Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM PELOS 100 ANOS DO INICIO DA GUERRA DE CANUDOS.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM PELOS 100 ANOS DO INICIO DA GUERRA DE CANUDOS.
Publicação
Publicação no DSF de 27/11/1996 - Página 18977
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, GUERRA, ESTADO DA BAHIA (BA), EPOCA, INICIO, REPUBLICA, BRASIL.
  • ANALISE, LUTA, CIDADÃO, INSERÇÃO, SOCIEDADE, RESISTENCIA, COMUNIDADE, DEFESA, JUSTIÇA SOCIAL, TRADIÇÃO, LIDERANÇA, ANTONIO CONSELHEIRO, LIDER, CRENÇA RELIGIOSA.
  • ANALISE, PROBLEMA, ORGANIZAÇÃO FUNDIARIA, BRASIL, MOVIMENTO TRABALHISTA, SEM-TERRA, COMPARAÇÃO, HISTORIA, CONFLITO, NECESSIDADE, SOLUÇÃO, REFORMA AGRARIA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Canudos vive. Este é o ano do centenário do início da guerra e, surpreendentemente, nem um longo século transcorrido entre o fato histórico e o atual momento faz diminuir a intensa carga dramática que caracteriza este episódio da história brasileira.

A historiografia, por sinal, vem contribuindo para o clareamento dos fatos e o julgamento do episódio e do papel de seus protagonistas, na medida em que, muitas vezes, já reverte o discurso da história oficial que, até meados do século, veio adotando um enfoque fortemente etnocêntrico, obstruindo a versão isenta dos fatos.

Graças às mudanças importantes ocorridas no panorama sócio-político brasileiro e mundial e à incorporação de novas metodologias de interpretação sociológica surgidas da atualização dos debates e graças, ainda, à tardia publicação, em 1974, das "Prédicas" - coletânea de textos deixados por Antônio Conselheiro -, alguma luz tem sido lançada sobre essa página da história, resgatando-a das sombras.

Até recentemente, Canudos falava mais pelo seu silêncio, pelo usurpado discurso dos vencidos, do que por toda a literatura, de várias correntes e diferentes extrações, que sobre ele versou. 

Na verdade, pode-se afirmar que raros são os movimentos sociais da nossa história capazes de suscitar uma leitura tão vária, com interpretações as mais divergentes, como Canudos.

Dos temas sociais, passando pelo político e o econômico, até o puramente ideológico, Canudos propicia aproximação e fornece material suficiente para justificar qualquer dessas abordagens.

A presente leitura, porém, não pretende adotar nenhuma dessas vertentes, que um instrumental teórico específico - proveniente, principalmente, da sociologia e da antropologia -teria contribuído para trazer à cena. Ao contrário, sem enveredar por uma análise científica, evitando o enfoque político-ideológico, este texto ambiciona a leitura do viés mais contundente do episódio de Canudos e da sua perfeita contemporaneidade: o da luta do cidadão em favor de sua inserção na sociedade.

Auxiliando a justificar a pertinência da escolha e, especialmente, a atualidade do tema, aí estão os testemunhos do discurso artístico que, por intermédio de múltiplos suportes, tem colaborado para manter o episódio de Canudos sempre à tona.

Longe de ser um tema de eleição recente, a saga de Antônio Conselheiro tem motivado, desde o início do século, a manifestação literária.

O marco primeiro e, certamente, um dos mais conhecidos e cultuados pela tradição letrada é a obra de Euclides da Cunha, "Os Sertões", publicada em 1902. À luz de análises mais recentes sobre o significado daquele evento histórico, constata-se que a obra euclidiana terminou por expor uma visão unilateral e, muitas vezes, comprometida pelo rigor etnocêntrico, de base histórica, como convinha à sua época.

Para tanto, foi fundamental a publicação das "Prédicas", há pouco referida, onde o Conselheiro expõe o alicerce sobre o qual se apóia sua ideologia e sua conduta, que comentaremos adiante.

Importa observar, entretanto, que Euclides da Cunha, enquanto literato, não perdeu o seu espaço de importância e pioneirismo no quadro da cultura brasileira e continua sendo um dos seus maiores expoentes. Sem a obra de Euclides, o conhecimento e o reconhecimento de Canudos estariam fadados a um inevitável segundo plano na história oficial. Isto sem falar das virtudes particulares do seu texto, do ponto de vista estritamente literário.

