Pronunciamento de Geraldo Melo em 24/11/1996
Discurso no Senado Federal
DEBATE SOBRE A PARTICIPAÇÃO DE PARLAMENTARES EM EVENTOS INTERNACIONAIS. RELATO DE SUA PARTICIPAÇÃO, COMO CONVIDADO DA UNIÃO INTERPARLAMENTAR, NA REUNIÃO DA FAO PARA DISCUTIR A QUESTÃO DA FOME NO MUNDO, REALIZADA EM ROMA, DE 13 A 17 DESTE MES.
- Autor
- Geraldo Melo (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RN)
- Nome completo: Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
- DEBATE SOBRE A PARTICIPAÇÃO DE PARLAMENTARES EM EVENTOS INTERNACIONAIS. RELATO DE SUA PARTICIPAÇÃO, COMO CONVIDADO DA UNIÃO INTERPARLAMENTAR, NA REUNIÃO DA FAO PARA DISCUTIR A QUESTÃO DA FOME NO MUNDO, REALIZADA EM ROMA, DE 13 A 17 DESTE MES.
- Aparteantes
- Marina Silva.
- Publicação
- Publicação no DSF de 25/11/1996 - Página 18949
- Assunto
- Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
- Indexação
-
- COMENTARIO, DEBATE, SENADO, PARTICIPAÇÃO, CONGRESSISTA, VIAGEM, AMBITO INTERNACIONAL.
- RELATORIO, VIAGEM, ORADOR, PAIS ESTRANGEIRO, ITALIA, ATENDIMENTO, CONVITE, UNIÃO INTERPARLAMENTAR, PARTICIPAÇÃO, REUNIÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA (FAO), DISCUSSÃO, PROBLEMA, FOME, MUNDO.
O SR. GERALDO MELO (PSDB-RN. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há poucos dias, nesta Casa, novamente debateu-se com muita veemência a participação de Parlamentares em eventos internacionais, apresentando-se todas essas viagens - sem exceção - como se fossem meros acontecimentos turísticos. Essa atitude, de certa forma, tem relação com a época em que viagem ao exterior era uma espécie de privilégio que cabia somente aos escolhidos e aos afortunados.
Como estive no exterior recentemente, no exercício da minha função de Senador, sinto-me no dever de trazer a esta Casa as informações acerca do que fiz e o relato sobre os acontecimentos de que participei, para que o Senado avalie se se tratou de uma viagem turística que não deva mais acontecer no futuro.
O Brasil participou de uma reunião realizada em Roma, de 13 a 17 deste mês, por iniciativa da FAO, para discutir a questão da fome no mundo. Além dessa reunião, realizaram-se simultaneamente inúmeros outros eventos, entre os quais um grande encontro da União Interparlamentar, do qual participou a delegação brasileira.
Não fui como representante do Senado à reunião da FAO e nem viajei às expensas desta Casa. Fui convidado pela União Interparlamentar.
Essa reunião da FAO foi tão importante que a abertura do evento foi feita pessoalmente pelo Sumo Pontífice o Papa João Paulo II, o que raramente acontece.
O encontro dos Parlamentares a que compareci realizou-se no edifício sede do Senado italiano e foi presidido pelo Presidente do Senado Federal italiano, Senador Nicola Mancini, primeiro orador da reunião, tendo sido seguido pelos pronunciamentos do Deputado Luciano Violante, Presidente da Câmara dos Deputados da Itália, e do Primeiro-Ministro italiano, Deputado Romano Prodi.
Faziam parte também da Mesa o Secretário-Geral da FAO, Jacques Diouf; o Presidente Mundial da União Interparlamentar, Ahmet Fathy Sorour, parlamentar egípcio; e o Secretário-Geral da União Interparlamentar, Deputado francês Pierre Cornillon.
Estavam presentes à reunião no plenário, integrando a bancada italiana, o Senador Vitalício da Itália, Giulio Andreotti, que governou aquele país por muitos anos, e o ex-dirigente do antigo Partido Comunista italiano, Achille Ochetto. Coube-me a honra de ocupar a tribuna e de expressar a posição da bancada da representação do Brasil.
A reunião foi inspirada no fato de que a fome no mundo é um desafio maior do que os avanços tecnológicos conseguidos pela humanidade. Até hoje, não se encontraram soluções para esta questão que se tornou intolerável para a humanidade.
Estima-se a população mundial em aproximadamente 5,8 bilhões de pessoas. Existem no mundo 800 milhões de indivíduos - aproximadamente 15% da população mundial - que não têm o suficiente para prover a sua alimentação básica, dos quais mais de 200 milhões são crianças com idade inferior a cinco anos, que, por deficiência de alimentos energéticos e de proteínas, estão tendo o seu desenvolvimento físico-intelectual danificado, talvez de forma irreversível. A humanidade tem fracassado na tentativa de solucionar esse problema.
