Discurso no Senado Federal

JUSTIFICANDO PROJETOS DE LEI DO SENADO 209/96, QUE ALTERA OS ARTIGOS 205, 206 E 207, DO CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL, 210/96, QUE VEDA AO PODER PUBLICO ESTABELECER AS EXIGENCIAS QUE ESPECIFICA, E 211/96, QUE AUTORIZA A COMPENSAÇÃO DE CREDITOS DO SUJEITO PASSIVO CONTRA CREDITOS DA FAZENDA PUBLICA, DE SUA AUTORIA.

Autor
Geraldo Melo (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RN)
Nome completo: Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL.:
  • JUSTIFICANDO PROJETOS DE LEI DO SENADO 209/96, QUE ALTERA OS ARTIGOS 205, 206 E 207, DO CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL, 210/96, QUE VEDA AO PODER PUBLICO ESTABELECER AS EXIGENCIAS QUE ESPECIFICA, E 211/96, QUE AUTORIZA A COMPENSAÇÃO DE CREDITOS DO SUJEITO PASSIVO CONTRA CREDITOS DA FAZENDA PUBLICA, DE SUA AUTORIA.
Aparteantes
Bello Parga.
Publicação
Publicação no DSF de 22/10/1996 - Página 17309
Assunto
Outros > CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL.
Indexação
  • JUSTIFICAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, ALTERAÇÃO, ARTIGO, CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL, EXTINÇÃO, EXIGENCIA, BUROCRACIA, AUTORIZAÇÃO, COMPENSAÇÃO FINANCEIRA, CREDITOS, SUJEITO PASSIVO, OPOSIÇÃO, FAZENDA PUBLICA.

O SR. GERALDO MELO (PSDB-RN. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, aproveitando essa habitual tranqüilidade das segundas-feiras, venho a esta tribuna para consignar os termos, as razões e os fundamentos de três projetos que apresentei à consideração desta Casa na última semana.

Há muito tempo, procuro fazer sentir aos meus Pares a convicção de que é chegado o momento de se transformar o discurso democratizante que tomou conta do País na fase crepuscular do período autoritário - e ecoa, até hoje, como um compromisso e um desafio a todos nós - em algumas coisas concretas, que vão além da vibração demagógica ou da gratuidade com que muitas vezes as questões são analisadas.

Na minha maneira de ver, a democracia é um cenário de liberdade, de legalidade, de normas e regras escritas a que todos aderem e respeitam. A democracia se constrói, se elabora, no sentido de garantir a cada cidadão o tipo de vida que lhe assegure desfrutar daquelas conquistas essenciais que constituem os valores básicos em que se fundamenta a concepção do Estado democrático.

Temos convivido no Brasil, entretanto, com um tipo de cultura que permitiu que mudássemos, com o fim do chamado período autoritário, a arquitetura formal das instituições; mas ainda não permitiu que os cacoetes e vícios autoritários fossem expungidos, eliminados da própria postura dos agentes do Estado.

Na fase atual do Brasil, não fora a segurança que inspira no povo brasileiro a presença de um homem da envergadura, do compromisso democrático do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a sua intrínseca adesão à democracia como uma postura pessoal que o impede de ultrapassar os limites do tolerável e do aceitável, não fora, portanto, a sua presença no comando do País, e um pouco mais de irresponsabilidade por parte do Estado, permitiria lançar mão de instrumentos que ainda estão à disposição dos agentes do Estado, que, na verdade, sufocam o cidadão nas coisas mais elementares.

E foi pensando nisso que, por intermédio de três projetos, propus a esta Casa algumas iniciativas que penso representarem uma contribuição concreta para reduzir o componente autoritário na relação do Estado com o cidadão, em que o Estado - ou cada pessoa investida de poder - se sente instantaneamente também tocado pelo sentimento de olhar para o cidadão como um soberano olha para o súdito. Essa atitude, essa postura precisa terminar um dia. Que dia será este? A que distância estamos dele? Não sei. Sei que não será de repente, num abrir e fechar de olhos, que se vai fazer isso; sei que Roma não se fez num dia, mas também sei que a marcha de mil milhas começa com o primeiro passo - e é preciso dar o primeiro passo.

