Discurso no Senado Federal

RESTRIÇÃO CRESCENTE A LIBERDADE DO SER HUMANO. TRAGEDIA OCORRIDA COM O JOVEM MARCELO CAVALCANTE MENDONÇA AO TENTAR ENTRAR NOS ESTADOS UNIDOS.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • RESTRIÇÃO CRESCENTE A LIBERDADE DO SER HUMANO. TRAGEDIA OCORRIDA COM O JOVEM MARCELO CAVALCANTE MENDONÇA AO TENTAR ENTRAR NOS ESTADOS UNIDOS.
Aparteantes
Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 13/03/1997 - Página 5538
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, FAMILIA, MARCELO CAVALCANTE MENDONÇA, ESTUDANTE, MORTE, TENTATIVA, ENTRADA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • DEFESA, LIBERDADE, TRANSAÇÃO, COMERCIO, MUNDO, REDUÇÃO, LIMITAÇÃO, IMPOSIÇÃO, MIGRAÇÃO, POVO, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. EDUARDO SUPLICY (PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmº Sr. Presidente, Geraldo Melo, Srªs e Srs. Senadores, há um contraste de natureza profunda no comportamento dos países desenvolvidos que têm solicitado de países como o Brasil, países em desenvolvimento, países do Terceiro Mundo, que abram inteiramente suas fronteiras para a liberdade total do comércio de mercadorias, comércio de serviços, a liberdade para o capital poder se mover para onde consiga as mais altas taxas de rentabilidade e, por outro lado, a restrição crescente com respeito à liberdade do ser humano.

O Presidente da França, Jacques Chirac, está visitando o Brasil e fez, hoje, um pronunciamento perante o Congresso Nacional.

Foi justamente a França que, em 1886, deu um presente de grande valor simbólico aos Estados Unidos. Refiro-me à Estátua da Liberdade, oferecida pelo povo francês ao povo norte-americano, que foi construída em 1885, junto à entrada do Porto de Nova Iorque, e concluída em 1886.

A Estátua da Liberdade reforçou o símbolo da liberdade para todos, sobretudo para os imigrantes que de outras regiões do Planeta ingressaram nos Estados Unidos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, por que resolvi tratar deste tema? Se hoje se pede liberdade para o comércio, para a transação de bens e serviços e não há igual liberdade para o ser humano, é porque têm surgido situações inclusive de grande tristeza para aqueles que, seguindo os passos dos que imigraram dos países europeus para os Estados Unidos, para a América Latina ou ainda para o Brasil, hoje se vêem impedidos de buscar uma melhor situação.

Refiro-me à tragédia ocorrida com o jovem Marcelo Cavalcante Mendonça, de 26 anos.

Hoje, conversei com a sua avó, que me relatou a busca de Marcelo. Aos 4 anos, os seus pais se separaram e ele procurou lutar bastante. Estudou até os 15 ou 16 anos em São José dos Campos e, aí, precisou ajudar a sua mãe, indo trabalhar. Não pode completar nem mesmo o segundo ciclo.

Filho único, queria muito continuar a estudar e, desde cedo, passou a trabalhar. Seu último trabalho foi o de locutor da Rádio Nossa FM, em São José dos Campos.

Pediu ao seu pai alguma ajuda para estudar e, entretanto, este não a pode lhe dar, mas disse à sua mãe que queria muito vencer. O seu sonho era estudar e poder ajudar mais a sua mãe - queria comprar um apartamento - e pensou que, quem sabe, pudesse trabalhar nos Estados Unidos da América, porque tinha ouvido falar que lá havia mais oportunidades e, ao mesmo tempo, poderia conseguir estudar.

