Discurso no Senado Federal

CENTENARIO DO INICIO DAS HOSTILIDADES DAS TROPAS FEDERAIS CONTRA O ARRAIAL DO BELO MONTE, A GUERRA DOS CANUDOS, E SUAS SEMELHANÇAS COM OS CONFRONTOS ENTRE FORÇAS POLICIAIS E INTEGRANTES DO MOVIMENTO DOS SEM-TERRA. NECESSIDADE DE REFORMAS ESTRUTURAIS NO PAIS E A INCLUSÃO SOCIAL, ECONOMICA, POLITICA E CULTURAL DE CERCA DE OITENTA MILHÕES DE BRASILEIROS.

Autor
José Ignácio Ferreira (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/ES)
Nome completo: José Ignácio Ferreira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • CENTENARIO DO INICIO DAS HOSTILIDADES DAS TROPAS FEDERAIS CONTRA O ARRAIAL DO BELO MONTE, A GUERRA DOS CANUDOS, E SUAS SEMELHANÇAS COM OS CONFRONTOS ENTRE FORÇAS POLICIAIS E INTEGRANTES DO MOVIMENTO DOS SEM-TERRA. NECESSIDADE DE REFORMAS ESTRUTURAIS NO PAIS E A INCLUSÃO SOCIAL, ECONOMICA, POLITICA E CULTURAL DE CERCA DE OITENTA MILHÕES DE BRASILEIROS.
Publicação
Publicação no DSF de 30/11/1996 - Página 19424
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, CONFLITO, ESTADO DA BAHIA (BA), EPOCA, INICIO, REPUBLICA.
  • COMPARAÇÃO, MORTE, SEM-TERRA, MUNICIPIO, ELDORADO DOS CARAJAS (PA), ESTADO DO PARA (PA), NECESSIDADE, POLITICA SOCIAL, INCLUSÃO, POPULAÇÃO CARENTE, PROJETO, DESENVOLVIMENTO.

O SR. JOSÉ IGNÁCIO FERREIRA (PSDB-ES) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, este mês de novembro marca o centenário do início das hostilidades das tropas federais contra o arraial do Belo Monte, nos sertões da Bahia, fato que ficou conhecido na nossa história como a Guerra de Canudos.

A sociedade brasileira, sobretudo a sua classe política, deve fazer uma pausa para refletir com seriedade sobre aqueles fatos, as causas que o provocaram e as suas conseqüências. É bom que o façamos para que não deixemos que se repitam em escala de tragédia nacional, como vêm se repetindo em escala menor, com freqüência assustadora, nos confrontos entre forças policiais e integrantes do movimento dos sem-terra. Eldorado do Pará, há um ano, e Canudos, há um século, diferem apenas nas suas proporções. Mas têm as mesmas origens: a nossa tragédia social que é tão velha como a nossa história.

A nossa história é a de um projeto econômico mercantilista, aqui aportado há quase 500 anos. Não é a história de um povo que buscasse nas terras recém-descobertas da América um espaço físico para desenvolver um nova sociedade, como fizeram os colonos ingleses que, mais ou menos na mesma época, desembarcaram na costa leste da América do Norte.

Já por volta de 1640, um dos nossos primeiros historiadores, o franciscano Frei Vicente do Salvador, protesta contra este projeto colonial. Diz que os primeiros povoadores do Brasil "tudo pretendem levar a Portugal, e, se as fazendas e os bens que possuem souberem falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque tudo querem para lá." E acrescenta que os mesmos povoadores "usam da terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída".

Dos tempos coloniais aos nossos dias, Srs. Senadores, as nossas elites econômicas cultivaram sempre esta mentalidade egoísta de usufrutuários dos nossos recursos naturais. Estão sempre atrás do sonho de riquezas fáceis, sem se preocuparem com a constituição de uma sociedade justa e incluidora do povo no usufruto dos bens gerados pelo trabalho de todos. Desde as suas origens, a nossa sociedade vem promovendo a exclusão econômica e social de grandes massas populares.

A economia mercantilista, da Colônia e do Império, sustentava-se na mão-de- obra escrava e na exclusão de todos os que não pertenciam à classe dos "homens bons", como se designavam os proprietários de terra e possuidores de alguma renda. A estes, tudo; ao povo, nada. Esta feição patrimonialista marca até hoje a ação do Estado brasileiro e as nossas relações sociais. Basta ver o destino que tomam os recursos orçamentários. A crônica falta de recursos destinados à saúde pública, então, é o exemplo mais flagrante.