Vivemos num país em que o Estado não se organizou. Ainda não foi capaz de transformar em mecanismos eficientes de controle as notáveis conquistas atuais da informática, as possibilidades enormes que os novos recursos e técnicas gerenciais oferecem a todas as instituições e entidades organizadas no mundo. Que faz o Estado para defender os seus interesses? Presume e se comporta como se todo cidadão, em princípio, estivesse em situação irregular para com o Estado, pois o conceito burocrático dominante, incorporado à legislação das maneiras mais amplas e nos instrumentos legais múltiplos em todas as frentes, é o de que, para ter acesso a determinados benefícios do Estado, o cidadão deve requerer o que presume que a autoridade pode negar o que está sendo pedido; segundo, deve instruir o seu requerimento com um caminhão de certidões e papéis e de comprovação de que não é um daqueles bandidos que a burocracia presume que cada cidadão seja.

A exigência de certidão negativa para se obter alguma coisa é uma dessas manifestações autoritárias, pois se o Estado não quer conceder a alguém, ou não pode ou não deve conceder a alguém o usufruto de algum direito, de algum benefício, se esse alguém estiver em falta com suas obrigações, compete ao Estado saber quem está em falta e não aos cidadãos baterem à porta das repartições levando comprovações de que não são inadimplentes, não são caloteiros, não são tardios no cumprimentos de suas obrigações.

Há um exemplo elementar que mostra a diferença entre essa visão da burocracia autoritária e a visão de muitos que gostariam que o Brasil se transformasse num país de Primeiro Mundo.

Vejam o que ocorre nos Estados Unidos numa situação concreta. Por exemplo, uma infração de trânsito cometida por um estrangeiro, um turista que, após uma semana, voltará para casa. Se ele não pagar a multa, não embarca. Mas ele não tem de levar para o aeroporto uma certidão negativa; ao se apresentar no balcão da companhia aérea, que em geral não é uma companhia americana, e entregar seu bilhete para ser marcado e o seu passaporte, ele terá o desprazer de ouvir do funcionário da Varig, por exemplo, que não poderá embarcar, pois está devendo ao Tesouro americano. O que quer dizer que o Tesouro americano se organiza para saber quem está devendo a ele, mas não pede a cada cidadão que ande nas ruas dos Estados Unidos com um quilo de certidões negativas penduradas no pescoço. Compete ao Estado saber quem deve a ele.

Em vista disso, um dos projetos apresentados, que tomou o número 209, altera dispositivo do Código Tributário Nacional e lida com a questão do abuso praticado pelo Estado na exigência aos cidadãos do cumprimento de formalidades que ele, Estado, deveria estar preparado para não precisar. Um exemplo que dou sempre é o requerimento de aposentadoria. Um cidadão que cumpriu a obrigação legal de contribuir para a Previdência durante 30, 35, 40, 50 ou 100 anos cumpriu todas as obrigações que a lei lhe impõe. Quando cumpriu, ele é obrigado, para aposentar-se, a requerer a uma autoridade que lhe conceda a aposentadoria.

Se ele comprou a sua aposentadoria ao Estado brasileiro e pagou o preço dessa compra, ele deveria ser aposentado automaticamente. Ele deveria requerer à Previdência não se aposentar. Se deseja continuar no serviço ativo por mais dois ou três anos, ele deveria requerer não se aposentar. Requerer aposentar-se depois de haver pago corretamente durante não sei quantos anos presume, em primeiro lugar, que a autoridade a quem ele dirige o seu requerimento, que sempre termina dizendo que nesses termos pede deferimento, pode indeferir.

A autoridade no Brasil não indefere. Pede ao requerente que vá buscar os papéis que comprovam que ele contribuiu. E essa exigência é um abuso que está na hora de acabar. Que se dê um prazo à Previdência para que se organize, de um, dois, cinco, dez anos, penso que deve ser dado. Mas que se pense que isso pode ser mantido e tolerado por cidadãos que desejam ver seu país incorporar métodos, hábitos, procedimentos de países adiantados, que costumamos agora chamar de países do Primeiro Mundo, isso não. Está na hora e teremos que interromper.

O Sr. Bello Parga - Senador Geraldo Melo, V. Exª me permite um aparte?

O SR. GERALDO MELO - Com muito prazer, nobre Senador Bello Parga.