Foi ao Consulado dos Estados Unidos e pediu o visto, que lhe foi negado duas vezes. Soube, então, que em Campinas havia uma empresa recrutando pessoas para um trabalho de reflorestamento nos Estados Unidos. O salário era pouco - US$30,00 para cada mil mudas plantadas. Ele iria trabalhar duro para ganhar menos de US$400,00 por mês, mas era uma chance de conseguir o visto. Ele foi aprovado pela empresa e, quando da partida com o grupo, foi-lhe informado que o seu visto, como o de outros amigos, havia sido negado. Mas ele resolveu prosseguir no seu intento. E com dois amigos, cujos vistos haviam sido negados, decidiram ir assim mesmo para os Estados Unidos. Foram de ônibus, de carona e toda forma de condução. Inclusive, em um determinado trecho, pegaram carona em um avião da FAB. Pelo caminho, dizia que a sua mãe, quando conseguia comunicar-se com ela, estava em dificuldades. Houve dias que comeram até capim. Mas, finalmente, ele conseguiu chegar às margens do rio Grande. Tinha que nadar para a outra margem, algo como 60 metros. Era um excelente atleta e nadador, pois sabia nadar muito bem. Mas acontece que o rio possui uma fortíssima correnteza abaixo da superfície. E, segundo o relato de seu amigo Josias de Castro, de 24 anos, ele acabou sendo tragado pelas águas. Josias até mergulhou para alcançá-lo, mas não conseguiu. Com dificuldade, chegou à outra margem e pediu socorro. No ato, foi preso, como imigrante ilegal, e deportado.

Conforme registra a revista Veja, desta semana:

      A saga de Marcelo faz parte de um capítulo recente na história do povo brasileiro. O Brasil, que em cinco séculos recebeu imigrantes de todas as partes do mundo, recentemente passou à condição de exportador de gente. Espalhados pelo Planeta há 1,7 milhão de brasileiros expatriados - só nos Estados Unidos são 600 mil. "Os primeiros a sair queriam apenas ganhar dinheiro lá fora e depois voltar. Agora, eles emigram para começar vida nova, criar seus filhos em outro país", explica a socióloga Teresa Sales, da Unicamp.

E esse era o sonho de Marcelo.

O Sr. Ney Suassuna - Permite-me V. Exª um aparte, Senador Eduardo Suplicy?

O SR. EDUARDO SUPLICY - Com muita honra, Senador Ney Suassuna. Gostaria de, pelo menos, concluir este relato, expressando a minha solidariedade à família de Marcelo Cavalcante Mendonça, à sua mãe, Célia Regina Cavalcante, e à sua avó, Hilda Gonçalves Cavalcante, que me contou mais alguns detalhes de sua vida, dizendo que será até importante - e transmito isso às autoridades da Embaixada dos Estados Unidos, ao Consulado dos Estados Unidos, que é o desejo de sua mãe, Célia Regina Cavalcante, fazer o trajeto e o roteiro de seu filho, Marcelo Cavalcante Mendonça. Ela não tem muitos recursos, não vai poder demonstrar, como exige o Consulado norte-americano, que tem posse de bens. Ela vai, de alguma forma, levantar alguns recursos que lhe permitam fazer a viagem que seu filho gostaria de fazer. Assim, faço questão de transmitir às autoridades da Embaixada norte-americana que, pelo menos, a sua mãe possa entrar nos Estados Unidos.

Mas, Senador Ney Suassuna, a partir deste episódio devemos começar a pensar se não deveríamos estar mais atentos à questão da liberdade do ser humano neste Planeta.

Vejam que as autoridades norte-americanas e o Presidente Bill Clinton, têm insistido muito para que o Brasil dê os passos, os mais rápidos possíveis, para que seja criada a área de livre comércio das Américas. Com 34 países, já começa com uma discriminação porque não quer que Cuba entre. Temos que lutar para que Cuba também possa estar inserida em tudo aquilo que seja o conjunto dos entendimentos entre os países das três Américas.

Mas enquanto a preocupação do Presidente Bill Clinton é de que se forme a área de livre comércio das Américas, com a livre circulação de bens, com tarifa zero, a partir do ano 2005, com o livre comércio de serviços, que haja regras mutuamente acordadas para compras governamentais a fim de se evitar a discriminação contra empresas estrangeiras, ou de outros países; e que haja também regras, mutuamente acordadas, sobre propriedade intelectual para a defesa da concorrência. Em verdade, até agora, não se pensou na questão da liberdade dos seres humanos irem e virem. E esse tema é tão importante, porque - e lembrando aqui do Presidente Jacques Chirac -, na França, no mês passado, estava-se tentando votar uma lei segundo a qual até mesmo os franceses, caso soubessem ou hospedassem uma pessoa em sua residência, teriam que comunicar à prefeitura a sua partida. Isso resultou em mais de 100 mil manifestantes, inclusive com a participação de importantes artistas, intelectuais, estudantes, políticos e imigrantes, que foram às ruas e conseguiram com que a Assembléia Nacional Francesa derrubasse esse item.

