a ver efetivamente, até hoje, com a resistência dos grandes centros a toda a forma de cultura periférica, ou seja, a toda forma de cultura que não provém dos centros. Não precisamos ir longe. Quantas manifestações culturais deste País, nos dias de hoje, porque são regionais não merecem e não recebem o apoio devido esmagadas que são pela cultura produzida nos grandes centros.
A própria televisão é um exemplo disso. Está na nossa Constituição Federal a necessidade de um grau relativo de produções regionais e isso não vem à tona. No entanto, basta que uma manifestação regional entre na circulação dos centros emissores para que ela imediatamente seja aceita, o que levou, certa vez, não sei quem, a uma brilhante frase constantemente repetida nos arraiais da arte: "pinta a tua aldeia e serás universal".
Carlos Gomes pintou sua aldeia em O Guarani, em Lo Schiavo e, com isso, tornou-se universal. Porém, há que analisar na sua vida a dificuldade da resistência do meio cultural europeu àquela figura emergente, estranha, que ali chegava e compunha óperas, num lugar onde sul-americano algum poderia vicejar a meados do século passado.
Outro conflito que o acompanha é de natureza puramente estética. É uma discussão interminável, nos arraiais da arte, entre o valor da ópera italiana e o valor da ópera alemã, entre os que defendem a escola italiana de ópera, com sua tendência à exacerbação sentimental, ao belo canto, às grandes melodias, aos amores infinitos e eternos, às grandes tragédias do amor e a escola alemã, a escola de Wagner, com sua presença forte de uma superação do drama individual e a colocação na arte dos temas universais, dos grandes temas; no caso de Wagner, dos temas profundos da mitologia germânica.
Há, entre os estudiosos, os que querem ver na orquestração de Carlos Gomes influências exageradas de Verdi ou os que querem ver na obra de Carlos Gomes já uma certa presença da orquestração de Wagner. Trocado em miúdos, seria uma orquestração expansiva, melodiosa, no caso dos italianos, ou densa, carregada nos metais, tonitruante, forte, ciclópica, no caso da orquestração wagneriana.
E até o fato de que ele compôs nos moldes da Europa do século passado viria a torná-lo polêmico e a prejudicar a apreciação de sua obra quando, exatamente há 60 anos, em 1936, o Brasil tentou comemorar outro centenário: o do nascimento de Carlos Gomes.
Ocorre que em 1936 no Brasil já haviam espocado as escolas nacionalistas de música: já existia Villa Lobos, já existia Francisco Mignoni, já existia Camargo Guarnieri, já existia, de certa maneira, Guerra Peixe. E esses movimentos nacionalistas, que buscavam para o Brasil uma linguagem própria em sua música, eram violentamente contrários aos modelos europeus.
E, portanto, novamente Carlos Gomes se torna polêmico porque ficou apontado à Nação permanentemente como um europeu. Um europeu que fazia algo exótico ao colocar índios seminus na cena de uma ópera. Outra vez sua imagem é abalada.
Com o advento da Semana da Arte Moderna de 1922, que proclama o predomínio dos valores nacionais sobre os valores europeus - os valores vigentes à época eram os europeus, ainda não eram os americanos, como hoje em dia -, figuras como a dele vão sendo deslustradas gradativamente, passando a viver exclusivamente do valor da própria obra.
Nessa ocasião - é o ano de 1936 - há um outro conflito muito interessante: a sua comparação com Villa Lobos. E até o grande Mário de Andrade, hoje cultuado como uma das maiores figuras do pensamento brasileiro, é autor de um artigo publicado em 1934, que tive o cuidado de buscar para orientar um pouco melhor esta modesta fala em homenagem a Carlos Gomes.
Mário de Andrade, figura proeminente do Movimento Modernista, tem um artigo chamado Carlos Gomes e Villa Lobos, muito interessante - que deixarei na íntegra para constar do meu discurso, entregando-o depois à Subsecretaria de Taquigrafia -, que gostaria, para a continuidade do discurso, de ler alguns trechos muito interessantes. Esse artigo é de 1934. Portanto, doze anos após a Semana da Arte Moderna. Ele diz:
Verdadeiramente até agora só dois músicos brasileiros conseguiram preocupar duma maneira menos episódica e meramente diplomática a música universal. Esses dois músicos são Carlos Gomes e Villa Lobos. Ambos tiveram o aplauso do mundo. Carlos Gomes já de maneira privada, incontestável e permanentemente. Villa Lobos num clarão fulminante em que parecia de fato que a música universal descobria, se não um sucessor, pelo menos um sucedâneo de Strawinski. Mas é incontestável que a estrela de Villa Lobos brilhou muito meteoricamente e vai aos poucos mas rápido sendo esquecida do mundo.