Os primeiros excluídos da nossa história, como os de hoje, eram, além dos escravos, os libertos, os índios, os caboclos, os mestiços e mesmo larga parcela da população branca reduzida à pobreza.

Contra esse estado de coisa não faltaram as revoltas populares, como a do Quilombo dos Palmares (1695), a Cabanada (1836), a Praieira (1848), a Quebra-Quilos (1872) e muitas outras, que a história oficial apresenta como badernas. Canudos, nos primeiros anos da República, foi a mais violenta de todas.

Canudos e Juazeiro do Padre Cícero, por suas singularidades, destacam-se no meio desse quadro de revoltas populares. 

No fim do século passado e começo deste, todo o Nordeste era um caldeirão de pressões sociais prestes a explodir. A massa dos sem-terras de então, constituída pelos trabalhadores servis nas fazendas, ex-escravos e índios espoliados de suas terras, pressionava de todas as formas contra a situação de pobreza. O seu refúgio era, como ainda hoje, a fé que leva milhões de romeiros aos santuários, como Bom Jesus da Lapa na Bahia e Juazeiro do Norte e Canindé no Ceará.

Antônio Conselheiro em Belo Monte, hoje Canudos, e Padre Cícero no então povoado do Juazeiro, tão místicos quanto seus seguidores, souberam catalisar a força social da revolta do povo. Usaram o misticismo do povo para guiá-lo para uma nova Canaã, uma terra da promissão, onde correriam leite e mel. Constituíram-se, dessa forma, dois núcleos populacionais com gente pobre e humilde, que hoje chamaríamos de excluídos.

A organização social em moldes comunitários, a fé, o trabalho e o forte espírito solidário unindo as pessoas fizeram logo daqueles povoados núcleos de grande poder econômico e de influência social em todo o Nordeste.

Canudos, no seu auge, teve uma população de 25 mil pessoas, chegando a ser a segunda cidade da Bahia em população. O seu artesanato em couro movimentou por algum tempo uma expressiva parcela da economia regional. Tudo isso, se atraía, de um lado, maiores contingentes de pobres em busca da terra prometida, por outro, assustava as classes dominantes da região, como os fazendeiros que perdiam a mão-de-obra servil, os comerciantes e o clero.

Canudos foi destruída pelas armas da República recém-criada. Juazeiro é hoje uma das mais progressistas cidades do Ceará, graças à organização social que lhe deu o seu fundador, baseada na força da fé dos humildes, no respeito aos direitos das pessoas, no trabalho e no espírito solidário.

Canudos e Juazeiro têm hoje para nós valiosas lições. A lição de Canudos foi-nos revelada por Euclides da Cunha, ao arrematar Os Sertões com esta frase, que hoje nos soa profética: "Canudos não se rendeu." De fato, Canudos não se rendeu, pois está hoje presente no Brasil inteiro. As suas causas estão ainda entre nós, na pobreza e abandono do povo, e provoca as quase insuportáveis tensões sociais nas cidades e no campo. Canudos está presente, sobretudo, no movimento dos sem-terra. Cabe a nós, Srs. Senadores, dar a Canudos de hoje um destino mais feliz do que aquele que foi dado a Canudos de cem anos atrás. O seu fim trágico é uma lição que não deve ser seguida por nós.

Juazeiro do Padre Cícero, não obstante as muitas guerras também sofridas, está hoje aí, mostrando na sua pujança econômica e social. Esta é uma lição a ser seguida por nós. Hoje diríamos que o Padre Cícero implantou em Juazeiro, um pequenino núcleo populacional perdido no interior do Nordeste, um projeto de inclusão social de milhares de desvalidos da sorte do seu tempo. 

Este projeto é, hoje, não apenas válido, mas de extrema urgência. E, queiram ou não os opositores do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a realização deste projeto será a obra máxima do seu governo. Por isso, a sua luta para convencer a sociedade e o Congresso Nacional da necessidade das reformas estruturais. 

Precisamos nos convencer de que é urgente quebrar as estruturas do Estado patrimonialista que, historicamente, tem servido à concentração da renda nacional nas mãos dos "homens bons", uma elite faustosa, e reduz à pobreza extrema a maioria do povo brasileiro. No seu lugar é preciso colocar um Estado que tenha como meta a inclusão social, econômica, política e cultural de cerca oitenta milhões de brasileiros. E vale a pena lutar por este projeto que herdamos das lutas do povo nordestino.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/11/1996 - Página 19424