Discurso no Senado Federal

CRITICAS AO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ORA EM VIAGEM AO EXTERIOR.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • CRITICAS AO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, ORA EM VIAGEM AO EXTERIOR.
Publicação
Publicação no DSF de 21/02/1997 - Página 4204
Assunto
Outros > PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • CRITICA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, MOTIVO, ABUSO, REALIZAÇÃO, VIAGEM, EXTERIOR.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a caminhada humana, ao longo de milhões de anos, vem produzindo e modificando o homem. Pelas estradas do tempo ou pelos caminhos da Geografia, os antropóides, por meio de seu trabalho, construíram os homens.

Inseguros e vaidosos, eles se classificaram de forma repetitiva, sapiens, sapiens, como se, reafirmando, removessem a dúvida que têm a respeito de sua própria sabedoria.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, às custas de nossos impostos, após vencer a batalha a favor de sua própria reeleição, gastando promessas, esbanjando benesses, distribuindo pressões, sacrificando a democracia embrionária e os futuros orçamentos públicos, partiu para repousante e reveladora vilegiatura. É, talvez, a 24ª exposição global de si mesmo que Sua Excelência realiza pelas passarelas do "mundo civilizado" após seu coroamento na Presidência da República.

Conservando, ainda, alguns traços humanos, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, é levado por uma pulsão incontível e intermitente que se assemelha em tudo aos sintomas das neuroses obsessionais magistralmente descritos por Freud. Os atos repetitivos, obsessivos, aliviam as tensões internas, têm efeitos catárticos. Max Weber escreveu que o trabalho intenso, com seu ritual repetitivo, eficiente, serviria para aliviar as tensões dos trabalhadores, fazendo-os esquecer as angústias sobre sua salvação ou condenação eterna, dúvidas relevantes numa sociedade teocêntrica.

Desde a posse, Sua Excelência foi presa de insanável delírio ambulatório, que se explicaria como ato e exercício de expiação de alguma culpa recôndita, alojada no inconsciente, que leva o sujeito a afirmar sua superioridade fraca, desconfiada de si mesma. Sua Majestade o Rei do Brasil, título dado pelo Cônsul Inglês Ernest Hambloch em livro publicado pela Editora da UnB, tendo recorrido à amnésia para ajudar a resolver seus conflitos internos - inner conflicts -, recalca para as profundas do inconsciente as lembranças que se tornaram incômodas, as recordações de experiências intelectuais, políticas e existenciais que lhe modelaram a "personalidade básica" - Kardiner - que entrou em conflito com a formação mais nova, mais recente, de seu ser atual e moderno. Personalidade sem memória, ou pior, portadora de uma memória que se tornou amarga, pesada, acusatória, o nosso Presidente precisa recomeçar a viagem, reiniciar a entificação de seu ser dividido, despedaçado.

Sua confusão se expressa de forma emblemática quando, esquecido de que, durante a campanha pela Prefeitura de São Paulo, afirmou ser ateu, atribui propósitos malignos, desestabilizadores a todos quantos ousam repetir o que considera que deveria ser esquecido. Ajoelhado em Roma, afirma que seus inimigos lhe atribuem o agnosticismo como forma de prejudicá-lo! Para livrar-se dos maus que se lembram dos fatos que deveriam ser esquecidos, Sua Majestade deveria distribuir uma cartilha, uma espécie de neo-versão das Dez Tábuas da Lei, de um neo-Código de Hamurabi ou de uma nova lei romana das Doze Tábuas a fim de esclarecer ao seu povo confuso quais as verdades em que poderia continuar crendo e pregando e quais deveria evitar, pois essas verdades se transformaram em pecado de lesa-majestade. Melhor, talvez, fosse mesmo que "esquecessem tudo", todo o velho testamento, louvando o neo-testamento com as novas e úteis verdades.

Os "países civilizados" são as pias abluentes que têm os dons de lavar as culpas e de devolver ao ser cindido sua perdida integridade. Cada cerimônia em que colhe novos títulos de doutor honoris causa realimenta seu insaciável narcisismo e la volonté de puissance, que, unidos, justificam e explicam tudo, da extorsão da reeleição sem se desincompatibilizar até a promessa já esquecida do referendo popular que lhe permitiria ouvir "a voz rouca das ruas". Ou se deve esquecer, também, do entusiasmo do Presidente pelo plebiscito ou pelo referendo que ele demonstrou quando esperava perder na Câmara sua ambiciosa proposta de reeleição?

Na atual peregrinação atrás de novos louros que ataviem seu infindável currículo, Sua Excelência chegou a sentir-se seguro a ponto de confessar que errou, ou antes, quase errou. Os deuses também erram e, ao assumirem alguns pecadilhos, exageros veniais, mais inflam sua divindade. Ao se dizerem modestos, acrescentam a virtude da modéstia às demais qualidades exemplares que os levitou até o Olimpo...

