Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO SENADOR DARCY RIBEIRO.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO SENADOR DARCY RIBEIRO.
Publicação
Publicação no DSF de 20/02/1997 - Página 4101
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DARCY RIBEIRO, SENADOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quantas vezes observei Darcy Ribeiro no meio de seu padecimento, penetrar no plenário, comparecer às sessões, que para ele já eram muito penosas; mas nesta sessão Darcy Ribeiro não gostaria de estar presente; nesta sessão, em que homenageamos o seu passamento, Darcy Ribeiro gostaria de continuar vivo, e não de assistir a uma sessão em homenagem ao seu passamento.

Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros. É um fenômeno que acontece muito raramente, como a passagem do cometa Halley. Darcy Ribeiro, criança em Montes Claros, deve ter escutado até o final de seus dias a palavra de seus parentes, de suas tias, dizendo: "Êta, menino; êta, Darcy; esse Darcy não pára". E Darcy não parou, jamais parou, porque Darcy, o mineiro de Montes Claros, era um eros, um eros diferente daquele eros grego. Darcy Ribeiro era um eros universal.

De onde trazia ele a força, a capacidade de continuar a nos mostrar a cascata de seu sorriso? De onde tirava ele a força vital que demonstrava com bravura a cada passo de sua vida?

Montes Claros não comportava Darcy Ribeiro. Por isso, ele foi para Belo Horizonte por volta de 1940 e ingressou onde não devia.

Na Sorbonne, deram-lhe o título de doutor honoris causa, e um título de doutor honoris causa não conquistado por outras influências, mas pela força de sua inteligência, pelo poder de sua cultura única e exclusivamente.

Lá, dizia Darcy Ribeiro, recebeu o título de doutor honoris causa devido aos seus fracassos. Não conseguiu, disse ele naquele discurso, nenhum êxito nos seus grande projetos; não conseguiu concluir nada na vida. A Universidade de Brasília, que ele imaginou e colocou em prática, teve que chamá-la um dia de sua filha prostituída; prostituída, sim, por aquilo que veio em 64 e que impôs na universidade de Darcy Ribeiro a antiuniversidade. Centralizada, despótica, autoritária, criou, em vez de um espaço para a cultura, uma muralha despótica da anticultura, da antipesquisa, do bitolamento, do estreitamento das cabeças ao invés de abrir as portas dos departamentos fazendo com que os departamentos se inseminassem pelas informações, pelo contato entre os vários departamentos, de Economia e de Sociologia, de Política, de Antropologia. Na concepção totalizante de Darcy Ribeiro, todo saber se interpenetrava. Interagia uma parte do saber humano sobre a outra.

Darcy Ribeiro foi para Belo Horizonte e lá seguiu o caminho errado: fez concurso vestibular para a faculdade de medicina e, como lembrava ele, nunca teve uma aprovação naquela faculdade. Irrequieto, Darcy Ribeiro foi procurar matar a sua sede de conhecimento na faculdade de filosofia e, como ele conta às páginas 88 e 89 de seu livro chamado Migo, ele ia à faculdade de direito assistir às aulas de meu pai.

Dizia Darcy Ribeiro, para grifar, como costumava fazer, para acentuar ou exagerar em suas colocações: naquela ocasião em Minas havia os bené, os pedrinhos, os miltinhos, os afonsinhos. Mas lá conheci também Carlos Campos - o único sábio com que convivi na minha vida -, uma vida inteira dedicada ao estudo e à pesquisa, triste e solitária vida. Ao defrontar-me com ela, dizia Darcy Ribeiro, eu me assustei.

Pois bem, portanto, foi em minha casa, aos 57 anos de idade, aproximadamente, que, pela primeira vez, encontrei-me com o Darcy Ribeiro, ele seis anos mais velho do que eu. Depois, vivi 26 anos prisioneiro de uma obra de Darcy Ribeiro: a Universidade de Brasília, onde fui professor de dedicação exclusiva em tempo integral.

Em 1963, conversava com um primo de Darcy Ribeiro, Lincoln Ribeiro, professor da UnB. Dizia a ele, premunitoriamente: "Lincoln, diga para seu primo Darcy Ribeiro que o projeto da Universidade de Brasília vai ser vitorioso um dia no Brasil. Mas, talvez nesse dia, nem ele, nem você, nenhum dos professores que lá está hoje poderá continuar a lecionar. Você é professor de política, Lincoln Ribeiro, e por isso sabe: vivemos na Améria Latina, onde a estrutura política não tem estabilidade e o próximo golpe que vem aí não é o golpe sonhado, o golpe da Esquerda. Vai ser o golpe da Direita, que vai mandar-nos todos embora. Vai demitir todos e vai aproveitar a estrutura despótica, centralizadora, sem concurso, sem garantia para os professores. Num País em que as conquistas dos trabalhadores ainda não tinham a sua história, os professores eram apenas garantidos pela CLT.

Infelizmente a minha visão de outubro de 1963 veio se concretizar. Como eu não queria aquele tipo de relação profissional, fui fazendo concurso para catedrático e ser vitalício. Quem sabe, na Cátedra, no poder da Cátedra, pudesse eu desenvolver a minha bitola estreita e quem sabe um dia a minha mediocridade viesse atingir as proximidades da inteligência e da fulgurância de Darcy Ribeiro.