Vemos aqui que nem o Mário de Andrade estava imune a erros. Em 1996, a estrela de Villa Lobos brilha no mundo hoje como um dos grandes compositores do Século XX. De forma alguma Villa Lobos é um meteoro.
Adiante, ele analisa os dois, faz críticas e é bastante duro com Villa Lobos novamente. Diz Mário de Andrade:
Mas por outro lado há uma face em que Carlos Gomes se eleva muito acima de Villa Lobos em nossa simpatia. E nisso a lição dele é muito mais eficaz, importante e social que a de Villa Lobos. Villa Lobos tem conseguido vencer a golpes de audácia e de gênio. E apenas. Terá ele mais gênio que Carlos Gomes. Creio que sim, apesar da impossibilidade em que me acho de provar essa crença pessoal. Os gênios não se medem a litros nem quilos. A meu ver Villa Lobos é mais genial que Carlos Gomes, e é tudo. Mas em compensação o autodidatismo de Villa Lobos, não é apenas lamentável, como atinge as raias da ignorância. Quem quer que tenha privado com ele algum tempo sabe disso. As suas ignorâncias estéticas, históricas e mesmo técnicas, dentro exclusivamente da música, são às vezes pueris.
E prossegue num desconhecimento de que Villa Lobos é um compositor de grande processo de evolução. Ele tem raízes populares. Ele não teve uma formação erudita, é verdade, mas ele tem uma capacidade criativa absolutamente original, por cima dessas limitações por ele aludidas, com dureza inclusive.
E, na parte em que fala mal de Carlos Gomes, diz:
Carlos Gomes tem um métier formidável não apenas conseguido à custa dos anos, mas o métier do operário intelectual que estuda e aprende e enfim sabe pra então principiar sua criação. O homem que no início de sua carreira escreve pra voz como no dueto de amor do 1º ato do Guarany e logo em seguida cria essa outra página genialíssima como invenção e técnica orquestral que é a protofonia do Guarany, esse homem "começava como outros acabam", sabendo compor. Sim, esse métier não nos interessa tanto como o de Beethoven ou Bach, eu sei. Mas era a força do tempo e das terras em que Carlos Gomes viveu e a que serviu. Serviu por demais passivamente, mas a sua honestidade, o seu "métier" de operário probo, o exaltaram e exaltam ainda. Porque não apenas no Brasil, mas no mundo, Carlos Gomes, atrasado, envelhecido, corroído pelas doenças musicais italianas do seu tempo, permanece firme e já agora por seu valor fixo. É um nome da música universal.
Vejam, Srªs e Srs. Senadores, que, até por volta do centenário de nascimento de Carlos Gomes, vive nosso compositor essa disjuntiva, a meu ver inteiramente disparatada, de Mário de Andrade. Permito-me, tendo em vista o grande escritor que foi Mário de Andrade, dizer que essa disjuntiva é inteiramente disparatada porque ele se põe a comparar obra de arte, quando obra de arte não se compara, é questão empática, é questão subjetiva na sua avaliação e, entre grandes autores, evidentemente, as preferências serão as mais variadas. E nem há razão para comparar Carlos Gomes com Villa Lobos, são outros contextos, outras épocas, mas o fato é que ainda aí há essa presença. E muitos apontam, também, numa disputa entre e Rio e São Paulo, as críticas que Mário de Andrade fazia a Villa Lobos, até porque ele representava uma corrente tipicamente carioca oriunda dos chorões etc.
Volto aos conflitos que a imagem de Carlos Gomes foi obrigada a enfrentar. E entro em uma questão das mais dolorosas e pungentes de sua vida, uma questão familiar. Não entro na questão familiar de Carlos Gomes animado por qualquer espírito de atitude menor. Sobre Carlos Gomes a sua filha Ítala escreveu um livro e ela aborda esse caso porque tem a ver diretamente com momentos depressivos vividos por Carlos Gomes e com o seu processo criador. Vamos a ele.
Carlos Gomes, esse belo homem, no sentido da beleza ameríndia, casa-se na Itália, em 1871, com a pianista Adelina Pieri, sua colega de estudos no conservatório. Esse casamento dura sete anos e nesse tempo nasceram cinco filhos.
Pois bem, nesse breve período acontecem algumas coisas extremamente dramáticas: dos cinco filhos de Carlos Gomes, três morrem ainda crianças. O casal fica com o primeiro filho e a caçula. Após a morte de Carlos Gomes, apenas dois filhos subsistem: o mais velho morre tuberculoso logo depois da morte do pai, em 1896, e essa menina, Ítala, a caçula, vem a morrer em 1948 e é autora de um estudo sobre o próprio pai, um estudo muito bonito, hoje muito abordado.
