Discurso no Senado Federal

INTERFERENCIA NO PROCESSO ETNOCULTURAL DOS DESCENDENTES DE AFRICANOS PELOS FORMULADORES DA IDEOLOGIA OFICIAL BRASILEIRA, VISANDO A MANUTENÇÃO DA HEGEMONIA BRANCA, QUER SEJA ATRAVES DA PROIBIÇÃO DE SUAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS OU NEUTRALIZANDO-AS PELA COOPTAÇÃO E ESVAZIANDO-LHES O CONTEUDO ETNICO. DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E INTOLERANCIA DE EXPRESSIVA MAIORIA DE NOSSA SOCIEDADE CONTRA OS AFRO-BRASILEIROS. OPINIÃO DE CERTO COLUNISTA, A RESPEITO DE SUA INTENÇÃO DE USAR ROUPAS AFRICANAS EM VEZ DE TRAJES EUROPEUS NAS DEPENDENCIAS DO SENADO, DIREITO ESTE RECONHECIDO PELO PRESIDENTE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • INTERFERENCIA NO PROCESSO ETNOCULTURAL DOS DESCENDENTES DE AFRICANOS PELOS FORMULADORES DA IDEOLOGIA OFICIAL BRASILEIRA, VISANDO A MANUTENÇÃO DA HEGEMONIA BRANCA, QUER SEJA ATRAVES DA PROIBIÇÃO DE SUAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS OU NEUTRALIZANDO-AS PELA COOPTAÇÃO E ESVAZIANDO-LHES O CONTEUDO ETNICO. DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E INTOLERANCIA DE EXPRESSIVA MAIORIA DE NOSSA SOCIEDADE CONTRA OS AFRO-BRASILEIROS. OPINIÃO DE CERTO COLUNISTA, A RESPEITO DE SUA INTENÇÃO DE USAR ROUPAS AFRICANAS EM VEZ DE TRAJES EUROPEUS NAS DEPENDENCIAS DO SENADO, DIREITO ESTE RECONHECIDO PELO PRESIDENTE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES.
Publicação
Publicação no DSF de 13/03/1997 - Página 5568
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • ANALISE, TENTATIVA, INTERFERENCIA, CULTURA, CONTINENTE, EUROPA, PROCESSO, ETNOLOGIA, NEGRO, BRASIL, RESULTADO, FORMA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PAIS.
  • PRETENSÃO, ORADOR, UTILIZAÇÃO, VESTUARIO, IDENTIFICAÇÃO, CONTINENTE, AFRICA, AREA, AMBITO, SENADO, OBJETO, APROVAÇÃO, ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, PRESIDENTE, CONGRESSO NACIONAL.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT/RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, começo esta minha fala.

Uma das características dos grupos humanos é o processo de construção de sua identidade a partir de necessidades específicas determinadas por motivos geográficos, climáticos e históricos, evoluindo para os valores culturais e éticos, para se chegar, a partir daí, por variados meios interativos, a um estágio em que esses elementos se incorporam ao senso comum.

A forma mais cruel de se eliminar um povo é privá-lo de sua identidade. Conscientes desse fato, os formuladores da ideologia oficial brasileira de há muito perceberam que, ante a impossibilidade de eliminar fisicamente os descendentes de africanos, a melhor maneira de manter a hegemonia branca era intervir no processo etnocultural desse grupo humano, seja proibindo claramente certas manifestações - como ocorreu por muito tempo com o candomblé e a capoeira -, seja neutralizando-as pela cooptação e esvaziando-lhes o conteúdo étnico, como no caso das escolas de samba.

Embora costume apresentar-se como país que se orgulha de ser plurirracial e multiétnico, o Brasil possui uma face intolerante que sempre vem à tona quando os segmentos sociais objetos do preconceito e da discriminação - dentre eles, em especial, os afro-brasileiros - ousam reivindicar o direito à diferença. Marcado essencialmente pelo assimilacionismo, o discurso racial brasileiro - mesmo quando se pretende anti-racista - vê o negro tão-somente como ingrediente numa mistura que, ao fim e ao cabo, deverá gerar uma "raça brasileira" - de pele morena, talvez, mas estética e culturalmente branca, filiada às vertentes da cultura ocidental e calcada em modelos europeus e norte-americanos.

Ao vislumbrar a solução da questão racial apenas num futuro em que todos seriam fisicamente semelhantes, a ideologia racial predominante em nosso País aceita - de fato, pressupõe - a total impossibilidade de respeitarmos quem não se pareça conosco. Por essa visão, só poderíamos conviver em pé de igualdade com quem fosse igual a nós - não apenas cultural, mas também fisicamente. Assim, no limite, só poderíamos aceitar como iguais os nossos próprios clones.