À guisa de ilustrações, atestando a atualidade daquele episódio, se passamos os olhos pela programação cultural do presente ano de 1996, nos deparamos, entre outras iniciativas alusivas ao fato, com os preparativos e os altos orçamentos estimados para as filmagens de "Canudos", do Diretor Sérgio Rezende, que se iniciaram em julho, em seu cenário original, no sertão baiano, com elenco de primeira grandeza.

Não seria inédita, no entanto, a escolha de uma revolta sertaneja como tema central do discurso artístico, no panorama da cultura brasileira. A luta dos desfavorecidos, em qualquer contexto, tem sido incorporada pela expressão cultural e encontra-se presente, tanto na poesia de João Cabral de Melo Neto, com "Morte e Vida Severina", como nas expressões plásticas de Cândido Portinari e filmográficas de Glauber Rocha, com "Deus e o Diabo na Terra do Sol", para citar apenas alguns.

Da mesma forma, nos países da América de fala espanhola - onde a temática da violência e opressão contra os desfavorecidos está igualmente muito presente - destaca-se, entre outros títulos, "A Guerra do Fim do Mundo", reeleitura de Mário Vargas Llosa do próprio episódio de Canudos.

Nessas obras, como em inúmeras outras, a resistência do homem do campo contra a espoliação de sua cultura e de seus bens materiais tem ocupado farto lugar nas manifestações artísticas nacionais e latino-americanas.

E por que Canudos? Qual seria o forte significado dessa guerra que faz cem anos?

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

      "...E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa, face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos..."

Assim, Antônio Conselheiro foi imortalizado pela célebre obra de Euclides Da Cunha e, quase sempre assim, tem sido perpetuado pelo discurso artístico.

Evitando a repetição de uma biografia já estudada à exaustão, importa saber, no entanto, que foi tão-somente na década de 1870, aos 42 anos de idade, que Antônio Conselheiro iniciou sua missão, peregrinando como beato pelo sertão nordestino, começando a marcar seu lugar na história.

Antes disso, com uma vida semelhante a de muitos nordestinos em qualquer tempo, Antônio Vicente Mendes Maciel enfrentou a adversidade de uma vida dura, onde a carência de todo tipo de recurso convivia com uma profunda crença religiosa.

Nascido em Quixeramobim, região central do Estado do Ceará, em 1828, fez os primeiros estudos estimulado pelo ideal paterno de torná-lo sacerdote. Entretanto, com o falecimento de seu pai, Antônio Vicente teve que se voltar para o balcão do armazém de sua propriedade, assumindo o papel de chefe de família, responsável pela mãe e pelas irmãs, até que, após contrair matrimônio, liquidou os negócios e partiu. Nesse ponto, começou sua vida errante, primeiramente como professor em fazendas, até se fixar, por pequeno período, como funcionário do foro, em Ipu, ainda no Ceará, localidade onde seu casamento foi desfeito.

Retomando sua vida itinerante, esteve exercendo o magistério até que dívidas e antigas pendências de seu tempo de Quixeramobim fazem-no deixar o Ceará e iniciar sua trajetória de pregador por Pernambuco, Sergipe e Bahia.

Após alguns incidentes pessoais, que a brevidade nos recomenda relegar, fixou residência, por volta de 1877, em Itapicuru, onde viveu por 12 anos. Por essa época, começam a se aguçar suas diferenças, tanto com a Igreja quanto com o Estado. São desse período as interdições estabelecidas pelo clero em relação às práticas de Antônio Vicente que, àquela altura, já justificava o epíteto de "Conselheiro", reflexo do crescente número de populares que vinham ao seu encontro para orientações.

Proibido de pregar nas igrejas e taxado, pelo então Bispo da Bahia, de disseminador "de doutrinas subversivas", Conselheiro continuou a atrair para si contingentes cada vez maiores de seguidores, contrariando a impressão inicial, alimentada pelo próprio clero, de que sua liderança, por suposta inconsistência e ignorância, seria fugaz e não tardaria a fenecer.

Vozes autorizadas esclarecem que "...da leitura dos sermões, o que surge, entretanto, é a figura de um sertanejo letrado, capaz de exprimir-se correta e claramente na defesa de suas concepções políticas e sociais e de suas crenças religiosas". É assim que relata Duglas Teixeira Monteiro, em "Um confronto entre Juazeiro, Canudo e Contestado", em "História Geral da Civilização Brasileira".