Essa questão também começa a preocupar mais e mais a consciência dos povos e de países como a França, que lutaram para que houvesse liberdade, igualdade e fraternidade.

Concedo um aparte ao nobre Senador Ney Suassuna.

O Sr. Ney Suassuna - O discurso de V. Exª, nobre Senador Eduardo Suplicy, pautou-se em dois grandes pontos. Um é a liberdade de comércio. Realmente, todos querem que façamos essa abertura, mas nem todos querem abrir as suas portas. Temos tido restrições sérias nos Estados Unidos e em outros países, que, quando não têm razão, apelam para a qualidade de controle etc. Na verdade, com toda certeza, temos essas barreiras. O ponto que V. Exª coloca é muito sério: querer liberdade para o ser humano, razão de toda a civilização e de toda a construção e organização dos Estados. Queria informar a V. Exª que, a exemplo do que se tentou fazer na França, os Estados Unidos fizeram. Hoje, nos Estados Unidos, em alguns Estados, por exemplo a Califórnia, se alguém receber ou empregar um "ilegal", como eles chamam, se o empregador for estrangeiro sai junto; se for americano poderá ser multado em até US$20 mil. Então, é uma penalidade muito grande. É preciso, realmente, que os governos se entendam para que não aconteçam casos como esse do Marcelo, jovem que perdeu a vida, e que estava buscando o quê? Trabalho. Agora, Senador, a vergonha é nossa: um País com todo este potencial e não termos condição de dar a um jovem a esperança que ele queria: um trabalho, para comprar um apartamento para a mãe. Entendo e concordo com os dois pontos colocados no pronunciamento de V. Exª, mas é preciso que olhemos também internamente, é preciso que essa juventude tenha esperança e tenha emprego, para que não tenhamos outros Marcelos desejando, como esses hum milhão e setecentos mil brasileiros, sair do país, porque na sua terra, no lugar a que pertencem, não estão encontrando a oportunidade e a esperança que podiam encontrar em outro país. É triste ouvir-se uma história como essa. Solidarizo-me com V. Exª pelo seu discurso.

O SR. EDUARDO SUPLICY - Agradeço-lhe, Senador Ney Suassuna. V. Exª fala sobre um ponto extremamente pertinente: precisamos, ao lado de lutar pela liberdade do ser humano de ir e vir neste Planeta, ao lado de pensarmos em formas comumente acordadas a respeito do comércio internacional, do movimento de capitais, da propriedade intelectual, da forma de compra de bens e serviços pelo Estado, e assim por diante, precisamos estar pensando que, em cada país, sobretudo no Brasil, venhamos a garantir condições de educação, condições de trabalho, condições de sobrevivência digna para todas as pessoas.

Marcelo Cavalcante Mendonça, conforme o relato de sua avó, queria, sobretudo, ter tido a oportunidade de estudar melhor. Já teve enorme dificuldade, como acontece hoje com três milhões e meio de crianças, de sete a quatorze anos, que precocemente precisam trabalhar porque seus pais não têm o nível de renda suficiente. Ele começou a trabalhar com 14, 15 anos, já na adolescência, mas também cedo, porque sua mãe não podia ajudá-lo com os recursos suficientes, ou mesmo seu pai. Daí por que ele tentou a sorte indo para os Estados Unidos. Estava com muita determinação e energia a ponto de tentar cruzar, a nado, o Rio Grande. Sessenta metros de distância, para um excelente nadador, aos 26 anos, e entretanto acabou ali sendo tragado pelas águas com grande correnteza. Ainda que seu amigo tivesse conseguido cruzar, este acabou sendo ali detido.

O corpo de Marcelo está hoje sendo aguardado em São Paulo. Certamente devemos nos lembrar dele como uma pessoa que lutou pelo direito de ser, pelo direito à dignidade, pelo direito de ir e vir, pelo direito de os povos, em cada país, poderem viajar para outros lugares, poder melhorar a sua condição de vida. Precisamos lutar para que qualquer brasileiro tenha a possibilidade, se o desejar, de experimentar a vida no estrangeiro, mas, sobretudo, que essa liberdade se faça da forma mais plena, mediante condição de educação, de emprego, de remuneração digna assegurada no seu próprio país.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/03/1997 - Página 5538