Antes de chegar ao Vaticano, ainda na anglicana terra, o ex-ateu confessa que errou, que escancarou exageradamente o Brasil, abrindo os flancos para a invasão das mercadorias estrangeiras. Ele, que há 25 anos já escrevera sobre os efeitos deletérios do imperialismo e que, recentemente, em prefácio a um livro sobre a Guerra das Patentes, afirmou que "guerra é guerra!, ou seja, que mercadoria e tecnologia são armas no campo de combate dos interesses nacionais contra os da globalização. Mas seu ataque de modéstia dura pouco. Presidente Fernando Henrique Cardoso divide sua culpa com o outro Fernando, de quem só não foi Ministro das Relações Exteriores por obra e graça do Governador Covas. Afirma, socializando a culpa, dividindo o pão amargo do desastrado déficit comercial com seu ex-amigo Fernando Collor de quem agora afirma que herdou a "precipitação". Mas, sem o déficit da balança comercial produzido pela avalanche de mercadorias estrangeiras, cujos preços foram reduzidos pela taxa de câmbio sobrevalorizada, como manter o elevado volume de oferta de mercadorias que achata o nível dos preços internos, reduz a taxa de inflação? A taxa de câmbio sobrevalorizadora do real e que precipitou a abertura globalizante e destruidora, que seu gênio neoliberal Gustavo Franco queria que fosse na relação de R$0,50 por US$1,00. Se a taxa de câmbio do gênio do Bacen tivesse prevalecido, não deixaria pedra sobre pedra, e a maxidesvalorização atual deveria ser de 160%! Então, foi a precipitação de Fernando I que salvou o plano de Fernando II, escancarando as importações, produzindo o déficit comercial sem o qual os preços internos não teriam sido comprimidos pela oferta de mercadorias aumentada pelas importações que são indispensáveis a este tipo de "combate à inflação". Resta saber se o paciente Brasil, que precisa ser amordaçado e amarrado pelo autoritarismo político para receber as doses de remédios dolorosos e amargos que o neoliberalismo lhe aplica, resistirá a um Fernando III, ou seja, a um Fernando II "reeleito". Isso é que é inconfessável, até no Vaticano ... Sua confissão não trará de volta as dezenas de milhares de empresas falidas nos setores têxteis, de sapatos, de tecidos, de confecções, de porcelanas, de máquinas-ferramenta, da vitinicultura, de autopeças, de implementos agrícolas etc., etc., todas arrasados pelas importações modernosas feitas em nome da concorrência covarde que arrasou a produção.

"Houve precipitação no processo de abertura", confessa tranqüilo o impenitente FHC, que agora pede desculpas, como que mandando flores às viúvas, aos filhos, aos pais que sobreviveram à "precipitação", suave e indulgente palavra que o Presidente usa para qualificar o hediondo economicídio.

Com a comenda, FHC recebe a reprimenda dos bolonheses que sabem o que se passa no Brasil real, sem maquiagens, sem matemágicas. Sabem que, após mais de dois anos de Governo social democrata, 500.000 crianças prostitutas entre 10 e 15 anos continuam aumentando o PIB brasileiro com a prestação direta de "serviços", remuneradas diretamente pelo mercado e indiretamente ao incentivarem o turismo sexual; sabem que mais de 30 milhões de brasileiros se encontram sem terra e sem teto; sabem que o Brasil continua detendo a copa mundial da desigual distribuição da renda nacional; que o Brasil é o campeão mundial de concentração fundiária; que o Ministério da anti-reforma agrária só gastou 11% dos recursos do Orçamento de 1996, emperrando a reforma; que os direitos humanos continuam inexistentes onde três milhões de crianças são exploradas no trabalho no campo; que os recursos do CPMF não chegaram e não chegarão até os leitos dos hospitais, até os corredores da morte; que as penitenciárias continuam matando e contaminando os presos que não têm, muitos deles, sequer um metro quadrado onde dormir; sabem que os aposentados continuam no mesmo barco dos horrores em que se encontram os funcionários públicos, cujos vencimentos, direitos e garantias são vilipendiados; que as chuvas continuam afogando populações ribeirinhas; que os banqueiros ganharam R$14 bilhões para manter sua midásica impunidade; que os direitos humanos não chegaram à vida real, não saíram da mídia e do "nhem, nhem, nhem"; que a democracia é de papel e fica nele, não se encarnou na vida, na democracia alimentar, na democracia da cultura, na democracia da terra, na democrática distribuição de renda, do lazer, do poder, da saúde, dos transportes, do acesso ao trabalho, que a Constituição assegura, enquanto o Governo desemprega, demite, enxuga, moderniza; que os sindicatos dos trabalhadores das indústrias e dos serviços são vistos pelo Governo como perigosos inimigos e que o movimento dos trabalhadores sem-terra, que Noam Chomsky considerou o mais importante fato do Brasil moderno, é visto como o movimento de um bando de delinqüentes, que, de acordo com os Ministros da Justiça e o da Reforma Agrária, pretendem desestabilizar o governo despótico, autocrático.