O ambiente tenso tomou graves contornos em 1893, quando, já sob os albores da República, Antônio Conselheiro se insurge contra a cobrança de impostos, pretexto suficiente para levá-lo a retomar o seu papel de beato itinerante, após o incidente público que, em plena feira, afrontou os poderes locais de Bom Conselho, na Bahia.

Antônio Conselheiro tinha 65 anos quando se fixou, com seus acólitos, em uma fazenda abandonada junto ao Vaza-Barris, na localidade de Belo Monte, conhecida por Canudos, designação de provável inspiração nos longos cachimbos, conhecidos como "canudos de pito", que os habitantes do lugar utilizavam.

Começa, então, a prosperar, com espantosa velocidade, o arraial de Canudos, tido por alguns de seus estudiosos como Edmundo Moniz, como "abrigo estável para os esbulhados de seus bens, pelos perseguidos, pelos grandes proprietários e pelo fisco, pelas autoridades policiais e políticas."

Na verdade, entre os sertanejos que dispunham de seus bens, fossem parcos ou vultosos, para seguir Antônio Conselheiro, vários estavam a procura tanto da salvação celeste prometida pelo beato quanto da comunidade igualitária enquanto solução para os seus problemas terrenos, sobretudo os que diziam respeito à luta contra os oligarcas em favor de um pedaço de terra. Nesse grupo heterogêneo encontravam-se ainda escravos forros ou foragidos e também alguns beneficiados pela Lei Áurea, em 1988, sem esperança de obter o ambicionado pedaço de chão.

O perfil da comunidade inicial de Canudos explica por que contra ela se levantaram tão enfaticamente os grandes latifundiários, com o suporte da Igreja e dos Governos Federal e Estadual: a empreitada do Conselheiro integra a extensa galeria de movimentos de insurreição e resistência popular contra os quais a tradição ensina que prevalece a solução radical da sufocação e do extermínio.

Contrariamente à conhecida caracterização da autoria de Euclides da Cunha, classificando-a como "cidade selvagem" o povoado de Canudos refletia nova disposição daquela gente sertaneja habituada a morar de modo disperso, "gente" (...) no entender de Duglas Teixeira Monteiro, "que jamais havia vivido de modo sedentário numa aglomeração tão grande."

A forma igualitária de distribuição de bens a que todos se submetiam, com os mais abastados contribuindo de maneira efetiva para a melhoria das condições dos menos aquinhoados, fez com que Euclides visse tanto nesses traços peculiares que atestam a forma complexa de uma organização social quanto na topografia de características originais, tão-somente uma comunidade "homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta."

Pois foi essa população que resistiu a três expedições militares que contra ela foram organizadas pelos poderes constituídos, expedições que se caracterizaram ao longo do tempo por um progressivo aumento do contingente, por gradativa sofisticação do armamento utilizado e pela incorporação paulatina de ilustres patentes das Forças Armadas para o comando de cada uma.

Da primeira expedição - em 21 de novembro de 1896 e liderada pelo Tenente Pires Ferreira -, até a terceira - em março de 1897, comandada pelo Coronel Antônio Moreira César, florianista, que contou com apoio integral das forças do Estado da Bahia - todas foram rechaçadas.

Canudos sucumbiu, no entanto, à quarta expedição, uma verdadeira máquina de guerra, posta em ação de junho a setembro de 1897, sob o comando do General Arthur Oscar de Andrade Guimarães, contando com poderoso armamento e imponente contingente de soldados do exército e da polícia.

Antônio Conselheiro morreu em 22 de setembro de 1897, aparentemente sem ter-se ferido em combate, vítima de um provável colapso, fruto da tensão com a iminente derrota. Os sobreviventes foram dizimados.

Para entender, ainda que palidamente, o fenômeno Canudos é importante conhecer um pouco sobre a natureza daquele episódio histórico e sua inserção no panorama social daquela região e do País.

Como ponto de partida, no entanto, é preciso entender Canudos não como uma sublevação de camponeses - de ocorrência mais previsível e usual em circunstâncias históricas assemelhadas - mas, sim, como a resistência de uma comunidade, resistência não apenas como forma de defesa física, mas defesa de valores, da tradição cultural e, parafraseando o poeta João Cabral, "da parte que lhes cabia naquele imenso latifúndio".

Primeiramente, parece útil recordar que esse tipo de movimento de origem rural está inserido no quadro maior da tradição rústica, nomenclatura adotada por estudiosos do fenômeno.

