Discurso no Senado Federal

DEFESA DO SISTEMA UNICO DE SAUDE - SUS.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • DEFESA DO SISTEMA UNICO DE SAUDE - SUS.
Publicação
Publicação no DSF de 22/11/1996 - Página 18765
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • DEFESA, MANUTENÇÃO, SISTEMA UNICO DE SAUDE (SUS), PAIS.
  • CRITICA, OPOSIÇÃO, EXISTENCIA, SISTEMA UNICO DE SAUDE (SUS), MOTIVO, INTERESSE, NATUREZA FINANCEIRA, INICIATIVA PRIVADA.

           O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB--MT) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as tragédias recentes ligadas à área de saúde (episódio de Caruaru e das clínicas geriátricas do Rio de Janeiro) têm sido objeto de ampla discussão e de denúncias pela imprensa. É lamentável que as questões de saúde só ocupem o noticiário nessas situações extremas. Contudo, mais do que lamentável, é preocupante que alguns editoriais e declarações de parlamentares e técnicos imputem a culpa por tamanho descalabro ao Sistema Único de Saúde (SUS).

           Preocupante porque atrela os fatos a uma insidiosa "campanha", atualmente em curso, contra o SUS, capitaneada por grupos que se tornaram bilionários graças à exploração mercantilizada da medicina. Afinal, a quem interessa o descrédito do nosso sistema de saúde, senão àqueles setores desejosos de retomar o poder de decisão e o controle absoluto das ações políticas de saúde, para melhor negociá-las no plano da pequena política e do fisiologismo?

           A fundamentação dessa tese exige que tenhamos uma visão do papel histórico do SUS e da sua função na atual conjuntura brasileira. Para tanto, encareço a benevolência das Senhoras e Senhores ao acompanhar-me por um breve itinerário, que, acredito, poderá subsidiar a tomada de posição em relação ao tema.

           O processo que resultou na criação do SUS foi longo, meditado, discutido e representa uma solução positiva e conseqüente, em consonância com o momento sócio-econômico vivido pela sociedade brasileira. Na verdade, o sistema adotou e deu configuração a tendências que já se vinham manifestando, em diferentes instâncias. Pode-se citar, a título de ilustração, a nossa própria iniciativa por ocasião do exercício do mandato de prefeito de Rondonópolis -- MT (1983/86). Naquela oportunidade, implantamos um modelo de atendimento à saúde, premiado por autoridades de saúde pública e até organismos internacionais da área, que, embrionariamente, apresentava muitas das diretrizes posteriormente adotadas na configuração do SUS.

           Instituído pela Constituição Federal de 1988, o SUS insere-se, pois, no processo de descentralização das ações e serviços de saúde, iniciado na década de 70 com a abertura política, por meio do Programa de Extensão de Cobertura (PEC). Esse processo de descentralização tem continuidade na década de 80, com as Ações Integradas de Saúde (AIS) e, em seguida, com o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), já no governo da Nova República.

           Além do contexto político de transição para a democracia, a descentralização do sistema de saúde tem, ainda, como fator condicionante a crise econômica iniciada nos anos 80, que impõe restrições à capacidade de transferência de recursos do setor público para o privado na compra de serviços de saúde.

           As iniciativas precursoras do SUS caracterizaram-se pela descentralização das ações e serviços de saúde por meio de delegação de atribuições e responsabilidades aos estados. A principal instância de descentralização eram os estados federativos, contrariamente ao SUS, cuja descentralização tem como principal vetor o nível local, isto é, o município.

           A orientação jurídica básica do SUS encontra-se na determinação constitucional:

     "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." (art. 196 da Constituição)

           Acrescenta, ainda, a Constituição, em seu art. 198:

     "As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I -- descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II -- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III -- participação da comunidade;"

           Os princípios que orientaram a concepção do sistema, desenvolvidos de acordo com as diretrizes constitucionais mencionadas, estão explicitados no artigo 7º da Lei Orgânica de Saúde (Lei nº 8.080, de 19.07.91) e assinalam: universalidade de acesso; integralidade de assistência; preservação da autonomia das pessoas; igualdade da assistência à saúde; direito à informação; divulgação de informações; participação da comunidade; descentralização político/administrativa; conjugação de recursos financeiros.

