Discurso no Senado Federal

REFERENCIAS AO PRONUNCIAMENTO DA SENADORA QUE O ANTECEDEU NA TRIBUNA. DEFENDENDO A ERRADICAÇÃO DO PRECATORIO DA ESTRUTURA JURIDICA DO BRASIL.

Autor
Geraldo Melo (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RN)
Nome completo: Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO FEDERAL.:
  • REFERENCIAS AO PRONUNCIAMENTO DA SENADORA QUE O ANTECEDEU NA TRIBUNA. DEFENDENDO A ERRADICAÇÃO DO PRECATORIO DA ESTRUTURA JURIDICA DO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 04/12/1996 - Página 19543
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO FEDERAL.
Indexação
  • NECESSIDADE, REDUÇÃO, PARTICIPAÇÃO, ESTADO, ECONOMIA, SIMULTANEIDADE, POLITICA, DEFICIT, REVISÃO, ALTERAÇÃO, TAXAS, JUROS, SUBSTITUIÇÃO, PROGRAMA, DEMISSÃO, FUNCIONARIO PUBLICO.
  • DEFESA, ERRADICAÇÃO, PRECATORIO, FUNDAMENTAÇÃO, NATUREZA JURIDICA, PAIS.
  • ATENÇÃO, CONGRESSISTA, PROJETO DE LEI, IMPEDIMENTO, ESTADO, CRIAÇÃO, REQUISITOS, MANUTENÇÃO, INADIMPLENCIA, REFERENCIA, OBRIGAÇÕES, PAGAMENTO, DIVIDA, CIDADÃO.
  • ATENÇÃO, CONGRESSISTA, PROJETO DE LEI, INCORPORAÇÃO, COMPENSAÇÃO, CREDITOS, FORMA, PAGAMENTO, ESTADO, OBRIGAÇÕES, TESOURO NACIONAL.

O SR. GERALDO MELO (PSDB-RN. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há poucos dias, vim a esta tribuna para discutir três projetos que submeti à apreciação desta Casa e que têm muito a ver com o espírito central das preocupações que me trazem de volta a esta tribuna no dia de hoje.

Estava ouvindo atentamente o discurso da Senadora Emilia Fernandes, uma posição crítica das propostas que estão sendo discutidas em relação ao funcionalismo público federal. Embora eu não possa concordar inteiramente com as suas teses, por reconhecer que há realmente necessidade de reduzirmos o tamanho do Estado, não posso deixar de registrar a minha concordância com a tese central de que maior benefício para a redução do déficit público terá uma revisão da política de juros, que se tornou um tabu neste País, do que o aperto nas despesas com o pagamento dos funcionários públicos.

O discurso da Senadora Emilia Fernandes se insere numa discussão que esta Casa precisa fazer, ampliar e aprofundar, que é a discussão da reforma do Estado, de que tanto se fala. Que é uma preocupação perturbadora, seguramente, para quem chega aqui como um socialdemocrata e não pode, se certas questões não forem colocadas, ver com nitidez a diferença, ou não pode expressar com nitidez a diferença muito grande que existe na posição dos socialdemocratas em relação à posição dos neoliberais.

A verdadeira reforma do Estado, em relação a qual, na minha maneira de ver, todos os socialdemocratas têm responsabilidade, não se esgota apenas nas questões que dizem respeito ao custo ou aos encargos da folha de pagamento. Acredito que estamos chegando a um momento em que é necessário reexaminar o conceito, que começa a ser esquecido, do próprio papel e da própria função do Estado na sociedade.

Afinal de contas, não podemos continuar a eternizar uma relação histórica do cidadão, no Brasil, com o Estado brasileiro, como se ela fosse, como tantas vezes tenho dito desta tribuna, uma relação do súdito disciplinado, humilde, cabisbaixo, com o soberano.

Essa visão, digamos, aristotélica do Estado, a visão de que o Estado é alguma coisa anterior ao homem, superior à sociedade, que existe para garanti-lo, Althusius condenava desde o século V; essa visão que ignora que o ser humano nasceu com direitos essenciais, que o Estado existe para suprir, para garantir, para oferecer.

Por isso, quando questões como essa do funcionalismo misturam-se com a questão que terminou desaguando na CPI dos Precatórios, que hoje se instalará, entendo que estamos vivendo um momento em que a sociedade precisa discutir a verdadeira reforma que precisa sofrer o Estado brasileiro.

Há problemas como esse, dos precatórios, que precisam ser refletidos não apenas no plano moral, mas no plano do absurdo que esse instrumento ainda representa. Afinal de contas, o que é um precatório? É uma carta através da qual a Justiça comunica ao Estado que ele foi condenado a pagar uma conta a que o interessado tinha direito de receber e que o Governo não pagou; e que, apesar de todos os privilégios processuais conferidos ao Estado brasileiro, ainda assim, esse credor conseguiu que o processo judicial chegasse ao fim, condenando o Estado, irremediavelmente, a ponto de o Poder Judiciário comunicar ao Estado que ele deve pagar aquela quantia. E que faz o Estado? Deveria, pelo menos, incluir no Orçamento do ano seguinte a dotação para cumprir essa obrigação. E a que estamos assistindo hoje? É que ainda hoje, em nome de um estoque de precatórios que a Constituição admitiu que se pagasse com títulos da dívida pública, que eram aqueles pendentes de pagamento em 1988, ainda hoje está o Estado brasileiro, em suas diversas hierarquias, recorrendo a títulos para pagar obrigações a que foi condenado irremediavelmente na Justiça desde 1988, a menos que se esteja ultrapassando a autorização constitucional de recorrer a títulos apenas para o estoque de precatórios existentes quando a Constituição foi promulgada.