O Sr. Bello Parga - Ilustre Senador Geraldo Melo, ecoa muito bem em mim as palavras que V. Exª diz, aludindo a um projeto de modificação que altera o Código Tributário Nacional. Efetivamente a posição soberana do Estado é a que V. Exª definiu. O cidadão, acima de tudo, tem que ser um obediente, senão um súdito da ação coercitiva do Estado. V. Exª, particularizando mais o seu raciocínio, citou o caso da aposentadoria. Quero dizer a V. Exª, só para dar como exemplo - já lá vão dez anos - em março de 1986, quando requeri minha aposentadoria, só me foi deferida em agosto de 1986, cinco meses depois, num regime inflacionário em que não houve correção de espécie alguma. E eu, como cidadão, me vi mais uma vez em situação igual aos milhões que são prejudicados por essa posição essencialmente e terrivelmente burocrática do Estado. Quero dizer a V. Exª que fico satisfeito com o seu pronunciamento, como aliás sempre ocorre, pela lucidez, pela inteligência, pela oportunidade, e tenho que acrescentar apenas que V. Exª terá o acompanhamento do meu voto nessa importante modificação que V. Exª quer impor ao Código Tributário Nacional.

O SR. GERALDO MELO - Senador Bello Parga, agradeço muito a V. Exª. Fico honrado com o seu aparte, cujo comportamento no Senado mostra não apenas competência e preparo, como também muita seriedade e muito amor ao Brasil.

Dentro do mesmo tema, há duas outras medidas que se inserem no mesmo espírito do que estou defendendo. Uma outra medida implica também mudanças no Código Tributário, que, pura e simplesmente, autoriza a compensação de crédito como forma de pagamento de dívida.

É bom lembrar que o nosso Código Tributário é de 1966. Portanto, esse código é uma daquelas coisas que os democratas que se sucederam no poder nunca se lembraram de incluir na lista do chamado entulho ou lixo autoritário.

Há situações nesse código que já não têm mais cabimento. O contribuinte só pode pagar impostos em dinheiro em estampilhas, mas, se ele tiver títulos da dívida pública ou se for credor da Fazenda Pública, ele é executado pela Fazenda Pública por que está devendo. A Fazenda Pública está devendo ao contribuinte, e ele não pode sequer pagar a sua dívida com o crédito que tem contra a Fazenda Pública.

O encontro de contas é uma instituição da prática de negócios anterior à nossa civilização. O ato de comprar, quando envolve um troco, envolve também uma compensação. Alguém recebeu algo, ficou devendo uma quantia e vai receber um troco, porque deu mais dinheiro do que devia, recebe uma mercadoria e acima da mercadoria um troco. O que houve foi um encontro de contas entre as duas partes.

O Estado brasileiro se recusa a fazer isso e ainda se vale de uma instituição que se está acabando no mundo: o precatório. O cidadão brasileiro, o homem comum, se for condenado pela Justiça a pagar alguma coisa ao Estado, será executado, terá os seus bens tomados, seqüestrados ou penhorados, porque tem que pagar. Entretanto, se o Estado dever a ele, a Justiça vai mandar um precatório para que se inclua no orçamento e, se chegar aos organizadores do orçamento até tal data, para que aquilo seja pago no ano seguinte. O pretexto é: o Estado não poderia pagar algo que não está previsto no orçamento. Mas não é necessário que o orçamento preveja um pagamento a fulano de tal; bastaria que existisse, no orçamento, uma dotação destinada a pagar encargos decorrentes de sentenças judiciais transitadas em julgado. Somente com isso o precatório estaria extinto.

Então, por causa disso, estamos propondo também que, além das estampilhas, do dinheiro e das outras modalidades de pagamento admitidas pelo Código Tributário, se admita também o encontro de contas.

Essa idéia tem em si alguma coisa que protesta também contra esse conceito do título podre. O conceito do título podre é o de que um título que o Governo dá no mercado pode não ser um título bom. O Governo se recusa a receber um título que ele próprio emitiu por entender que aquele é um título podre. Por exemplo, acusa-se o Governo de receber títulos podres como moeda no Programa de Privatizações, e eu gostaria que alguém me explicasse o que vêm a ser, a menos que exista alguma semelhança com o conceito que um amigo meu do Rio Grande do Norte tinha de seus próprios cheques. Permito-me contar sua estorinha daqui desta tribuna.

Alguém tinha o hábito de jogar cartas todas as noites, mas perdia sempre e pagava seus débitos com cheques sem fundo. Uma noite, ganhou muito dinheiro na mesa de jogo, com os mesmos parceiros. Na hora do acerto de contas, disse a todos: "Vou logo avisando que cheque meu eu não recebo".

