Discurso no Senado Federal

O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 25/10/1996 - Página 17649
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PAIS.
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, PERIODICO, ISTOE, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DIVULGAÇÃO, RESULTADO, PESQUISA, CONFIRMAÇÃO, EXISTENCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, SOCIEDADE.
  • SAUDAÇÃO, LANÇAMENTO, PERIODICO, RAÇA BRASIL, DESTINAÇÃO, CLASSE MEDIA, GRUPO ETNICO, RECONHECIMENTO, DIREITOS, NEGRO.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje é o dia dedicado à democracia - que deveriam ser todos os dias.

Quero homenageá-la, trazendo uma contribuição sobre um tema que é muito importante para todos nós: o racismo.

Se existe uma ideologia brasileira - isto é, um conjunto de idéias pelas quais a nossa civilização descreve, explica e justifica a si mesma, mesmo que não corresponda a uma realidade -, ela tem, entre seus pilares, os mitos da não-violência e da igualdade racial. Mitos antigos e, por isso mesmo, arraigados em nossa auto-imagem, vêm constituindo verdadeiros obstáculos para o autoconhecimento da cultura brasileira e para a realização de mudanças em nosso comportamento social, que se fazem mais urgentes a cada dia.

O caráter pacífico e não-violento do brasileiro é, até certo ponto, uma inverdade histórica que fomos capazes de inventar. Não fossem suficientes, para desmentir esse mito, episódios do passado, como as Guerras do Paraguai e de Canudos - quando o Brasil oficial aniquilou o oponente, em vez de se limitar a derrotá-lo militarmente -, bastaria analisar com isenção as tensões sociais de nossos tempos, em que se manifesta uma crescente violência e criminalidade urbana, como também conflitos fundiários. Matar tem sido coisa fácil, na cidade e no campo, por um par de tênis ou por alguns hectares de terra - às vezes, por muito menos do que isso.

As chamadas "causas externas de violência" já ocupam o segundo lugar como causa de mortalidade no Brasil. Este é um dado importante. Acidentes, homicídios, suicídios, acidentes de trânsito, tudo isso já constitui a segunda causa de morte no Brasil.

O pior é que, neste País supostamente pacífico, há ainda os que, embora justamente aterrorizados com a escalada da barbárie, vêm defender, contraditoriamente, o uso de mais violência contra violência, escudando medidas reconhecidamente inócuas, como o agravamento das penas para os cometedores de crimes violentos ou propostas como a da redução da maioridade penal, como há pouco fazia o Senador José Bonifácio, justificando o seu ponto de vista.

Esse, porém, não é o tema que desejo abordar. Quero chamar a atenção para o outro pilar fundamental a que me referi: o mito da democracia racial.

Começarei com um exemplo simples, mas ilustrativo da nossa capacidade de ocultar pecados, semelhante ao do macaco da fábula, que só via a cauda dos demais. Tem sido comum, desde muito tempo, compararem-se as situações dos contrastes e conflitos raciais no nosso País e nos Estados Unidos. Foi sempre cômodo chamar a atenção para as tensões claras, explícitas, que lá existem, e contrastá-las com a aparente tranqüilidade vigente no Brasil.

Aqui não surgiram, por exemplo, movimentos como a Ku Kux Klan, sociedade "secreta" criada logo após o fim da guerra civil, dedicada estatutariamente a impedir o exercício, por partes dos ex-escravos, de quaisquer direitos que lhes viessem a ser concedidos pelo governo americano.

Ao contrário dos Estados Unidos, nunca houve entre nós, desde a Abolição, qualquer dispositivo legal que determinasse os lugares que negros e brancos devam ocupar em veículos coletivos, restaurantes, banheiros públicos - injustiça absurda que foi o estopim da revolta cívica do grande Líder negro Martin Luther King.

Por outro lado, a impressão de harmonia pode decorrer também do fato de que, nos Estados Unidos, não existe toda essa gama de tons de pele que caracteriza os brasileiros, resultando intensa da miscigenação.

Tais fatos inegáveis parecem confirmar a noção segundo a qual as relações inter-raciais no Brasil são pacíficas e igualitárias. Ao acreditarmos nisso, porém, caímos na chamada "armadilha ideológica": enxergar somente o que julgamos ou queremos ver, e não aquilo que está diante de nossos olhos. Qualquer análise detida, fundada em índices sociais ou na simples observação de nossos costumes revela a triste verdade: sob a máscara da cordialidade há uma sociedade violenta e racista.