O precatório é um instrumento, digamos, jurássico, um instrumento que precisa ser erradicado, abolido da estrutura jurídica do Brasil. O que se precisava fazer no Brasil é o Estado descobrir que as suas obrigações perante terceiros são obrigações a que ele tem que honrar tanto quanto as pessoas, os cidadãos têm que honrar as obrigações que tenham perante ele. Por isso entendo que o precatório precisa ser extinto por não haver mais justificativa a não ser a hipocrisia orçamentária, ou seja, a justificativa de que o Governo, como não tem dotação, não tem obrigação de pagar.

Em um país onde temos fundo social de emergência, que constitui uma dotação orçamentária de múltiplas aplicações, em um país onde todos os Estados têm, sob nomes diferentes, fundos, reservas e dotações para atender a situações e obrigações contingenciais - e no Rio Grande do Norte chama-se reserva de contingência -, não se concebe que se venha dizer que o Governo não tenha capacidade de prever o crédito de um cidadão contra o próprio Governo. Não custaria nada ao Governo ter em todos os orçamentos uma dotação específica destinada ao pagamento de obrigações resultantes de decisões judiciais e, quando essas dotações se esgotarem, tratá-la da mesma forma que trata as outras e solicitar ao Poder Legislativo o necessário crédito suplementar. Não há motivo a não ser o gosto pelo calote, o gosto por espezinhar o cidadão, o gosto da truculência. Não há nenhuma razão para que sobreviva, neste final de século, o precatório como um instrumento regular das relações do Estado com os cidadãos.

Por essa razão, entendi que esse conjunto de coincidências justificasse a presença de quem pensa que o papel da socialdemocracia é agora, o de permitir que haja uma economia inspirada, orientada pelos impulsos do Estado? Sim. Facilitar a ampliação de uma sociedade, em que predomine a propriedade privada dos meios de produção? Sim. Estabelecer as condições e os estímulos, para que a iniciativa privada amplie o seu espaço na oferta de bens e de serviços, substituindo inclusive o Estado em muitos deles? Sim. Mas criar condições também para que se descubra que o Estado deve ser um instrumento essencialmente voltado para prestar serviços aos cidadãos que o criaram e que o sustentam.

Por isso, peço a atenção desta Casa para os projetos que estão em tramitação. O primeiro deles, Projeto de Lei do Senado nº 210, propõe uma medida simples, propõe simplesmente que o Estado não possa, para cumprir as suas obrigações, inventar, na hora de pagar, como pode até hoje, condições e exigências que não estavam em vigor quando a obrigação se constituiu. O Estado, na hora de pagar, passa a exigir documentos, formalidades e providências que não existiam ou que ele não podia exigir na hora de fazer a dívida. Na hora em que ele criou a obrigação, que impôs a obrigação, que gerou o débito, não exigiu aquilo que passa a exigir para não honrar o débito.

O Projeto de Lei nº 211 permite, incorpora, inclui entre as várias modalidades de pagamento ao Tesouro Nacional de obrigações de qualquer natureza a compensação de crédito. É incompreensível que não se possa fazer a compensação de crédito. Alguém que deve ao Governo só poderá pagar sua dívida, sobretudo impostos, das formas descritas no Código Tributário; e, se tiver simultaneamente recursos a receber do Governo, não terá a possibilidade de compensar um crédito com outro. Essa situação medieval, em que o Estado se compraz em manter uma situação de privilégio em relação aos cidadãos, precisa acabar, da mesma forma que o Estado precisa organizar-se para cobrar as suas obrigações, sem exigir dos cidadãos que andem com um caminhão de certidões negativas penduradas no pescoço. A certidão negativa que se exige em toda parte, a certidão negativa que se tem que apresentar em tudo quanto é porta, só é necessária em um país que nem respeita os cidadãos nem se organiza para administrar o seu patrimônio e os seus créditos.

Citei aqui, da última vez que falei sobre este assunto, o exemplo do turista que nos Estados Unidos da América cometa uma infração de trânsito. O Tesouro americano não vai deixar que ele embarque sem pagar. O Tesouro americano não vai deixar que ele marque a passagem, carimbe o passaporte sem pagar os US$10,00 ou US$15,00 de multa que sofreu pela infração de trânsito. Mas o Tesouro americano, para evitar que o turista saia sem pagar, não vai exigir de todo cidadão que queira embarcar no país que chegue no aeroporto com uma certidão negativa no pescoço. Não. O Tesouro americano está preparado, organizado para saber onde é que o nome dos devedores deve estar registrado e para não permitir que um relapso abandone o país sem pagar a sua obrigação. Mas aqueles que não são relapsos, aqueles que não são tardios no cumprimento das suas obrigações, aqueles que são pontuais, o Governo respeita e não passa a impor transtornos incômodos, que são absolutamente intoleráveis.

Creio, Sr. Presidente, que é necessário colocar essas questões com a paciência que tenho tido para pedir a atenção do Senado para isso, reiteradamente, na esperança de que esta Casa, cuja sensibilidade tem sido demonstrada tantas vezes, reconheça, mais uma vez, que a nossa obrigação é a de preservar os interesses do Estado, na medida em que isso interessa o cidadão, o homem, a mulher, o brasileiro; pois o interesse das pessoas, dos cidadãos está acima do interesse das empresas, das associações, das entidades, de toda a espécie, inclusive, dos interesses do Estado.

Por isso, se se está falando de reforma do Estado, a grande reforma, aquela que entendo seja o nosso desafio realizar e o grande compromisso de um reformador que tenha ideologicamente compromissos com a socialdemocracia, a grande obrigação é a de dirigir a reforma do Estado para que se descubra que o Estado não é patrão do povo, mas que o povo é realmente o grande patrão do Estado brasileiro.

Obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/12/1996 - Página 19543