Pois bem, qual o drama que envolve, além da morte dos filhos, a tessitura dessa família? Apesar dos cinco filhos, o casamento de Carlos Gomes é um fracasso. E ele, em certo momento da vida, apaixona-se perdidamente por uma cantora de origem tcheca, se não me engano. A biografia não conta ao certo como se dá exatamente o momento dessa paixão. O fato é que era uma cantora bem mais jovem que Carlos Gomes. Ela tinha 17 anos quando ambos se apaixonam. Esse parece ter sido um caso de paixão que percorreu muitos anos da vida de Carlos Gomes.
Ocorre, porém, que, sabedora dessa paixão, a esposa de Carlos Gomes, Adelina, num ato de compensação, de busca de algo que é dificilmente ou facilmente explicável, conforme cada personalidade, também busca um amor extramatrimonial. Esse fato leva Carlos Gomes a um sofrimento ingente, o que é absolutamente típico de um comportamento da época: um homem apaixonado pode exercitar sua paixão fora do casamento, e a mulher traída em hipótese alguma poderá fazer o mesmo, porque a sociedade condena, e ele mesmo entra em depressão ao descobrir esse fato.
O grande estudioso da música brasileira, Embaixador Vasco Mariz, escreve, numa revista chamada Viva a Música deste mês, um artigo em que faz uma síntese do que o livro da filha de Carlos Gomes conta a propósito desse caso. Diz ele:
Aos 42 anos, em 1878, Carlos Gomes já estava separado da esposa.
Na carta ao seu editor, de 11/07/1879, lemos: "Por motivos que prefiro calar e que me causam imensa dor só ao recordá-los"...
Adiante, fala na morte do filho de 5 anos, "pouco depois da injúria que recebi da pérfida esposa".
Teve, então - diz Vasco Mariz -, o compositor, prolongado o período de depressão nervosa. Houve processo litigioso.
Esse processo litigioso é muito interessante, ou curioso, ou, como queiram, dramático. O processo litigioso da traição da mulher de Carlos Gomes a ele, que, por sua vez, mantinha um caso amoroso com uma bela cantora húngara, se não me engano, deu a Carlos Gomes a guarda do filho que restara, porque três haviam morrido, e deu à mãe a guarda da filha caçula, Ítala, então criança.
Essa menina viria a morar com o pai sete anos depois da separação, porque sete anos depois da separação a esposa de Carlos Gomes morre tuberculosa. Então, a filha, que ficara sob a guarda da mãe, vem para a guarda do pai, que permanece, então, com os dois filhos - o mais velho e a caçula.
Os três do meio haviam morrido, a esposa lhe morrera, a depressão nervosa se sucedera, e é exatamente nesse período, aproximadamente entre 1880 e o fim da sua vida, que corresponde aos seus 16 últimos anos úteis, que Carlos Gomes constrói grande parte de sua obra musical com grande beleza.
Ele, portanto, retira, bem dentro do espírito que caracterizou o período romântico - ele foi dos compositores que fazem isso -, da profundidade da dor o grande alimento espiritual capaz de sublimar-se na obra de arte, e uma obra de arte que o mundo hoje respeita - não digo reverencia, mas respeita.
E esse mesmo compositor que possivelmente não esteja a merecer aqui no Brasil as homenagens à altura do seu gênio está a receber mo mundo reconhecimento.
Não sei se sabem os Srs. e as Srªs Senadoras, imagino que sim, que o grande tenor Plácido Domingo assumiu a ópera de Washington e programou para este ano, com ele no papel de Peri em homenagem a Carlos Gomes, uma audiência, uma audição, uma série de representações da ópera o Guarani.
Ora, Plácido Domingo representa o primeiro plano da lírica internacional contemporânea, juntamente com outros tenores importantes, e já nesta altura de sua vida dedica-se à regência, dedica-se a fomentar a ópera. É uma figura que está muito além de ser um grande cantor, é uma figura que propicia o desenvolvimento cultural no mundo como pode. Plácido Domingo não só propicia o desenvolvimento cultural, como tem feito audições notáveis de ajuda a crianças enfermas, a países que são vítimas de terremotos. A vida de Plácido Domingo é muito bonita. Plácido Domingo, então, de certa maneira, traz na ópera de Washington, em uma das capitais culturais do mundo, a lembrança de Carlos Gomes que teve aqui no Brasil, inclusive aqui em Brasília, a sua memória recordada em uma encenação que, curiosa e ousadamente - a meu ver, acertadamente -, foi entregue a Joãosinho Trinta, que fez uma composição de natureza popular para o tratamento da ópera, exatamente popularizando um veículo que é, em sua essência, extremamente acessível, extremamente fácil quando não encontra a barreira da língua e a barreira do entendimento do entrecho da história que ali está a ser narrada.
