Discurso no Senado Federal

CRITICAS AO GOVERNO FEDERAL, NO CONCERNENTE AOS MEIOS EMPREGADOS PARA CONSEGUIR A REELEIÇÃO. IMPERIALISMO DO SENHOR FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. PROPAGANDA GOVERNAMENTAL ENGANOSA. QUESTIONANDO A REELEIÇÃO, TEMA CONDENADO PELA HISTORIA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA CONSTITUCIONAL.:
  • CRITICAS AO GOVERNO FEDERAL, NO CONCERNENTE AOS MEIOS EMPREGADOS PARA CONSEGUIR A REELEIÇÃO. IMPERIALISMO DO SENHOR FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. PROPAGANDA GOVERNAMENTAL ENGANOSA. QUESTIONANDO A REELEIÇÃO, TEMA CONDENADO PELA HISTORIA.
Publicação
Publicação no DSF de 01/02/1997 - Página 3624
Assunto
Outros > REFORMA CONSTITUCIONAL.
Indexação
  • CRITICA, FORMA, GOVERNO, GARANTIA, APROVAÇÃO, CAMARA DOS DEPUTADOS, EMENDA CONSTITUCIONAL, REELEIÇÃO.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o mês de janeiro é o mês do reinício. Deveria ser um mês da alegria e da esperança, mas este janeiro tem todas as características, as cores e o som do tramonte, das horas da véspera, das horas noturnas e sombrias em que a desesperança passa a ocupar o espaço do sol e da alegria.

Rui Barbosa dizia, de uma maneira quase premonitória, que neste País teríamos, muitas vezes, vergonha de ser honestos, vergonha de sermos corretos quando nos deparamos com a deterioração das instituições, com a degradação das regras do jogo, com o caráter espúrio, autocrático que assumem as relações de poder; com o desprezo para as necessidades sociais; com a dominação da violência em todas as suas formas, desde os meios de comunicação até relações sociais mais simples.

Este janeiro, infelizmente, se inaugura com um conjunto novo de situações, como um cadinho em que ingredientes completamente despóticos atestam o que nos espera neste País.

Interessante é o tropismo, a atração desse Governo que aí está. Embora afirme que as burras das finanças estão vazias e que o Governo se encontra em crise, esse Executivo despótico retira das vísceras da sociedade, das veias que se tornaram tênues, finas, o pouco sangue que escorre no organismo social; e daí retira, quase como um transplante de vísceras e de órgãos de um organismo semimorto, através da evisceração das empresas estatais, através de uma privatização que só beneficia as empresas que ganham, que recebem os despojos do Estado, que se diz falido.

O que é bom para o Governo a gente mostra, e mostra de uma maneira também espúria, ilegal, com uma propaganda que faria inveja à de Goebbels no Estado nazista de Hitler. A propaganda enganosa visou impingir e transformar a ilegalidade em legalidade, a inconstitucionalidade da reeleição em algo abençoado por uma legislação preparada pela violência, que mostrou a todos nós, pela televisão, e ao povo brasileiro, a que grau chegou a forma de elaborar as leis neste Congresso Nacional, e especialmente na Câmara dos Deputados. Não apenas o abuso dos meios de comunicação que o Tribunal Superior Eleitoral mandou retirar dos canais vendidos dos nossos meios de comunicação, mostrando a ilegalidade e a violência do Governo, que quer ficar a qualquer custo, que quer permanecer de qualquer maneira, sobre o custo social que já foi imposto ao País, sobre o sacrifício das instituições e das tradições que deveriam ser preservadas.

Lá na Câmara dos Deputados, os jornais e os meios de comunicação mostraram que agora ingredientes novos entram nessa feijoada, em que os mestres-cucas tomam seus aperitivos e brindam com seus champanhes estrangeiros após o festim.

O que verificamos é que alguns ingredientes novos, deletérios, entraram nesse processo de conquista da reeleição por meio da mudança do art. 14 da Constituição Federal, principalmente do § 5º, permitindo a Sua Majestade o Presidente da República permanecer no cargo, talvez de forma indefinida, sem término para a sua volonté de puissance - seu desejo de poder -, que iguala ou supera aquele dos Déspotas Esclarecidos, do Rei Sol - le Roi Soleil - e de outros déspotas que, durante a pré-história da sociedade civilizada, dominaram o mundo a partir dos centros em que o capitalismo se desenvolvia.