Naquela mesma cidade, em 1974, os dirigentes de quase todos os países assinaram uma declaração emocionada de rejeição à continuidade da fome no mundo e se propuseram a realizar um plano de ação que deveria, em 20 anos, reduzi-la a números que, ao menos estatisticamente,fossem desprezíveis, aceitáveis.
A realidade é que até hoje não se percebe nenhum resultado realmente significativo da realização daquele plano de ação, que falhou escandalosamente naquilo que tinha de maior responsabilidade, principalmente porque os países desenvolvidos não o executaram como deviam.
Os compromissos que assumiram...
A Sra. Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. GERALDO MELO - Com prazer, ouço V. Exª.
A Srª Marina Silva - Recentemente, li um livro do Frei Leonardo Boff, no qual ele faz uma abordagem muito semelhante a essa de V. Exª, ou seja, os avanços tecnológicos que a humanidade conseguiu não têm sido capazes de reverter-se em melhoria da qualidade de vida das populações numa questão elementar: o direito à alimentação. Ele também se reporta a essa questão que V. Exª enfoca, isto é, o desafio dos países desenvolvidos. Há uma orientação da ONU no sentido de que os países ricos invistam, em sinal de solidariedade, pelo menos 0,7% do seu PIB nas campanhas de combate à fome e à miséria. Lamentavelmente, a maioria dos países não fazem isso. Os Estados Unidos, considerados um dos países mais ricos, investem apenas 0,15% nesses programas. Assim, realmente ficamos impotentes. O combate à miséria e à fome é, antes de mais nada, uma luta de combate ao egoísmo, à indiferença e à concentração de bens que, teoricamente, seriam de todos, nas mãos de poucos. Recentemente li um livro que, ao abordar os ideais da revolução burguesa - igualdade, liberdade e fraternidade -, dizia que tais ideais foram realizados apenas para a classe que levantou essa bandeira: a burguesia, porque a grande maioria continua vivendo nas mesmas condições. Segundo o autor, hoje estamos diante de um impasse: as pessoas saciaram tanto e principalmente o item satisfação do desejo de coisas, alimentos e objetos, que estão à beira de sofrer um colapso pelo excesso de ter, mas também estão sofrendo profunda crise da condição de ser; estão vivendo um vazio, que eu identifico na falta de sentimento, de respeito, de nossa incapacidade de nos indignarmos e de sentirmos o sofrimento do outro. Parabenizo V. Exª pela oportunidade do pronunciamento e pelas constatações que fez nesse encontro.
O SR. GERALDO MELO - Agradeço a intervenção de V. Exª, Senadora Marina Silva. Eu não saberia dizer-lhe o quanto me honra receber sua intervenção. A realidade que V. Exª mostra tem muita razão de ser.
Dizia, pouco antes de seu aparte, que foram os países ricos que mais falharam no cumprimento dos compromissos assumidos em 1974. Na realidade, entre os objetivos principais que eles se comprometeram a atingir, estava a responsabilidade de prover as condições imediatas para que se iniciasse um esforço capaz de garantir que a produção de alimentos no mundo, a partir de então, cresceria 4% ao ano e não 2,5% ou 2,7%, que ocorrera no anos anteriores à Conferência de 1974, e também a de prover os recursos materiais para que os países subdesenvolvidos, principalmente os da África central, na região subsaariana, tivessem condições de participar desse incremento de produção de alimentos.
Na realidade, nenhuma das duas coisas aconteceu. A produção de alimentos continuou crescendo a uma taxa inferior a 3%, e uma das principais razões para que isso ocorresse foi exatamente que os recursos prometidos na Conferência de 1974 não foram mobilizados na escala em que deveriam.
Outro aspecto que pretendia destacar, que de certa forma já foi assinalado no aparte da Senadora Marina Silva, tem a ver precisamente com a questão da apropriação da produção de alimentos no mundo. Estatisticamente, o consumo per capita de calorias é da ordem de 2.700 calorias por pessoa/dia. Duas mil e setecentas calorias são perfeitamente suficientes para atender às necessidades diárias de qualquer pessoa. A Estatística, já dizia um crítico bem-humorado, é uma técnica - outros dizem que é uma ciência - por meio da qual se demonstra que se uma pessoa comeu 1kg de carne na semana e a outra pessoa não comeu nenhum grama, cada uma delas comeu 1/2kg.
Na realidade, o consumo per capita mundial de calorias é de 2.700 calorias, mas esse não é o consumo dos 800 milhões de famintos que existem no mundo. Na verdade, é preciso que algumas pessoas consumam 3.000, 3.500 e até 4.000 calorias/dia para que haja 800 milhões de pessoas que não têm praticamente nenhuma segurança alimentar no sentido de que possam, de fato, ter a certeza de que terão acesso ao consumo mínimo de calorias por dia.
