Discurso no Senado Federal

ASSINALANDO A PASSAGEM DO 'DIA DA CRIANÇA'. GRITO DE ALERTA SOBRE A SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS NO BRASIL. PROBLEMATICA DOS 'MENINOS E MENINAS DE RUA'. PREMENCIA DA APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • ASSINALANDO A PASSAGEM DO 'DIA DA CRIANÇA'. GRITO DE ALERTA SOBRE A SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS NO BRASIL. PROBLEMATICA DOS 'MENINOS E MENINAS DE RUA'. PREMENCIA DA APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
Publicação
Publicação no DSF de 15/10/1996 - Página 16969
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, MENOR ABANDONADO, CRIANÇA, ADOLESCENTE, OCORRENCIA, EXPLORAÇÃO SEXUAL, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, ZONA RURAL, ESPECIFICAÇÃO, CULTIVO, AÇUCAR, SISAL.
  • DEFESA, URGENCIA, APLICAÇÃO, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, GARANTIA, CUMPRIMENTO, ARTIGO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, REFERENCIA, ASSISTENCIA, CRIANÇA, ADOLESCENTE, PAIS.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no último dia 12 comemorou-se no Brasil o Dia da Criança, com muita ênfase, até mesmo comercial. E aproveito a oportunidade para trazer a esta Casa um grito de alerta sobre a triste situação da maioria das crianças brasileiras.

Não haverá real horizonte para o País enquanto milhares de crianças continuarem desassistidas em suas necessidades - alimentação, saúde, educação, assistência social - e enquanto não forem criadas perspectivas mais luminosas, como crescer em famílias onde predominem a esperança e o amor.

Séculos de um modelo social e econômico excludente tendem a escamotear o que deveria ser óbvio: a questão da criança é um ponto decisivo dentro da problemática brasileira, seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as questões nacionais.

O grau de civilização e avanço de uma sociedade não se exprime somente em termos de progresso econômico, de uso e criação de tecnologias ou mesmo de atividades culturais, mas é também avaliado pelo que é feito em favor da justiça social. E, nesse contexto, um lugar reservado às crianças é primordial.

Os problemas por que passa grande parte de nossas crianças são bem conhecidos, como afirmei: desnutrição, desassistência à saúde e à família, educação inexistente, vida nas ruas como forma de subsistência e, o mais dramático, para fugir de lares cruéis, a tragédia da opção - que não é opção - pela prostituição e exploração do trabalho infantil.

Sobre o trabalho infantil, parece que a sociedade e o Poder Público despertaram para esse grave problema que rouba a infância de milhões de crianças e adolescentes brasileiros, privando-os da convivência saudável das brincadeiras da infância.

Cabe lembrar que a Constituição proíbe qualquer trabalho antes de a criança completar 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, situação permitida apenas a partir dos 12 anos. Mesmo assim, a atividade deve ser reconhecidamente leve, excluindo-se, por exemplo, o trabalho exercido em indústrias, oficinas e agricultura.

Estando a criança ou adolescente trabalhando, é fundamental que lhe seja assegurada oportunidade de educação, mas, na prática, não é o que acontece. As crianças e adolescentes não aparecem nas estatísticas oficiais, não têm direitos trabalhistas e nem benefícios previdenciários. Elas integram a chamada mão-de-obra invisível; no entanto, segundo a Organização Internacional do Trabalho, formam no Brasil um silencioso exército de 7,5 milhões de crianças e adolescentes que praticamente não têm infância e trabalham como adultos.

A situação é tão dramática que os fiscais do Ministério do Trabalho já presenciaram crianças de chupeta na boca e uma enxada na mão. No meio rural, as crianças ingressam no trabalho a partir dos seis ou sete anos de idade, trabalham em média 10 horas em troca de uma remuneração que varia de 2 a 6 reais por dia. Esses valores são ainda inferiores se a mão-de-obra é feminina.

A maioria das crianças e adolescentes sequer vêem o resultado de seu trabalho, porque o dinheiro vai direto para as mãos dos seus pais, para complementação da renda familiar. O trabalho dessas crianças não é reconhecido, principalmente quando se trata de uma empreitada onde os jovens entram como mão-de-obra auxiliar dos pais.