Suspeitamos todos que a atitude reacionária contra os trabalhadores sem-terra coloca na boca dos Ministros da Justiça e da Reforma Agrária, em orquestrado uníssono, as mesmas palavras que as classes reacionárias usam, há décadas, a fim de apresentarem a reforma fundiária como coisa de comunistas e de delinqüentes. As palavras e os gestos reacionários, a impunidade dos assassinos de trabalhadores sem-terra, se inspiraram, desta vez, no acordo de más intenções entre Governo, sequioso de aprovação da emenda da reeleição, e a Bancada ruralista, agraciada com a promessa de contenção da reforma, isto é, de uma ação oficial contrária à reforma (Folha de S. Paulo, 17/02/97). Sabem também que o Poder Legislativo se transformou em mero palco em que a vontade despótica do Presidente, que coincide sempre com a do FMI e a do Banco Mundial, recebe a máscara democrática, o acordo do Congresso, poder esvaziado, eunuco, órgão meramente ritual e carimbatório.

Assim, as universidades homenageiam e as ruas reprovam as láureas acadêmicas viabilizadas pela ação externa do poder político instaurado "para durar vinte anos".

Se a ação continuísta interna que foi anestesiando a consciência coletiva, tornando normal e necessário o desrespeito à Constituição, até chegar ao que interessa realmente ao Governo - a reforma constitucional que instaura a reeleição pela primeira vez no Brasil -, a ação externa visa a coroar e laurear o César caboclo, fazendo crer que o autoritarismo continuísta é normal e necessário.

Liqüidando o poder das oposições, desmoralizando os partidos políticos e o Poder Legislativo, arrasando a ação sindical, do Movimento dos Sem-Terra e da sociedade civil organizada, o neoduce entra em comunicação direta com o povo, assume o comando do povo, isto é, instaura o corporativismo fascista, percorrendo o mesmo caminho de Mussolini. O ex-socialista italiano destruiu o movimento sindical, mas aproveitou a estrutura dos sindicatos para nelas fincar o sistema autoritário alicerçado nas idéias de Mihail Manoilesco, de Spirito, de outros teóricos do corporativismo italiano.

Até mesmo a telenovela O Rei do Gado mudou seu roteiro inicial para, no gran finalle, acusar o MST, após o massacre do líder Rainha, o Regino da ficção televisiva, praticado sem a conivência da UDR, de estar contaminado por ideologia política, obviamente petista.

A despolitização dos movimentos sindicais, dos sem-terra e da ação da Igreja e dos conselhos de base, populares, faz parte da esterilização política usada por todos governos autoritários, do fascismo ao getulismo, do golpe "anticomunista" de 64 à desmoralização dos políticos, dos partidos políticos da ação política.

Do arraso, do rolo compressor, os neo neo esperam que se salve apenas a figura totalizante de seu grande chefe, o promotor da crise de legitimidade, da falta de líderes alternativos, da ausência de opções, processo que garantirá ao PRI social-democrata a permanência por vinte anos no governo autoritário.

Jamais duvidamos de que o neoliberalismo político, instaurado no Brasil a partir da presença dos neoliberais Roberto Campos, Bulhões, Delfim Netto e Simonsen, exige a ditadura como sua contraface política. Assim foi na Argentina, desde o retorno de Perón; no Chile, onde o papa dos neoliberais, professor Friedman assessorou Pinochet; no Peru, onde o ditador Fujimori aplica a economia de mercado; na Coréia do Sul, onde o povo se rebelou contra a ditadura do mercado livre; no Equador, onde Bucaran, El Loco, teria pago US$500 mil pelo aluguel do Caballo, economista argentino, impune neoliberal; e no Brasil, onde o neoliberalismo exige as reformas desconstitucionalizantes, a venda do patrimônio público (doação das estatais), a derrogação dos direitos de greve, das garantias de emprego, da estabilidade, da aposentadoria plena, das indenizações dos trabalhadores despedidos, do FGTS e do FAT desviados para empréstimos aos capitalistas inadimplentes com os impostos, a perseguição contra os sem-terra. A resposta a esse economicídio neoliberal está sendo dada mundo afora pela sociedade rebelada, que tenta sobreviver. Para anestesiar a coletividade, injetar nela os remédios perversos, a medicina amarga, tanática, só mesmo com a presença de uma força concentrada e concentradora de todos os instrumentos de deformação e de engodo da opinião pública. O Filósofo Arthur Gianotti, atual Diretor do Cebrap, fundado por FHC, e amigo leal do Presidente há 45 anos, já manifesta seus receios de que o País poderá estar trilhando o caminho do cesarismo político ou do "despotismo esclarecido" (Jornal do Brasil, Caderno Político, pág. 3, 17/02/97). O nome não interessa, o que importa é o conteúdo, a identidade das relações despóticas, o autoritarismo desrespeitador dos direitos humanos, a erosão da democracia que são comuns a todos os matizes de governos da direita neoliberal.

Ao retornar de sua viagem, Sua Excelência já estará preparando a bagagem para uma nova expedição. Suas andanças serão inúteis, frustrados serão os seus propósitos, se espera encontrar o velocino de ouro de sua perdida integridade.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/02/1997 - Página 4204