Esta é, pois, em poucas e sinceras palavras, a saga de um compositor de alto talento que nosso País teve. Por cima das discussões de natureza estética, por cima das divisões que a política faz entre os homens, invadindo a seara artística, muitas vezes com opiniões que pertencem à conjuntura política e não exclusivamente ao setor da arte, Carlos Gomes aí prossegue como uma das figuras internacionais da cultura brasileira.
Por esta razão, acredito eu, embora talvez cansando os Srs. Senadores com um assunto que não está na candência dos temas que diariamente empolgam esta Casa, trago como recordação da memória de um grande brasileiro e de alguém a quem devemos reverenciar na sua capacidade de enfrentar a dor, na sua capacidade de afirmar o Brasil e, sobretudo, na sua capacidade maior de construir a beleza.
O Sr. Iris Rezende - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Com muito prazer, Senador Iris Rezende.
O Sr. Iris Rezende - Senador Artur da Távola, peço escusas por interromper o brilhante pronunciamento de V. Exª
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Não, V. Exª não me interrompe.
O Sr. Iris Rezende - Gostaria de manifestar a minha satisfação, a minha alegria pessoal pelo seu gesto. A cada dia, passamos a admirá-lo mais ainda por tudo que V. Exª representa nesta Casa e, especialmente, pelo seu gesto no dia de hoje, ao fazer com que o Senado Federal não ficasse indiferente a um acontecimento tão importante como a comemoração dos 100 anos de falecimento de um dos brasileiros mais ilustres que, mesmo após a sua morte, tem sido motivo de orgulho para todos nós. Ele fez e tem feito com que o mundo, principalmente o intelectual, o mundo da música, volte as suas atenções, com muito respeito, para o nosso País, porque um país que produziu uma figura do porte de Carlos Gomes, realmente tem valores humanos. De forma que receba V. Exª os nossos cumprimentos, a nossa admiração ainda mais acentuada pelo que V. Exª tem representado, fazendo com que o Senado realmente se pronuncie oportunamente sobre os acontecimentos importantes da nossa história.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Muito obrigado, Senador. Fico muito honrado e até comovido com as palavras de V. Exª.
É importante que tenhamos no Senado, ao lado desta discussão permanente do cotidiano brasileiro, a certeza de que esta é também uma Casa produtora de pensamento e que o nosso pensamento nunca é propriamente original; é sempre fruto dos que antes de nós fizeram, pensaram, construíram a nossa história. Muito obrigado a V. Exª.
O Sr. Pedro Simon - V. Exª me permite um aparte.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço V. Exª, Senador Pedro Simon.
O Sr. Pedro Simon - Em primeiro lugar, V. Exª nos brinda novamente com um fantástico discurso. No entanto, V. Exª está em dívida, porque o pronunciamento sobre o livro em bibliotecas ficou pela metade, e V. Exª prometeu que logo faria a sua continuação. Estou com a primeira parte guardada, esperando a outra.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Já fiz, Senador. Depois o enviarei a V. Exª.
O Sr. Pedro Simon - Então, o seu pronunciamento foi feito numa sexta-feira, e eu não estava presente.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Acredito que sim.
O Sr. Pedro Simon - Pegarei a cópia então. Quero dizer a V. Exª, do fundo do coração, que sempre fui seu admirador. Eu o conheci em outros tempos; V. Exª era jovem, batalhador, lutador, agressivo, um homem de letras, de cultura. Fico com um pouco de inveja de V. Exª, por vê-lo chegar a esta altura jovem, brilhante, com essa tranqüilidade para fazer análise e pela profundidade delas, e, principalmente, por essa cultura extraordinária. Eu o admiro muito. Este pronunciamento era necessário ao Senado. Desde o meu tempo de estudante, sou um leitor assíduo e, praticamente, tenho todos os arquivos e Anais do Senado Federal. Nunca vi nada publicado sobre O Guarani ou sobre o nosso grande compositor Carlos Gomes, nesta Casa, típico do pronunciamento de V. Exª. Na verdade, li esta última biografia publicada há pouco tempo, não mais de seis meses, e, realmente, impressionou-me a figura de Carlos Gomes pelo seu tom irascível e por ser uma pessoa introvertida. É interessante. Verifica-se que ele era, assim como D. Pedro II, que foi um grande imperador, uma pessoa preocupada com as questões da cultura. Carlos Gomes pôde ir adiante por causa do apoio e da presença de D. Pedro. É lamentável um País como o nosso não se valorizar, não dar o peso e o significado à sua cultura. O que nós, povo brasileiro, conhecemos de Carlos Gomes é a abertura musical de a Voz do Brasil. Não sei se é por isso que as rádios particulares são contra esse programa.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Nem é mais; até isso tiraram.