O emprego da mão-de-obra infantil na agricultura pode ser constatado em quase todas as regiões do País: em São Paulo, na colheita de laranjas; no Rio de Janeiro, na colheita de cana-de-açúcar; em Goiás, nas lavouras de tomate; em Mato Grosso do Sul, nas carvoarias e na colheita da erva-mate.

No Nordeste, a maioria das crianças trabalha na cultura da cana-de-açúcar. Somente na Zona da Mata pernambucana são mais de 70 mil crianças e adolescentes, o que representa cerca de 30% da força de trabalho do setor canavieiro. Nos períodos de moagem de cana, esse número pode chegar a 120 mil crianças. Na Bahia, concentram-se 85% na produção do sisal. A atividade se espalha por cem municípios baianos e envolve cerca de um milhão de pessoas, das quais 25% são crianças e adolescentes, que ganham em média cinco reais por semana para tratarem o sisal.

Levantamentos já demonstram cerca de 1.500 mutilados na região sisaleira. Não há visão mais estarrecedora do que o atraso tecnológico empregue na produção de sisal. O interior de uma batedeira de sisal é uma viagem no tempo aos primórdios da revolução industrial, quando o trabalho era sinônimo de névoa, tosse e rostos infantis enrolados em pedaços de trapo para proteger do corpo do primitivismo da produção.

Diz o documento recente, divulgado pela Contag:

      "No Sul do Brasil, predomina a exploração sexual de crianças e adolescentes que migram do interior para as cidades. Na Região Norte, principalmente nos Estados de Rondônia e Amazonas, a prostituição infantil também é apontada como um dos mais graves problemas da Região. A geografia da infância perdida concentra-se principalmente na região açucareira, na produção de sisal, mas as crianças também dão duro na produção de fumo no interior de Alagoas, nas regiões salineiras do Ceará, do Piauí e do Rio Grande do Norte, onde elas chegam a formar 70% dos trabalhadores que fazem o ensacamento do produto. Na Paraíba, fabricam redes, colchas e mantas. Em São Paulo, além da colheita de laranja, também trabalham nas indústrias de calçados do interior, convivendo com a cola de sapateiro."

Nunca é demais lembrar o art. 227 da Constituição brasileira, que trata do dever da família e da sociedade na defesa e na proteção dessas crianças.

Lembrei-me de uma certa ocasião em que uma multidão tratava de uma série de assuntos, e lá os adultos queriam impedir a presença de crianças. Um certo homem, com muita sabedoria, disse à multidão: "deixai vir a mim os meninos, porque dos tais é o reino dos céus". Quem disse isto foi Jesus, porque entendia que a prioridade deveria ser dada àquelas crianças, pois a partir da sua convicção de fé teriam absoluta certeza da sua entrada no céu. A partir da concepção de políticas públicas inexistentes não tinham nenhuma certeza de que poderiam ter vida.

Ele disse: "crescei, multiplicai e enchei a face da terra"; e tem que ser menino, tem que ser criança para depois ser adulto e poder multiplicar. Porém, não apenas de pessoas, de indivíduos, é de mão-de-obra neste sistema que estamos vivendo, mas também da educação, lazer e prazer que não devem ser negados a nenhuma criança. Criança, independente da sua classe social, da cor da pele, é criança. Diz a nossa Constituição que ela deve ser protegida pela família, pela sociedade.

Por que esse tema não sensibiliza a ponto de priorizarmos, em nossas discussões acerca das relações de trabalho, o trabalho infantil, que continua, na minha avaliação, a ser um trabalho escravo? Isto cria uma sociedade excludente de bens comuns, como a educação, a saúde e a proteção, em relação à infância e à adolescência.

Não podemos conviver ainda com situações idênticas àquelas por mim vividas há cinqüenta anos, em que as crianças de ontem, que são os adultos de hoje, continuam na mesma perspectiva. Se somos adultos, temos como prioridades políticas, nos nossos discursos, as crianças; se somos crianças, temos a esperança de que os adultos poderão mudar os nossos destinos.

Todavia, quer nos parecer que convivemos naturalmente com o mesmo quadro: crianças sendo exploradas na sua mão-de-obra, crianças sendo desassistidas e abandonadas nas calçadas das ruas, crianças sendo prostituídas.

