Pronunciamento de Marina Silva em 16/12/1996
Discurso no Senado Federal
TEMAS NACIONAIS TRATADOS NESTA SESSÃO LEGISLATIVA, DENTRE OS QUAIS: SIVAM, ORÇAMENTO DA UNIÃO, REFORMA AGRARIA, REELEIÇÃO, BIODIVERSIDADE E O PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL MUNDIAL EM DECORRENCIA DA GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA.
- Autor
- Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
- Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
LEGISLATIVO.
ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
- TEMAS NACIONAIS TRATADOS NESTA SESSÃO LEGISLATIVA, DENTRE OS QUAIS: SIVAM, ORÇAMENTO DA UNIÃO, REFORMA AGRARIA, REELEIÇÃO, BIODIVERSIDADE E O PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL MUNDIAL EM DECORRENCIA DA GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA.
- Aparteantes
- Jefferson Peres.
- Publicação
- Publicação no DSF de 17/12/1996 - Página 20705
- Assunto
- Outros > LEGISLATIVO. ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
- Indexação
-
- ANALISE, ASSUNTO, DISCUSSÃO, CONGRESSO NACIONAL, SESSÃO LEGISLATIVA, REFORMA AGRARIA, SISTEMA DE VIGILANCIA DA AMAZONIA (SIVAM), ORÇAMENTO, UNIÃO FEDERAL, REELEIÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, MELHORIA, ENTENDIMENTO, SEM-TERRA, CONFLITO, POSSE, TERRAS, PROPRIETARIO.
- AGRADECIMENTO, PESSOAL, SENADO, ATUAÇÃO, ORADOR, SESSÃO LEGISLATIVA.
- ANALISE, PROCESSO, EXCLUSÃO, NATUREZA SOCIAL, MAIORIA, POPULAÇÃO, MUNDO, EFEITO, POLITICA INTERNACIONAL, GLOBALIZAÇÃO, ECONOMIA.
A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não sou muito afeita a falar da tribuna, mas, como estamos transmitindo mensagens de fim de ano, tentarei ser breve, até por que o Senador Romero Jucá foi muito gentil em nos ceder o seu horário.
Em 1996, tivemos, nesta Casa, o debate de vários temas. Não falarei deles pela ordem de importância e nem pela ordem cronológica dos fatos, mas aleatoriamente. Discutimos Sivam, Proer, CPMF, reeleição, que ainda está sendo discutida, e uma série de outros temas que, embora importantes, deixarei de citar.
No entanto, tenho absoluta certeza de que, entre as tantas matérias debatidas, a questão da terra, da violência do campo, da reforma agrária foi a que teve maior visibilidade no conjunto da sociedade brasileira, pelo que representa para as estruturas social, política, cultural e ideológica deste País.
A questão agrária emergiu pela força do Movimento dos Sem-Terra - lamentavelmente, por terríveis acontecimentos, como o caso de Corumbiara e da Fazenda Macaxeira, no Estado do Pará - e criou uma força que hoje é debatida e discutida até nas novelas de maior audiência.
Diria que a discussão da reforma agrária no País deu visibilidade a um tema que sempre foi tabu de intelectuais ou de pessoas que tinham algum compromisso mais orgânico com o tema, do ponto de vista ideológico da Esquerda ou da Direita. Hoje, a questão da reforma agrária está sendo popularizada pela forma como vem sendo debatida.
Neste final de ano, houve, infelizmente, o reaparecimento de uma chaga muito perversa para a vida pública no País, que foi a reedição de escândalos na feitura do Orçamento, com o envolvimento do Deputado Pedrinho Abrão.
Também aconteceram fatos importantes, como a aprovação do rito sumário nesta Casa, o meu projeto que descriminaliza a ocupação de terras que não cumprem a sua função social, segundo o estabelecido no art. 186 da Constituição Federal, inúmeras outras propostas positivas.
Do ponto de vista do meu trabalho, graças a Deus, tive a oportunidade de ver compreendida e aprovada pela Diretoria do Banco da Amazônia a criação da primeira linha de crédito para os extrativistas da Amazônia. Conseguimos, após 200 anos de extrativismo naquela região, uma linha de crédito que financiasse o seringueiro, o babaçueiro, a quebradeira de côco e o pescador, enfim, aqueles que moram nas várzeas e que vivem do extrativismo, uma atividade que representou muito na economia deste País.