           Para que se possa dimensionar o verdadeiro impacto dessa orientação, é preciso levar em conta as características do modelo anterior. Até o advento do SUS, o sistema público de saúde era gerenciado tanto pelo Ministério da Saúde, que cuidava dos aspectos preventivos, como pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), por intermédio do Inamps, que cuidava, de modo centralizado, das ações curativas, envolvendo diagnóstico, tratamento e reabilitação. Cabiam às secretarias estaduais de saúde as ações de saúde pública de tipo higienista e o atendimento primário, desenvolvido conjuntamente com órgãos municipais.

           Por meio de uma excessiva centralização de recursos e de poder decisório na estrutura do Inamps, a política de saúde, até meados dos anos 80, apoiou-se numa estreita parceria entre o Estado e os segmentos privados. A política implementada pelo Estado, com recursos públicos, fortaleceu o complexo médico-empresarial privado por meio da contratação de serviços hospitalares, clínicos e laboratoriais. Com esse estímulo, o setor logo passou a ser responsável por cerca de setenta por cento da oferta de serviços no País. Porém, com a implantação do novo modelo assistencial proposto pelo SUS, de corte descentralizado e municipalizado, não apenas se alteram os mecanismos decisórios e a forma de gestão da política, como, também, se observa a tendência à inversão do modelo curativo hospitalocêntrico e à perda de importância do setor privado.

           Não se pense, contudo, que a reforma do sistema de saúde implantada pelo SUS cumpriu apenas o papel de desencadeadora da ruptura com o modelo anterior. Na verdade, a reforma, impulsionada pelo desempenho de uma elite profissional e por uma conjuntura internacional favorável, obteve resultados significativos na alteração do cenário da saúde no Brasil. Para se ter uma idéia das coisas boas que o SUS faz -- e que não têm espaço no noticiário da imprensa -- basta citar alguns números, como o de quatorze milhões e quatrocentas mil internações hospitalares e o de um bilhão e meio de procedimentos ambulatoriais ao longo deste ano. Ou os seiscentos e cinqüenta milhões de dólares que serão aplicados, no corrente exercício, para a recuperação, o reequipamento e a readequação das unidades prestadoras de serviço. Serão integrados à condição de gestão integral do sistema, hoje chamada gestão semi-plena, em 96, pelo menos cento e doze municípios, o que representa um incremento de cem por cento em relação ao ano passado.

           Há muito ainda para se falar, mas um discurso não é um relatório de realizações. Contudo, Senhoras e Senhores, não é possível ficar calado e assistir, sem indignação, à sórdida investida que vem sendo feita contra o sistema. Sabe-se, entretanto, o que motiva o furor dessa investida. O modelo anterior à reforma do SUS sofreu o impacto devastador da ampliação da cobertura implícita na universalização da demanda e da conseqüente necessidade de um padrão de gasto mais elevado que o habitual, isso num período de escassez de recursos públicos, ou seja, de déficits públicos crescentes. Por isso, a reforma visou a privilegiar o setor público e a assistência primária, em detrimento do modelo baseado no predomínio da medicina privada, hegemônico nos anos 70.

           Sabemos, Senhoras e Senhores Senadores, que a reforma não se reproduziu igualmente pelo território nacional, nem estimulou relações mais solidárias e competentes entre o setor público e o privado. Sabemos, também, da incapacidade do sistema, até o momento, para integrar as diversas instituições de saúde, mesmo as públicas, num todo coerente, seja no nível municipal, seja no nível regional, considerando a hierarquia tecnológica dos serviços envolvidos.

           Acreditamos, no entanto, que o SUS ainda não está pronto e perfeito. Há problemas técnicos e estratégicos a serem superados. Afinal, essa superação faz parte de um processo de luta contínua e permanente, como a própria conquista coletiva da saúde. Todavia, não se pode desconhecer as inegáveis conquistas no que diz respeito à descentralização e à municipalização dos serviços de saúde.

           Por fim, Senhoras e Senhores Senadores, quero dizer que a defesa do Sistema Único de Saúde corresponde, de fato, à defesa de uma determinada visão de mundo e de sociedade, comprometida com os mais altos valores humanitários e de cidadania. Se acreditamos na solidariedade como valor, se consideramos como objetivos das instituições públicas acabar com a exclusão e diminuir as diferenças sociais, é essencial que juntemos nossos esforços para a viabilização de condições plenas para implantação definitiva do Sistema Único de Saúde.

           Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/11/1996 - Página 18765