A tradição ou cultura rústica nada mais é do que o amálgama resultante dos valores do homem do campo brasileiro com aqueles herdados do colonizador português, somados a todo o repertório assimilado e incorporado, na convivência com negros e indígenas. Dotados de peculiaridades especiais, oferecendo o campo fértil de análise para os estudos de enfoque social, a tradição rústica se diferencia das demais manifestações culturais pelo apego especial que usualmente demonstra pelos seus modos de ser e de fazer.

Tal configuração propicia o surgimento de movimentos messiânicos, como o de Canudos, onde, citando Maria Isaura Pereira de Queiroz, "os messias autóctones (...) são figuras pertencentes ao catolicismo popular que concentram as esperanças messiânicas dessas populações rústicas.

Na raiz, portanto, desses movimentos encontra-se o anseio de recuperar e restaurar práticas e valores tradicionais caros ao grupo social, resgatando formas tradicionais da cultura popular, sem propriamente colidir com a dinâmica do contexto que os abriga, contornando possível confronto de feição virulenta. Não raro, o que desencadeia o processo inverso, de natureza hostil, é precisamente a intervenção dos meios urbanos e a conseqüente imposição dos seus padrões estranho aos meios rústicos tradicionais.

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz os movimentos messiânicos "têm como fulcro um indivíduo que se acredita possuir atributos sobrenaturais". Esse indivíduo acaba liderando espiritual e soberanamente o grupo social que o apóia, criando sociedades onde se adotam as práticas do que se conhece como "catolicismo rústico" e as atitudes em favor do que o senso comum poderia designar por justiça social. Eis aí, de corpo inteiro, o nosso Antônio Conselheiro.

Para continuar a perseguir a mesma linha de raciocínio, perguntaríamos: qual a relação dessa liderança com o contexto histórico e social no qual se insere?

O movimento de Canudos, em particular, eclode em um panorama de grandes transformações políticas, cuja raízes remetem ao período histórico anterior à Abolição e cuja conformação fica melhor definida após a Proclamação da República.

Naquele momento, fica evidenciada o que Duglas Teixeira chama de "crise de mandonismo tradicional", cujos efeitos são mais intensamente percebidos com o advento e, em algumas regiões, com o reforço do "coronelismo". A base do conflito continua sendo a terra, com os sertanejos premidos por uma nova ordem que vem do "litoral", do Brasil urbano, já então voltado para os padrões e modelos do mundo ocidental.

A nova ordem política é igualmente portadora de inovações perturbadoras frente à tradição cultural do sertão, como, por exemplo, a prática do casamento civil. Contra fatos como esse, insurge-se o conselheiro e seus seguidores como uma típica reação daquele mundo rústico contra a invasão dos novos valores patrocinados por uma sociedade urbanizada.

Maria Isaura de Queiroz esclarece que, antes mesmo de Euclides da Cunha, Nina Rodrigues teria interpretado o movimento de Canudos como uma reação previsível daquela sociedade conservadora e ciosa de seus valores contra a tendência "modernizante" das populações então fixadas na faixa litorânea, como modelo de inspiração ocidental. Aos olhos das populações rústicas, o que mais importa é o resgate e a manutenção dos seus valores tradicionais. Essa é a tendência encarnada por Antônio Conselheiro.

Assim, o que poderia ser interpretado como sublevação política de fundamento monárquico (cujos índices podem ser apressadamente identificados, por exemplo, na recusa de adoção da moeda republicana, já que, em Canudos, só circulava "o dinheiro do Rei"), não passava de uma reação levada a extremos contra a imposição de valores contrários à arraigada tradição daquelas populações. Um movimento, portanto, de motivação sócio-cultural, sobre alicerce religioso.

A consolidação do povoado como índice de "resistência", faz prevalecer o ideal de uma sociedade sem classe ou divisão igualitária de bens, já que nem a Abolição nem a nova ordem republicana puderam revertera a situação de exploração sem esperança, no panorama dominado pelos grandes latifúndios.

Aliás, esse é, basicamente, o fundamento comum aos movimentos ditos "messiânicos" que eclodiram em diferentes regiões, de perfil cultural bastante diverso como foi, por exemplo, a Guerra do Contestado, no começo do século XX, no Sul do País. Naquele movimento prevalecia a intenção de se implantar uma nova monarquia em oposição ao que Maurício Vinhas de Queiroz qualifica de "República dos Coronéis". Segundo o mesmo autor, na sublevação do Contestado "as massas componentes manifestaram a clara consciência da necessidade de garantir o seu direito de terras". 