O que é bom, a gente mostra. E a televisão, então, passou a veicular, como não havia o bom, a mentira, o engodo, a fantasia de números e dados completamente falsos.

Assim, diante da decadência e da feiúra da imagem real e da realidade da sociedade brasileira e da sociedade latino-americana de um modo geral, porque em vários países da América Latina um plano idêntico a esse, provocando o mesmo desprezo pelo social, retirando do social para socorrer banqueiros, pulverizando os recursos públicos e deixando à míngua a saúde, a educação, a cultura, o lazer, a habitação, a reforma agrária, etc.

E assim, depois de dois anos dessa amostra, que não foi amostra grátis, porque o custo FHC é o mais elevado custo que um governo já cobrou de uma sociedade brasileira em toda a sua história. O custo Brasil, dizem eles, é constituído pelos altos salários e pelo alto custo do emprego no Brasil. E de tanto repetir isso, o custo Brasil passou a ser, então, algo condenável, achatável e comprimível. A redução de salários, a possibilidade de contratação sem carteira assinada, aumentando para 51% da população brasileira de trabalhadores que não têm carteira assinada, permitindo o contrato temporário de trabalho, reduzindo o custo das demissões. Assim se reduz o custo Brasil.

Mas qual é o custo FHC? Como aumenta esse custo FHC de uma forma despudorada? Só esse projeto de reeleição, dizem os jornais, custou R$40 milhões aos cofres brasileiros. Não digo o custo FHC, de suas vinte e tantas viagens ao exterior. Isso é nada diante dos pelo menos R$14 bilhões que foram entregues aos banqueiros que se diziam falidos.

Mas o mais grave é que os danos que agora se fazem nas instituições fundamentais da sociedade brasileira, a desmoralização do Congresso, constituem custos FHC, fazem parte do custo FHC e não são quantificáveis. Não me refiro ao dinheiro, aos favores que compraram os votos dos Deputados que se diziam indecisos para valorizar a sua mercadoria. Não digo o custo de colocar no plenário aqueles mecenas, aqueles capitalistas que financiaram as campanhas dos seus representantes e que depois foram lá cobrar; onde o voto se transformou em mercadoria e, agora, um balcão de negócios, prometendo obras e mais obras em todos os lugares. Se essas promessas de campanha da reeleição fossem cumpridas, o Brasil se transformaria num verdadeiro paraíso, porque todas as propostas, todas as reivindicações dos municípios, dos Estados e da União, em todos os níveis políticos, foram satisfeitos. Veremos que se se cumprirão essas promessas.

Portanto, é muito triste o espetáculo a que assistimos em janeiro. É deprimente que a Câmara dos Deputados tenha se rendido dessa maneira em alguns que votaram nessa espúria reeleição, que fere a tradição brasileira. Na dura Velha República, de eleições de bico de pena, na democracia brasileira, democracia da elite, a elite divide a grande parte do butim: 5% dos proprietários de terra detêm 60% da terra no Brasil; 10% dos mais ricos detêm 52% da renda nacional. A saúde é um privilégio; a educação é um funil para manter o status quo: aqueles que não tiveram os instrumentos de ascensão pela educação se mantenham como analfabetos ou semi-alfabetizados.

Desse modo, as coisa se mudam, a Constituição é rasgada, tudo se muda para que tudo permaneça como está. Esse é o Governo da reação, o Governo do retorno ao passado, entre outras tradições que deveriam ser preservadas, nesta nossa tenra democracia, democracia unicamente eleitoral, e mesmo as eleições conspurcadas com as bombas monetárias que nos são lançadas na campanha. Mas pelo menos o ritual do rodízio de quatro em quatro anos tinha sido obedecido em todos os Governos, da Velha República e mesmo das fases de exceção, da ditadura de Getúlio ou dos militares. Quatro ou cinco anos, no máximo, era o período de Governo admitido e respeitado por todos. Rodrigues Alves se elegeu em 1902 e se reelegeu em 1918, mas não chegou sequer a tomar posse na Presidência, porque morreu antes disso.

De modo que o que vemos aí é esse espetáculo, que não parece o espetáculo da abertura de um novo ano, mas uma triste e sombria hora do tramonte, a hora das vésperas, hora em que a escuridão inicia a sua marcha sobre a sociedade brasileira.