São R$24 milhões a serem investidos nessas atividades, por meio de uma linha de crédito especial - Prodex -, que terá normas operacionais simplificadas para que os pequenos possam a ela ter acesso. Outras propostas muito positivas foram debatidas e aprovadas, inclusive, o meu projeto de acesso aos recursos da biodiversidade, uma necessidade estratégica para o nosso País, que é considerado uma Nação de megadiversidade.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estamos num final de ano e sempre somos impelidos às mensagens que tocam mais o espírito. O que me tem preocupado muito nesses últimos anos é o processo perverso que vem acontecendo não só no Brasil, mas em todo o Planeta, em nossa pequena casa chamada Terra, de separação da raça humana em duas categorias: os humanos de primeira classe, que são os incluídos da globalização; e os de segunda, os excluídos.
Estou tendo a felicidade de fazer na UnB um curso de doutorado em meio ambiente e desenvolvimento e tendo a oportunidade de ter aulas com o Prof. Cristovam Buarque, que está trabalhando com muita competência a questão da exclusão social e dos fenômenos oriundos da globalização. Uma de suas afirmações, que é motivo de muita preocupação para mim - sinto que o Prof. Cristovam e outros tantos estão sistematizando essas preocupações de forma acadêmica, é a de que estamos vivendo uma "esquina ética". Com muita propriedade, o Prof. Cristovam diz que, se não fizermos algo fantástico, excepcional, poderá ocorrer uma bifurcação da humanidade: os que serão considerados humanos e os que não serão considerados tão humanos.
Parece loucura dizer isso, mas já aconteceu na História. Na Grécia antiga o escravo não era considerado ser humano, mas objeto. Bem recentemente, no processo de ocupação das colônias, inclusive no Brasil, houve a reedição desse processo, quando os negros africanos também não eram considerados humanos.
O que está acontecendo hoje com a humanidade faz-nos refletir sobre o problema. Talvez a nossa utopia, a utopia dessa entrada de milênio, a utopia para ser começada logo, já em 1997, é de evitarmos que a raça humana perca o sentido ético de que somos todos iguais, de que não nos diferenciamos pela condição social que ocupamos, pelos conhecimentos que temos e pelo que produzimos.
Esse processo de indiferença já acontece. Hoje o Prof. Buarque mostrava que existem inúmeras nomenclaturas, tipificações, palavras para classificar a criança: meninos de rua, pivete, um série de outras tipificações para identificar as crianças. As nossas são tidas como crianças, mas as outras são chamadas de pivete, meninos de rua, uma série de outros nomes, o que demonstra certa diferenciação.
Na sexta-feira, eu vinha da Câmara para o Senado e observei que as pessoas que fazem a limpeza das duas Casas se vestem diferentemente: os da Câmara se vestem de azul e os daqui se vestem de verde. Fiquei pensando que talvez fosse mais adequado que os que trabalham no Senado se vestissem de azul e os que trabalham na Câmara se vestissem de verde. Também observei que a maioria deles são baixos, magros, pequenos e que, muitas vezes, passamos por eles sem expressar nenhum tipo de comunicação. Pensei que fosse mera coincidência, mas talvez haja algum sentido. Se seu uniforme fosse da mesma cor que o tapete de cada Casa, talvez todos esbarrassem neles e não lhes dessem atenção. Muitas vezes quando os cumprimento é preciso fazê-lo mais de uma vez, porque alguns não acreditam ser com eles que estou falando, só depois de certo tempo é que percebem.
Eu, que sou baixinha e pequenininha, se me vestisse de verde ou azul talvez ninguém notaria ser eu a Senadora Marina, porque também faço parte desse segmento social que não cresceu muito, que não tem muito tecido adiposo, mas que tem inteligência, que tem coração, que tem alma.
Quando falo em exclusão social, em bifurcação da raça humana, pode parecer que está muito longe, que isso só acontece em outros lugares, mas devemos ter muito cuidado porque aqui também já acontece.
Quero desejar um Feliz Natal a todos os funcionários desta Casa, aos meus colegas Senadores e também aos "azuis" e "verdes" que fazem a limpeza do Congresso Nacional.
O Sr. Jefferson Péres - V. Exª permite-me um aparte?
A SRª MARINA SILVA - Concedo o aparte ao Senador Jefferson Péres.