O cheque daquele jogador representa a moeda podre de que se fala hoje sobre os títulos do Governo. Isso dá bem a idéia do encontro de contas de alguém que tenha a pagar à Fazenda Pública, mas que tenha dela também a receber, e essa idéia é tão elementar que não vejo razão para me alongar em sua discussão.

Em último lugar, uma iniciativa muito simples: como se sabe, no País é comum que o Governo determine às pessoas, às instituições, às empresas que façam determinadas despesas que serão indenizadas depois. Convivi, durante minha vida inteira, com o setor açucareiro e fui testemunha de um desses casos. Quando se uniformizou o preço da cana-de-açúcar no Brasil, permanecia no sentimento de algumas autoridades certa sensação de piedade em relação aos fornecedores nordestinos. Criou-se, então, um subsídio. O Governo determinou aos industriais que pagassem aos seus fornecedores por sua conta e ordem. Os industriais comprariam a cana pelo mesmo preço de São Paulo, concedendo entretanto - por conta do Governo, frise-se - um adicional que, em alguns casos, chegou a 40% do preço do produto. Os industriais pagavam em uma quinzena e, apesar da inflação corrente, o Governo indenizava, sem correção, na quinzena seguinte. Isso se deu até que o Governo se cansou de indenizar, não mais o fazendo em quinzena alguma. Anos depois, cobrado daquela despesa que cada um fizera por sua ordem, o Governo resolveu securitizar. Ou seja, unilateralmente, modificou o critério do contrato que a lei gerara, mandando que se fizesse o pagamento para ser restituído quinze dias depois, e securitizou aquela dívida. Isso quer dizer que reconhecia seu débito junto às empresas, mas em vez de pagar com dinheiro, pagaria com títulos da dívida pública resgatáveis em tantos anos.

Consultados, os industriais concordaram - como se estivessem a opção de não concordar - e partiram animadamente para receber os seus títulos. Tiveram então a surpresa de saber que só receberiam os títulos se cada um apresentasse um caminhão de certidões negativas. Essas certidões não foram exigidas das empresas na hora em que o Governo mandou que elas gastassem o dinheiro, mas, na hora de pagar, ele passou a exigir essas certidões. Estas chegavam, e novas exigências eram feitas, de forma que, ao se cumprirem as últimas exigências, as primeiras certidões já estavam vencidas e era preciso tirar novas certidões. Até que os poucos que conseguiram cumprir todas as exigências foram inteirados de que o Governo tinha decido criar o Cadin, e muitas empresas que tinham atrasado as suas obrigações, exatamente porque não tinham recebido aquele dinheiro, estavam agora impedidas de recebê-lo porque tinham atrasado as obrigações.

Diante desse universo kafkiano, em que se lida com os contribuintes, com os cidadãos à base da mais completa insolência, do mais completo desapreço, do mais total desrespeito, poderíamos tomar simples medida que proponho: o Poder Público ficaria impedido, na hora de pagar ou de cumprir alguma obrigação, de criar condições que não existissem no momento em que a obrigação fosse constituída; aplicar-se-ia ao setor público aquilo que se aplica a todos nós, mortais.

Não há nenhum cidadão, empresa ou organização fora do Estado que tenha o direito de dizer, no momento em que lhe cobram uma conta, que não pagará, porque adotou norma ou baixou um decreto segundo o qual o pagamento só se efetuará se o credor apresentar determinado documento.

Penso que o Estado não continua a realizar essa truculência e só não vai aos limites do absurdo porque, felizmente, temos à frente do País um homem como o Presidente Fernando Henrique Cardoso, com espírito democrático, capacidade de discernimento e senso de responsabilidade.

Assim como tivemos, durante muito tempo, alguém que vejo à minha frente e com quem tive a honra de conviver - S. Exª, Presidente da República, eu, Governador de Estado -, que foi e é para mim um exemplo, um padrão de homem público, de democrata, a quem faço questão de referir-me aqui, reiterando as manifestações de respeito e apreço que sempre tive publicamente por S. Exª, que é o Presidente José Sarney.

O Sr. José Sarney - Muito obrigado.

O SR. GERALDO MELO - Trago essas proposições para discussão da Casa não na esperança de ser autor ou reformador da realidade do Brasil, mas na expectativa de contribuir para a discussão de temas que, a meu ver, representam o primeiro passo na grande marcha que o povo brasileiro precisa empreender para que a nossa democracia deixe de ser apenas a pantomima de instituições formais e passe a ser uma realidade palpável na vida de todos os cidadãos.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/10/1996 - Página 17309