Assim é, portanto, preciso anestesiar as consciências, e alguns para desculpar o tropismo, a atração do Poder Executivo hipertrofiado, que obviamente se distanciou muito pouco da ditadura militar, porque, em qualquer momento da existência da sociedade capitalista, quer durante o despotismo esclarecido, quer diante do sistema presidencialista praticamente monárquico, o que vemos é a hipertrofia constante do Poder Executivo.

O Governo Federal dos Estados Unidos gasta mais de US$2 trilhões por ano. Isso não é hipertrofia? É um Poder Executivo que tem o poder bélico fantasticamente engrandecido, um Poder Executivo que tem o poder emissor, que tem o poder de elevar a dívida pública, que tem o poder de extrapolar lançando leis Helms-Burton e outras formas de expressar internacionalmente o poder despótico, concentrado na democracia, unicamente democracia eleitoral.

Dizem eles: "Mas nos Estados Unidos, os Presidentes podem ser reeleitos!" Nos últimos 50 anos, esse é o primeiro Presidente do Partido Democrata que é reeleito. E só durante a Segunda Guerra Mundial é que o Presidente Franklin Roosevelt conseguiu, sim, a sua recondução, por três vezes, ao cargo de Presidente. Mas isso se deveu ao Estado ditatorial, despótico e excepcional existente nesse período de guerra.

Portanto, não é possível, para amainar as exigências das consciências individuais, exigências cada vez menores, arrumar-se argumentos falsos como este, de que a tradição não deve ser respeitada. E muitos dos que falam que a tradição não deve ser respeitada, que ela não é algo de peso, recorrem à tradição que os seus partidos, com outros nomes, teriam a partir de 1946.

Ora, esses partidos que invocam a sua tradição a partir de 46 como partidos favoráveis à reeleição esquecem-se de que, naquele momento, eles tinham como modelo a economia da União Soviética, em que Stálin já se encontrava no poder, sem eleição, há seguramente quase 20 anos. De modo que aqueles que entendem que a tradição relativa à reeleição no Brasil não é um argumento ponderável invocam a tradição a partir de 46, para justificar o seu apoio ao atual Governo.

Jean-Paul Sartre já dizia que o que nos castiga, o que nos martiriza, o que nos angustia é a consciência. Não se tendo consciência dos acontecimentos e não se querendo tê-la, é possível, obviamente, bater palmas e comemorar o enterro das instituições brasileiras, tal como aconteceu, na semana passada, com os critérios democráticos do rodízio e da desincompatibilização necessária para a disputa de qualquer cargo. E o princípio que passou a dominar, o imperativo categórico às avessas que passou a dominar na Câmara foi a regra: "Ou todos nos locupletamos ou restaure-se a moralidade."

Como era impossível evitar-se a imoralidade da reeleição de Sua Majestade o Presidente da República, prefeitos, governadores de Estado e o próprio Presidente, todos eles passaram a se beneficiar da imoralidade. Não podendo restaurar a dignidade e a moralidade, todos se locupletaram nesse grande banquete, em que essas facilidades foram estendidas aos prefeitos e governadores que para cá afluíram, a fim de exercer pressão sobre os seus deputados federais.

Assim, houve uma múltipla pressão: dos financiadores da campanha da burguesia - que estava aqui, em massa - e de sindicalistas completamente desrealizados e incapazes de entender o significado de um sindicalismo realmente combativo, diante da barbárie que se instaura no capitalismo mundial, com um bilhão de desempregados. Ouvia dizer, lá em Minas: trabalhador que fica bajulando o governo, o patrão, é um trabalhador sem-vergonha.

Assim, juntando-se essas forças contrárias, em grande harmonia, para o banquete, a feijoada, que se preparava na Câmara, neste janeiro, conseguiram fazer com que todos se locupletassem da grande imoralidade que representa esse processo que permite tudo neste País, que institucionaliza e que constitucionaliza o execrável, o condenável, o crime. Se um dia votássemos leis neste Congresso que considerassem o homicídio, o parricídio, o estupro, como atos não atingíveis pela lei, descriminando todos esses comportamentos selvagens, nenhum homicida, parricida ou estuprador no Brasil estaria praticando crime. Basta, obviamente, fazer com que o condenável pela história, pela tradição, pela essência da democracia, transforme-se em algo constitucional, para que o condenável passe a ser legal, o crime passe a não ter pena e, assim, possamos viver num paraíso das estatísticas, em que a criminalidade se reduz a zero, mas em que também a dignidade humana vai ao pó.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/02/1997 - Página 3624