É manifestação de racismo, por exemplo, o fato de a classe média paulistana somente se haver mobilizado para reclamar às autoridades alguma ação contra a violência depois de alguns de seus jovens, brancos e louros, terem sido vítimas fatais de assaltantes. Não digo que esses assassinatos não tenham sido estúpidos, certamente o foram; o problema está na desigualdade de tratamento. Morticínios seguidos, repetidos cada fim de semana, de dúzias de outros jovens, mas pobres e negros, não haviam comovido tanta gente.

De fato, em geral, as classes abastadas nem tomam conhecimento dessas matanças ou, quando tomam, muitas vezes manifestam apoio aos grupos de extermínio, como foi visto nas pesquisas de opinião no dia seguinte ao caso da Candelária, no Rio de Janeiro - para não apontarmos somente os paulistanos.

Argumentemos que o preconceito é, em parte, social, isto é, contra o pobre, não propriamente contra o negro. Argumentemos que é humano reagir somente quando a ameaça bate à sua porta; argumentemos, para agravar, que os nossos tempos são de competição e egoísmo. Tudo verdade. Não nos devemos iludir, porém: por trás da constante indiferença, num caso, e da súbita revolta no outro, está, no fundo e inquestionavelmente, uma mal-disfarçada dose de racismo. Racismo que se manifesta da maneira mais cruel: o completo desprezo pela vida humana.

Nosso racismo, que tanto tentamos camuflar, foi revelado em duas grandes reportagens, publicadas nesses últimos anos em dois dos mais importantes órgãos de nossa imprensa. Quem primeiro levantou o problema, em 25 de junho do ano passado, foi a Folha de S. Paulo, ao encartar, em sua edição daquele domingo, um caderno especial dedicado ao assunto, a que foi dado o título de "Racismo cordial". Mais recentemente, a revista IstoÉ publicou, no dia 4 de setembro, uma longa matéria intitulada exatamente "O fim do mito", em que se buscava desmascarar, mais uma vez, a mentira da nossa pretensa democracia racial.

O ponto de partida das reportagens reunidas no caderno especial da Folha de S. Paulo foi uma pesquisa de opinião, realizada pelo Instituto Datafolha, em que cada pessoa entrevistada devia primeiramente dizer se, pessoalmente, era ou não racista. Em seguida, para fazer o contraste com essa primeira resposta, as mesmas pessoas eram instadas a responder se concordavam ou não com determinadas frases, colhidas do repertório do senso comum ou da chamada sabedoria popular.

Nessas frases, por trás da aparente inocência das idéias recebidas, o racismo se manifesta às vezes tão claramente que ficamos pensando como é possível que tantas pessoas as repitam sem se darem conta de seu significado. Das doze frases utilizadas na pesquisa, selecionei duas que considero mais características desse racismo "velado", e cujo resultado, se pararmos um pouco para pensar, é um verdadeiro escândalo.

As frases que escolhi, Srªs. e Srs. Senadores, são as seguintes: "Negro bom é negro de alma branca" e "As únicas coisas que os negros sabem fazer bem são música e esporte".

A primeira frase recebeu a concordância absoluta de 35% dos brancos e de 36%, tanto dos pardos quanto dos negros; recebeu, ainda, a concordância parcial de 11% dos brancos e dos pardos e de 12% dos negros. A segunda frase, por sua vez, recebeu a concordância total de 28% dos brancos, 31% dos pardos e 30% dos negros, com a concordância parcial de 12% dos brancos, 14% dos pardos e 10% dos negros.

Esses resultados indicam que uma parte significativa dos negros introjetou o preconceito e tende, por isso, a se encolher e a não brigar por seus direitos, fato que, sem sombra de dúvida, acaba por reforçar a desigualdade e a injustiça social.

O dado mais importante, porém, é o confronto entre a auto-imagem de não-racistas que nós nos fazemos e a realidade mostrada pela concordância com tais noções pré-concebidas. No resultado global, abrangendo todas as doze perguntas, enquanto os 88% dos entrevistados diziam não ter nenhum preconceito, na resposta que deram às perguntas apenas 14% mostraram-se isentos de preconceitos. Quarenta e sete por cento demonstraram preconceito em algumas respostas, outros 4% em várias respostas, e 36% em raras respostas.