Essa é uma questão relacionada com o outro desafio que teremos de vencer no próximo século: como distribuir a riqueza e a renda na face da Terra. Se de um lado há famintos, de outro, há excedentes agrícolas estocados, de forma monumental, dentro dos limites da Comunidade Econômica Européia, onde, para citar apenas um exemplo, os excedentes de manteiga, a partir de determinado período de permanência nos estoques, são comercializados como matéria-prima para fabricação de óleo comestível e óleo lubrificante. Já que não apareceu mercado para consumir o excedente de manteiga, transforma-se a manteiga em óleo, enquanto pessoas continuam morrendo de fome, sem acesso a esses alimentos.
Essa é essencialmente uma questão de distribuição dos recursos, de distribuição da renda. Esse é o desafio da arquitetura das relações sociais no mundo neste final do século XX. No momento em que vou encerrar este pronunciamento, cabe assinalar uma dúvida perturbadora: hoje se fala muito em globalização. Eu até me admiro ao ver certas pessoas falarem desse assunto com uma segurança tão grande que parece até conhecerem a globalização, que é um fenômeno novo, em marcha e desconhecido. No entanto, vejo aqui mesmo no Brasil alguns autoproclamados sábios falarem sobre o mundo globalizado como se soubessem o que é globalização. E o pior é que todos temos de acreditar.
Pois bem, nesta Casa todos conhecem a minha posição de homem que defende a propriedade privada dos meios de produção; de homem que acredita na utopia com que sonharam os socialistas, mas não acredita que eles tenham encontrado a forma de realizá-la e por isso fracassaram; de homem que acredita na iniciativa privada, que acredita no mercado, mas que não acredita que o mercado sozinho resolva, como muitos pretendem, todos os problemas da humanidade.
O mercado virou, de uma hora para outra, o super-herói do final deste século. Aqui, a esse super-herói, deixo uma indagação: se é o mercado capaz de criar todos os estímulos para que se realize a produção necessária, se isso for uma verdade que não possa ser questionada de forma alguma, se estiveram errados quanto a isso Lord Keynes, no seu tempo, os que promoveram o New Deal nos Estados Unidos da América, os que promovem hoje as políticas de desenvolvimento regional na Alemanha, se todos eles estiveram ou estão errados e se o mercado sozinho resolve tudo, há uma coisa que precisamos colocar para que eles nos respondam.
Existe fome precisamente porque não existe mercado. São seres humanos, são famintos, são pessoas necessitando de comida que precisa ser produzida; são tudo o que se queira menos mercado, pois o seu tamanho como mercado é o tamanho do seu poder de compra, que é quase igual a zero. Quero saber como é que um mercado inexistente vai criar os estímulos necessários para que os automatismos do processo produtivo cheguem sozinhos aos rincões da África, às multidões que se movem do Zaire para Ruanda, como chegará ali a mão mágica do mercado para preencher os estômagos vazios de todas aquelas multidões. Ali não há produção, porque não há mercado.
Esta é a indagação que faço: não há mercado, mas há fome. Como vamos fazer?
A Srª Marina Silva - V. Exª me permite um aparte?
O SR. GERALDO MELO - Ouço V. Exª com prazer.
A Srª Marina Silva - Achei muito interessante ouvir V. Exª falando que a globalização é um processo em curso e que não é uma questão de acreditarmos ou não, é um fato. Como nós, sujeitos deste presente, iremos nos inserir neste processo? V. Exª tem razão quando diz que há pessoas que falam com tal segurança, que até parecem que já conhecem todo o processo. Neste ponto, eu me reporto a uma frase que diz que o único profeta, o infalível, é o historiador, porque ele profetiza do presente para o passado. Profetizar, com tanta segurança, do presente para o futuro, ou se é Deus ou se é charlatão. Muito obrigado.
O SR. GERALDO MELO - Agradeço as palavras de V. Exª. Em algum lugar, Sr. Presidente, Srª e Srs. Senadores, ouvi certa vez um comentário bem humorado sobre o economista. Alguém dizia que o economista é alguém que tem uma grande capacidade de nos explicar porque as coisas não aconteceram como ele previa. De forma que é como se estivéssemos - e parece que estamos, Senadora Marina Silva - dizendo a mesma coisa.
Praza aos céus que a declaração dos chefes de Estado assinada em Roma, os compromissos que os parlamentares do mundo inteiro assumiram, assinando uma declaração ao mesmo tempo, praza aos céus que o plano de ação que fizeram sejam capazes de resolver o grande desafio, o intolerável desafio de sabermos que, num mundo capaz de realizar as proezas tecnológicas que temos realizado, não foi este mundo capaz ainda de garantir que 800 milhões de seres humanos tenham o que comer amanhã de manhã.
Muito obrigado, Sr. Presidente.