O Sr. Jefferson Péres - Em primeiro lugar, registro minha alegria por vê-la há vinte minutos em pé, o que indica que sua saúde está atravessando boa fase.
A SRª MARINA SILVA - Graças a Deus.
O Sr. Jefferson Péres - Preocupa-me quando V. Exª pede para falar sentada, o que é sinal de que as coisas não vão bem em seu organismo. V. Exª faz um excelente discurso de cunho humanístico. V. Exª referiu-se a essas pessoas humildes que fazem a limpeza do nosso edifício, e lembrei-me de que costumo cumprimentá-las e noto da parte de muitos uma surpresa. Às vezes se voltam para mim como que indagando por que estou cumprimentando-os, o que demonstra que são pessoas realmente olhadas por nós e por tantos como objetos, ou que são inteiramente ignoradas, o que mostra o abismo existente em nossa sociedade. Quando V. Exª, do alto dessa tribuna, numa mensagem natalina, lembra-se dessas pessoas, o que mostra a grandeza de espírito que todos reconhecemos em V. Exª. Meus parabéns pelo seu pronunciamento.
A SRª MARINA SILVA - Muito obrigada. Incorporo o aparte de V. Exª.
Quando político diz que será breve, podemos desconfiar, e eu já estou falando muito. Por isso, vou concluir. E ao encerrar este pronunciamento gostaria de dizer que o nosso desafio em 1997, para começarmos desde agora, deve ser no sentido de intensificar esse esforço para continuarmos todos humanos.
Há uma frase bíblica que diz: "Onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração". Quero, de coração, que em 1997 o nosso tesouro esteja na reforma agrária, na abertura de mais vagas nas escolas de todos os níveis, para que as nossas crianças e os nossos jovens possam acompanhar esse processo de crescimento do conhecimento, que é fantástico, mas também é assustador, porque os que não tiverem acesso a ele podem ser retirados de dentro da arca que caminha rumo a uma estrela que não sei se é de Davi nem sei para aonde vai. Desejo também que o nosso tesouro esteja no compromisso de fazermos com que o Brasil, independentemente das nossas ideologias, das nossas crenças, possa ser uma pitadinha de esperança no planeta de que os seres humanos podem viver com dignidade, podem viver de forma respeitosa. Isso às vezes parece uma bobagem, parece difícil, mas eu gosto de assumir desafios que parecem óbvios e ao mesmo tempo são difíceis.
Quando ganhei a eleição, algumas pessoas perguntaram-me como eu tinha conseguido isso; e eu respondi: a diferença entre mim e Dom Quixote é que Dom Quixote duelava com moinhos de vento pensando que eram gigantes, e eu às vezes duelo com gigantes pensando que são moinhos de vento. É por isso que não me machuco tanto.
Sr. Presidente, o nosso desafio para 1997 é que acompanhemos o ritmo da água, que não conhece obstáculos. Quero concluir contando uma parábola: havia um filetezinho d´água que saiu de uma nascente e que desejava muito chegar até o mar. Ele atravessou montanhas, florestas, uma série de intempéries que não imaginava que seria capaz de atravessar. Então chegou a um grande deserto parou e pensou: "Aqui é impossível, porque vou desaparecer. Há muita areia seca. Aqui eu me acabo". Então ouviu uma voz: "Não tema o deserto, pequena gota d´água; você vai evaporar-se, mas quando você bater lá nas pedras geladas, você vira novamente um filetezinho de água e chegará até o mar".
A água não oferece nenhuma resistência. É por isso que ela é extremamente poderosa, ninguém pode ser morto pela água, porque ela não faz nada, apenas permite que nos afoguemos. Ao mesmo tempo que vence todos os obstáculos, que parece tão mansa e tão suave, a água é altamente poderosa.
Que os nossos corações permitam-se permear do conhecimento e da diferença do outro, mesmo quando discordemos dele.
Que 97 seja o ano em que consigamos compatibilizar o conhecimento necessário para podermos encontrar a maior declividade para corrermos até o mar, a sabedoria necessária para evitarmos os perigosos atalhos que muitas vezes queremos seguir e que tenhamos, acima de tudo, sentimentos, para que o nosso conhecimento e a nossa sabedoria não sejam arrogantes, não nos permitindo mudar e sermos tão inflexíveis, a ponto de lançarmos mão de meios que ultrajem o grandioso propósito que estamos perseguindo.
Feliz 97 e que Deus proteja todos nós. Muito obrigada.