Eu serei incansável, Sr. Presidente. Serei incansável porque tive a oportunidade de conviver com as tragédias infantis e de vivê-las eu própria. Contudo, de uma coisa tenho absoluta certeza: foi importante, em minha vida de menina de rua, o fato de haver um Poder Público que, na época, garantia a escolaridade.

Então, eu vivia realmente na miséria, no abandono, porque os meus pais não tinham os recursos necessários para me sustentar, mas não ficava desassistida porque eles, no seu orgulho de pais, me abrigavam num barraco feito de papelão, de outra vez, em um barraco de caixote e, depois, de estuque. Não importa, eu tinha onde reclinar a cabeça quando saía da rua, do trabalho e voltava para a casa. Mas algo ajudou, consideravelmente, essa menina Benedita da Silva há 50 anos: a escola.

Naquela época, a criança, por mais pobre que fosse, tinha garantida uma vaga na escola. Isso me ajudou, pelo menos o primário eu pude cursar. Depois, as coisas ficaram difíceis, porque para o nível seguinte eu tinha que ter QI: "Quem Indicasse". Como não o tinha, cursei só o primário.

Cresci, tornei-me adulta e só, então, fui concluir os meus estudos. Tive a oportunidade de freqüentar duas universidades, mas com os mesmos sacrifícios. Se não fosse aguerrida teria dado aos meus filhos um pior destino do que o meu, porque, nas atuais condições sociais, eu não poderia dar-lhes a proteção que deveria. As escolas e o poder público já estavam fechando as suas portas para a população pobre, a escola pública já não garantia mais vagas, no I grau, para as nossas crianças.

Mas a força, a coragem, a experiência da universidade da vida me fizeram dar aos meus filhos a condição de ir para a escola, ainda que, para isso, eu tenha me submetido a ganhar um salário baixíssimo. Para garantir a bolsa dos meus filhos, eu trabalhava mais de 12 horas por dia.

Conto essa história aqui, porque me parece que ela sensibiliza apenas os que dela participaram. Por que não abordarmos a exploração existente do trabalho infantil, quando tratamos da questão da reforma agrária? Por que não tratarmos da exploração dessas adolescentes, dessas meninas, quando versamos, por exemplo, sobre a questão da mulher, como um todo? Quando falamos de crianças, reafirmamos que é preciso desenvolver o País economicamente e priorizar políticas sociais, cujas referências estejam voltadas para elas, porque não é possível abandoná-las, deixá-las sem recurso algum para sobreviver. E, para isso, o conhecimento é fundamental. É necessário que elas recebam a profissionalização, mas com uma visão de mundo diferente, e não de confinação, para que não sejam impedidas de disputar no mercado. Se a profissionalização fizer com que sejam consideradas mão-de-obra desqualificada, elas não terão, por conseguinte, um salário digno e não poderão, evidentemente, como cidadãs, construir a sua família dando-lhe o necessário e, assim, cumprir o artigo 227 da nossa Constituição.

Foi lindo! Tivemos condição de levar os nossos filhos para passear, demos presentes para eles, presenteei os meus netos, porque não poderia deixar de fazê-lo, mas com o sentimento e o conhecimento de que milhares e milhares de crianças não puderam, como os meus netos e como os nossos filhos, festejar de maneira digna o "Dia da Criança."

Todo dia é dia da criança, e 12 de outubro é um dia especial. Mas essa data comemorativa não existe para os meninos e meninas de rua que estão abandonados, marginalizados e sendo prostituídos. Nesse dia especial, essas crianças poderiam ser alvo de uma iniciativa política que acabasse, de uma vez por todas, com essa coisa indigna que se chama "Meninos de Rua".

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi elaborado tendo por base reivindicações daqueles que trabalham com crianças e têm por finalidade permitir o envolvimento da sociedade, dos políticos, do Executivo, do Judiciário, dos movimentos, da Igreja com essas crianças para que elas se multipliquem com responsabilidade, para que tomem as nossas cidades, cantem em nossas praças, mas que não deixem de ser crianças. Isso será impossível sem a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O presente que poderíamos dar a todas essas crianças seria a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse Estatuto não está voltado apenas para a criança carente, ele garante à criança brasileira que o art. 227 da Constituição brasileira seja cumprido. Como disse no início da minha exposição, criança é criança em qualquer classe social.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/10/1996 - Página 16969