Esse é também um dos sinais mais visíveis da liderança de Antônio Conselheiro, pois Canudos funcionou como uma verdadeira cidadela contra princípios e valores dos poderes cultos constituídos - Estado e Igreja - e a favor da preservação do legítimo direito daquelas populações às condições mínimas de vida: a terra, a casa, o alimento.

Nesse sentido, é pertinente ter em Antônio Conselheiro o símbolo do inconformismo e da luta em defesa de um ideário de justiça terrena e religiosidade tradicionalista. É a partir dessa conjuntura que se coloca mais claramente o conflito entre as classes populares brasileiras e as chamadas elites, seus desdobramentos históricos e seu impacto atual, como será esboçado a seguir.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, um simples folheio nos compêndios de História demonstra que a relação conflituosa entre o poder e as classes populares - sem esquecer seu respectivo corolário de violência - sofreu, no final do século passado, um sensível agravamento (especialmente a partir da libertação da mão-de-obra escrava) e tem recrudescido de forma acentuada, alimentado pelo acelerado processo de urbanização que o País tem experimentado ao longo das últimas décadas. E a explicação mais acabada para o crescimento desmesurado de nossas populações urbanas está presente em todas as análises de especialistas: um fluxo migratório de proporções anormais costuma carregar consigo o sintoma de um agudo problema agrário em sua origem.

Neste País de dimensões continentais e de marcantes distinções culturais, surpreende a constatação de que, do ponto de vista social, continua havendo, nos dias de hoje, espaço para "Canudos". Do ponto de vista religioso, porém, é útil lembrar que um eventual movimento messiânico de fundamento católico não teria, atualmente, o mesmo apelo, fato que se atribui, principalmente, ao posicionamento tomado por parte expressiva da Igreja Católica, incorporando as reivindicações dos excluídos.

Como pano de fundo para a permanência dessas perversas condições sociais há uma contradição cuja superação constitui um desafio para as políticas de desenvolvimento: a coexistência, em um mesmo território, de populações rústicas - para utilizar a designação já adotada - e de populações urbanas, contemporâneas e modernas, voltadas para os modelos econômicos e culturais das sociedades desenvolvidas do mundo ocidental.

O que se observa é que esse contraste só tem se agravado nos últimos anos. Se no final do século XIX, no sertão baiano, as necessidades conjunturais propiciaram o surgimento da liderança de Antônio Conselheiro, em nossos dias, a formidável dicotomia do Brasil de maioria urbana e o Brasil rural - com suas históricas carências, injusta distribuição agrária e dilapidação cultural irreversível - gera os inúmeros conflitos que a todo momento ocupam as manchetes dos jornais.

Por um lado, os retirantes (ou refugiados?) do campo perdem sua identidade - pela quebra dos seus valores culturais e pela usurpação das condições mínimas de uma vida digna - e incham as periferias urbanas, contribuindo para a cultura da violência.

           Por outro, os que resistem às condições adversas e permanecem no campo continuam espoliados pelas oligarquias "históricas" ou se insurgem contra esse estado de coisas, promovendo ou participando de conflitos cada vez mais cruentos e de mais graves conseqüências para a estabilidade político-social da Nação.

           Não há como escamotear: a questão agrária é o foco permanente dessa tensão. Para ilustrar, basta conferir o impressionante desempenho e o incremento dos números que constituem a trajetória do Movimento dos Sem Terra, criado há apenas doze anos.1

           Se considerarmos a extensão territorial do País, parece absurdo que o Brasil possa estar em permanente sobressalto em relação às questões fundiárias. Afinal, são 371 milhões de hectares de áreas agricultáveis, cuja utilização para lavouras se restringem a escassos 14%. Se abatidos, desse total, mais 48% destinados à criação de gado, o que sobra é terra dita ociosa.