A má consciência dos brasileiros em relação ao problema, no entanto, revela-se integralmente quando os entrevistados tiveram que dizer se os brancos, em geral, têm preconceito contra os negros. Ao colocar a carapuça nos outros, é sempre fácil chegar à verdade: oitenta e nove por cento dos entrevistados disseram "sim", fração quase idêntica à dos que disseram não ter preconceito.

A pesquisa na revista IstoÉ, por sua vez, foi realizada pelo Instituto Brasmarket. Ali, dados semelhantes aos do Datafolha foram obtidos, como a opinião de 83% dos entrevistados de que existe preconceito contra negros, e de mais de 90% de que há preconceito contra pobres. A grande diferença reside no fato de que a pesquisa IstoÉ-Brasmarket concentrou-se também em avaliar preconceito contra os mestiços, manifestado no repúdio das populações urbanas das regiões Sul e Sudeste às levas de nordestinos que para lá acorreram em busca de emprego. O desejo de que o Governo tome providências para conter a imigração foi manifestado por quase 70% dos belo-horizontinos e por quase 60% dos paulistanos.

As duas reportagens coincidem quando avaliam a desigualdade de tratamento conferido a brancos e negros pela justiça. Negros são sempre mais perseguidos pela polícia: muitos são os relatos de batidas policiais em que negros são revistados com mais rigor e, naturalmente, com menos respeito. A dificuldade para um negro ter assegurado seu pleno direito à defesa é também revelada pelas estatísticas: o índice de absolvição dos brancos chega a 60%, enquanto o dos negros não passa de 27%.

Um exemplo terrível de racismo explícito foi o do digitador Luciano Soares Ribeiro, atropelado em Canoas, Rio Grande do Sul, quando passeava de bicicleta. O atropelador, que conduzia um bólido importado de alto luxo, deixou de socorrê-lo, desobedecendo à lei e aos mandamentos da solidariedade humana, escudado na estúpida alegação de que o tomara por um assaltante. Levado ao hospital por outros passantes, o médico de plantão o largou de lado para morrer, deixando de atendê-lo por acreditar também que se tratava de um marginal. O pior é que, consciente da discriminação, o rapaz, que tinha somente 19 anos, carregava sempre consigo o recibo de aquisição da bicicleta, expedido em seu nome, para poder apresentar à polícia em caso de suspeita.

Será este o país da cordialidade e da paz racial? Por ser negro, um jovem trabalhador foi automaticamente tomado por assaltante; tomado por assaltante, teve automaticamente cassado seu direito ao socorro e ao atendimento médico. Que gente é essa? Pode alguém acreditar ainda nessas balelas de não-violência e de harmonia entre as raças no Brasil?

Muita coisa há para ser feita em nosso País de modo a superarmos as barreiras que limitam a possibilidade de o negro ter reconhecidos, em sua plenitude, seus direitos e suas capacidades. É sem dúvida alvissareiro, por outro lado, o fato de podermos contar, nesta Câmara Alta, com representantes da comunidade negra, como a Senadora Benedita da Silva, como é também alvissareiro o fato de um negro liderar as pesquisas de voto para prefeito em uma cidade de espírito tão conservador como São Paulo. Ainda não há políticos negros na justa proporção que eles deveriam ter, igual à que têm no cômputo geral da população, mas é um começo.

Gostaria, porém, de saudar o lançamento de uma revista - chamada Raça Brasil - dirigida à classe média negra, iniciativa oportuna de Aroldo Macedo, editor-chefe da revista, e Roberto Melo, diretor editorial da Símbolo, editora responsável pelo lançamento. Trata-se, enfim, de um reconhecimento de que ser negro não é sinônimo de ser pobre; de que há, no Brasil, negros capazes de consumir informação e mercadorias especificamente dirigidas a eles. Isso, pelo menos, é o que revelam os dados demográficos do IBGE, segundo os quais há quase cinco milhões e meio de negros com renda familiar superior a vinte salários mínimos mensais. O sucesso do primeiro número é a marca do acerto mercadológico da decisão de editá-la, restando agora o desafio de dar-lhe continuidade. Espero que essa iniciativa não feneça, e, ao contrário, desejo que frutifique numa nova atitude da sociedade diante da questão do racismo, de modo que a democracia racial deixe de ser ideologia e passe a ser uma radiosa realidade.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/10/1996 - Página 17649