Mais uma vez, aqui, a vida nos aproximou, aqui neste Senado. Darcy Ribeiro foi uma explosão que acontece raras vezes. E, como ocorre em toda explosão, as luzes que dele emanaram foram em várias direções. Uma explosão fantástica de eroticidade, de capacidade de viver, capacidade de gozar a vida, capacidade de ousar, colocando a sua imaginação sem teias na construção de projetos utópicos e a sua habilidade incrível na concretização desses sonhos.

Para a Universidade de Brasília, ele abalou, para incorporar o seu projeto, do Vaticano até as forças políticas que se lhe opunham naquela ocasião.

Darcy Ribeiro não pôde descansar na Universidade de Brasília. Como é difícil a um homem dependente, a um ser que pretende manter a sua coerência, sobreviver num País como o Brasil! Darcy Ribeiro matou um leão por dia durante toda a sua vida. Escreveu 26 livros com mais de 140 edições em várias línguas do mundo.

Darcy Ribeiro retirava aquela sua força vital de seu riso, de sua magia interior. E jamais o "Eros" Darcy Ribeiro teve qualquer receio de Tánatos. A impressão que eu tinha é que se Tánatos, à morte, um dia conseguisse vencer aquela fantástica manifestação de vida de Eros, Darcy Ribeiro ainda iria conseguir, mais um vez, num processo de encantamento, convencer Tánatos a deixá-lo conosco por mais algum tempo.

O que Darcy Ribeiro pretendia fazer como antropólogo era bem mais do que aquilo que fez como etnólogo. O seu projeto, concretizado no seu livro O Povo Brasileiro, ainda não foi suficientemente aprendido e digerido pelos estudiosos no Brasil. A sua bitola larga torna difícil que nós, os medíocres, nós, aqueles que vivemos em nossa bitola estreita, possamos abarcar a sua ousada contribuição para a cultura brasileira.

S. Exª pretendia mostrar algo que se encontra, sim, em Gilberto Freire e que se encontra também na Filosofia da História, de Hegel, quando diz que "a grandeza da Grécia se deve ao fato de que a Grécia era o caminho pelo qual diversos povos diferentes convergiram e trouxeram as suas contribuições para formar o grande espírito helênico".

Assim Darcy Ribeiro via o Brasil, o povo brasileiro, nesse processo no qual acreditava e tinha fé e que, obviamente, não era a tentativa de construção do processo civilizatório brasileiro um processo fracassado. O projeto humano daria certo no Brasil, pensava e confiava Darcy Ribeiro.

Portanto, quando soube que o mestre Darcy Ribeiro havia, finalmente, sido colhido pelo noturno Thánatos, ainda fiquei pensando que era apenas um encantamento. Darcy Ribeiro teve coragem para tudo. Jamais escondeu sua qualidade de agnóstico, não teve medo de declarar que depois retornaria à condição de poeira cósmica,jamais teve medo de perder votos ao se declarar ateu.

Em 1974, teve que voltar ao Brasil. Sua esposa e colaboradora, Berta Ribeiro, escreveu cartas a amigos para viabilizar a operação que extrairia um dos pulmões do Senador Darcy Ribeiro, alguns deles se recusaram. No mesmo ano, sua batalha com a morte vai se tornando cada vez mais dura, mais penosa. Da última vez em que se referiu a ela, a essa luta contra a morte, S. Exª repetiu aquilo que todos sabemos: "só não quero sentir dor". E aconselhava àqueles que se encontravam em uma situação terminal em que a dor se mostrava insuportável, com aquele seu sorriso eterno: "tomem morfina, gozem, não sintam dor".

Portanto, Darcy Ribeiro enfrentou as lutas com aquele mesmo sorriso, com aquela mesma força vital que já possuía, obviamente, lá no seu pequeno Montes Claros e que o levou de lá e de Mato Grosso até os confins do mundo, recebendo, meritoriamente, o título de Doutor Honoris Causa, inclusive da Sorbonne.

Darcy Ribeiro passava de uma para outra, cada uma de suas obras concretizadas lhe redinamizavam a imaginação e o poder criativo, que o levava para novas empreitadas e, assim, nesse processo interminável em que a prática insemina a imaginação, a inteligência, em que a realidade cria novas condições e novos espaços para a utopia e o sonho.

Sei que Darcy Ribeiro não gostaria de estar presente nesta sessão. Mais ou menos o que falei agora, tive oportunidade de escrever num artigo publicado na Folha de S.Paulo, artigo este que seguramente foi lido por Darcy Ribeiro ainda em vida.

Mas quero me penitenciar pelo fato de que, mineiro medíocre que sou, trilhando as bitolas estreitas contra as quais me insurjo, não aproveitei a convivência de Darcy Ribeiro como gostaria de tê-lo feito. Por isso, penitencio-me. Mas foi a minha humildade, a minha mineirice, muito inferior à de Darcy Ribeiro, que impediram que eu crescesse, que eu me alargasse, que eu me aproximasse dele e de suas dimensões incomensuráveis.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/02/1997 - Página 4101