           A imprensa veiculou, recentemente, que "quase metade da terra cultivável está nas mãos de 1% dos fazendeiros, enquanto uma parcela ínfima, menos de 3%, pertence a 31 milhões de produtores rurais."2

           Ora, esse é o retrato acabado de uma distribuição de terras inteiramente desigual e que apenas reforça as gritantes disparidades encontradas entre os indicadores do crescimento econômico brasileiro em confronto com os dados relativos à situação sócio-econômica da sua população. Análises recentes indicam que, no início da década de 60, o Brasil possuia o 48º produto interno bruto do mundo ocidental. Vinte anos mais tarde, salta para o 8º posto entre as maiores economias mundiais.3 

           É espantoso constatar-se que posição de tamanho relevo deva conviver com os índices que classificam o mesmo Brasil como o campeão da desigualdade na distribuição de renda, superando países da África e da América Central.4

           A agregação de tais dados à cruel desigualdade verificada na distribuição de terras agricultáveis fornece a medida do atual quadro sócio-econômico, altamente favorável à conflagração, como no recente caso do massacre de Eldorado dos Carajás. O relatório produzido pela Pastoral da Terra, com dados atualizados e lançado ao público no início do mês de junho, inventaria um aumento preocupante de conflitos fundiários: 554 ocorrências, em 1995, contra 64, em 1994.

           O parentesco entre Canudos e Carajás não é, portanto, forçado. Se, à guisa de exercício, abstraímos a natureza messiânica do movimento liderado por Antônio Conselheiro -- já que, como ficou claro, é improvável sua ocorrência nos dias de hoje --, é fácil apreender a similaridade de motivação entre ambos. Um século se passou e, afastadas as margens de manipulação ideológica e partidária, o clamor do Movimento dos Sem-Terra é, em sua essência, o clamor de Canudos.

           A crise fundiária tem deixado seus reflexos em muitos patamares do triste retrato social do nosso País: aí está a escassez dos produtos agrícolas, acarretando importações emergenciais de reposição de estoques e a elevação dos preços; aí estão as migrações em direção às periferias dos grandes centros, com suas alarmantes conseqüências de aumento dos índices de violência e deterioração da qualidade de vida.

           A convivência entre as elites e as classes populares tem sido historicamente marcada pela violência, desde a mais explícita -- que faz uma população inteira pegar em armas -- até a violência silenciosa, transpirada pela contundência dos indicadores sociais.

           Em Canudos, foi a força armada, pela extinção de uma nova ordem anunciada. Em Carajás, assim como em outros pontos conflagrados do País, é a violência pela exclusão social, pela falta de perspectivas e, ainda uma vez, pela força armada. Ao longo deste século, como triste herança brasileira que remonta aos tempos coloniais, tem prevalecido a força das oligarquias contra as reivindicações dos despossuídos.5 Evidência que fez Frei Beto declarar recentemente: "Enquanto o governo continuar de frente para o Primeiro Mundo e de costas para o Terceiro, essa cena euclidiana continuará a se repetir."

Não se deve esquecer que, se o País de fato pretende instaurar a desejada modernização - como cita Frei Beto: "Enquanto o Governo continuar de frente para o Primeiro Mundo e de costas para o Terceiro, essa cena euclidiana continuará a se repetir - este País precisa, em primeiro lugar, sanar as brutais desigualdades existentes entre seus diferentes segmentos sociais, buscando, pela aplicação adequada da lei, solução para reverter as estatísticas que evidenciam sua permanência na treva do subdesenvolvimento. Da mesma forma, não seria justo ignorar a evolução do nosso quadro político, com seus esforços e avanços em direção à plenitude democrática.

Canudos, no entanto, está vivo. Nesse sentido, é indispensável lembrá-lo no centenário do início da guerra que calou aquele núcleo de resistência.

Não há muito o que comemorar, é verdade, mas trazer o fato à cena pode servir de alavanca para que, em vez de apenas lastimar o desfecho do episódio histórico, sejam efetivamente envidados todos os esforços para a implementação de uma política séria e de resultados eficazes em favor das populações do campo. O que não se pode mais tolerar é que, às vésperas de um novo século, episódios como o de Eldorado dos Carajás possam ainda ocorrer.

Daí a importância, para nós brasileiros, de se comemorar este centenário, de se decifrar a eloqüente metáfora do povoado que, no século passado, foi uma fortaleza de resistência e, hoje, ironicamente, repousa no fundo do lago formado por uma usina hidrelétrica, que, há muito pouco tempo, era um verdadeiro ícone do desenvolvimento.

São os 100 anos de uma guerra que está sob nossos olhos todos os dias. Portanto, registre-se o centenário da Guerra dos Canudos, porém não apenas para lastimar, mas, sobretudo, para mudar.

Era o que tinha a dizer. Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/11/1996 - Página 18977