O Sr. Pedro Simon - Tiraram?
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Depois voltou. Durante um certo tempo saiu, ficou Aquarela do Brasil, mas agora voltou.
O Sr. Pedro Simon - O pronunciamento de V. Exª tem um profundo significado, porque é uma análise feita sobre um compositor que possui importância, presença e lugar em nossa cultura, mas o Brasil, infelizmente, não sabe disso.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - É verdade.
O Sr. Pedro Simon - O que dói para o Brasil é ver realidades como esta. Claro que outros Carlos Gomes, outros gênios como ele não passariam despercebidos. Mas quanto temos de artistas, de menor projeção, mas de importância, que não são conhecidos pelo Brasil? Felicito V. Exª pela grandeza do discurso. Pensava eu que quem não estivesse hoje no Rio de Janeiro, na disputa entre Flamengo, Fluminense e Vasco, estaria na disputa entre o Conde e o PSDB. V. Exª, com grandeza de espírito e tranqüilidade, apesar da disputa eleitoral no seu Estado, vem ao plenário do Senado falar sobre Carlos Gomes, fazendo um belíssimo pronunciamento. Meus parabéns a V. Exª.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - V. Exª me honra sobremaneira. Sou uma pessoa despreparada para o elogio, embaraçando-me quando recebo palavras de Senadores como V. Exª e Iris Rezende.
Minha fala de hoje se justifica por ser o dia 16 de setembro o centenário de morte de Carlos Gomes. Confesso que também gostaria de falar sobre um outro grande compositor brasileiro, cujo centenário de nascimento comemora-se nesse mesmo dia. Falo de Eckel Tavares, um alagoano de grande talento. Ao mesmo tempo, lembro-me que há um romance de Rubem Fonseca, O Selvagem da Ópera, que é justamente fascinado pela temática da vida de Carlos Gomes, que é uma obra importantíssima. É de alguma maneira importante também que a divulguemos aqui, pelo trabalho desse literato.
O Sr. Edison Lobão - Permite V. Exª um aparte?
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço V. Exª com prazer.
O Sr. Edison Lobão - Senador Artur da Távola, eu deveria ocupar a tribuna logo após V. Exª para tratar de um assunto de natureza técnica. Vou desistir de fazê-lo. Chega a ser dramático, quase uma armadilha falar, depois de V. Exª, desta tribuna, sobretudo com V. Exª falando, esgrimindo quase, a respeito de Carlos Gomes. As palavras do Senador Artur da Távola podem ser recolhidas, e com elas podemos compor um belo poema nesta tarde do dia 11 de setembro de 1996. Essa figura extraordinária que foi Carlos Gomes, um ícone da cultura brasileira, tem que ser reverenciada neste plenário vez por outra, até para que possamos quebrar a rigidez das questões aqui tratadas, muitas das quais de natureza técnica. Com o brilho de V. Exª, o talento que todos nós aprendemos a admirar neste Senador extraordinário que o Rio de Janeiro nos manda, este Plenário fica, realmente, embevecido. Cumprimento V. Exª pela escolha do tema e cumprimento sobretudo - este é um cumprimento permanente - pela inteligência, pelo brilhantismo e pelo profundo talento que V. Exª trouxe para este Senado.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Muito obrigado, Senador. V. Exª também me honra muito com suas palavras.
Recordo-me que em As Confissões, Santo Agostinho dizia, no capítulo sobre as tentações - há várias tentações, da carne, da mesa - que a mais difícil é a tentação do louvor, porque a tentação do louvor é aquela que nos pega por quem nos quer bem e no lado mais fraco nosso e mais necessitado de merecer algum louvor. Por isso, diante dela, somos absolutamente sem forças. Uma observação muito interessante, e eu fico absolutamente sem força diante de um louvor imerecido, mas tão sincero, por parte do discurso de V. Exª. Quero pedir a V. Exª que não deixe de fazer o seu pronunciamento, até porque os problemas estão aí e a vida continua, e dizer que não pôde haver melhor fecho para o meu discurso do que os três apartes recebidos.
Muito obrigado, Sr. Presidente.