Não é de estranhar, portanto, que grande parte do esforço do Movimento Negro se tenha concentrado na denúncia dessa ideologia, tão mais perigosa quanto sedutora, pois que construída sobre fundamentos supostamente universalistas. O mito da democracia racial, baseado em meias verdades e falácias completas, e transformado em dogma de nosso pensamento oficial, tem como propósito lubrificar as relações raciais em nosso País, tornando confortável a posição do dominador e impedindo o dominado de perceber a origem da opressão de que é vítima.

E essa visão conservadora, racista e intolerante, embora travestida do seu exato oposto, desvela-se toda vez que os afro-brasileiros pretendem criar mecanismos específicos de enfrentamento do racismo e de suas conseqüências em nossa sociedade. Não faltam aqueles que, por exemplo, ao verem nas bancas uma revista dedicada ao público negro, acusam seus responsáveis de serem racistas, esquecidos de que a imensa maioria da mídia costuma veicular uma imagem do Brasil obtida, possivelmente, em algum ponto da Escandinávia, tal o número de pessoas de tipo nórdico que nela aparece. Só isso pode explicar certas reações de que foi objeto a solicitação que fiz ao Exmº Sr. Presidente do Senado Federal, de que desejava freqüentar esta Casa vestindo roupas africanas.

Para nós, africanos e descendentes, o modo de nos vestirmos representa muito mais que uma forma social de estar. Cada cor, cada detalhe do estilo de nossos trajes guarda uma relação direta com o nosso ontológico. Entenda-se: com a nossa identidade, com a nossa ancestralidade e, fundamentalmente, com a forma como lidamos com o mundo.

A fábula em que o rei é levado a caminhar nu pelo seu reino é um bom exemplo para se entender o significado da roupa nos tempos atuais. O Brasil ainda padece de uma subserviência aos modelos ocidentais que remonta aos tempos da Colônia e do Império, quando nobres e cortesãos ostentavam como todo garbo roupas feitas de tecidos grossos e pesados, obedecendo à moda européia da época, alheios ao fato de ser este um País tropical. Tal fato, ainda no século passado, inspirou talvez o melhor exemplo da nossa poesia satírica, "A Bodorrada", escrita pelo grande negro, ex-escravo e herói abolicionista Luiz Gama.

Ao mesmo tempo, os negros, prisioneiros e escravizados, em seu trabalho na lavoura, na mineração e nos serviços domésticos, eram obrigados a usar somente panos mínimos sobre a respectiva genitália, forma não apenas de identificar o escravo, mas sobretudo de lhe desnudar a alma. A essa perversidade se acrescentaria a proibição de os negros, mesmo livres, usarem sapatos, com o que se reforçava o estigma de um grupo étnico acostumado, em sua terra de origem, a fazer da roupa a expressão de um modo de estar no mundo marcado pelo espírito lúdico, refletido na exuberância das formas e das cores.

Creio ter sido essa visão etnocêntrica o que levou certo colunista de frivolidades a emitir sua opinião intolerante, disfarçada sob a capa do sarcasmo, a respeito de minha intenção de usar no Senado roupas africanas em vez de trajes europeus. Essa demonstração de insensibilidade e alienação decerto traduz muito bem a mentalidade das elites brasileiras, aparentemente vivendo o ilusório sonho de ainda sobreviverem agregadas a uma corte imperial...

Têm causado forte impacto, nesta Casa em particular e na sociedade em geral, as medidas que vêm sendo adotadas pelo ilustre Senador Antonio Carlos Magalhães no sentido de atualizar as normas de funcionamento do Senado, dentre elas a permissão - impensável há algum tempo - a nossas colegas Senadoras e funcionárias de usarem calça comprida. Isso revela, sem dúvida, uma mentalidade aberta à mudança e sintonizada com a dinâmica do mundo atual.

Tive, numa visita ao nosso Exmº Presidente Antonio Carlos Magalhães, a oportunidade de manifestar meu desconforto com o terno e gravata dos ocidentais. Evidentemente, não estava buscando paridade com minhas ilustres colegas, que receberam de S. Exª o passaporte para o uso da calça comprida. No entanto, compreendendo o meu desconforto, nosso Exmº Presidente mais uma vez estaria exercendo sua sensibilidade baiana, de há muito familiarizada com as exuberantes manifestantes culturais afro-brasileiras do Pelourinho.

Ao reconhecer meu direito legítimo de freqüentar esta Casa usando roupas identificadas com a estética e a história de nossos antepassados africanos, os verdadeiros construtores deste País, o Senador Antonio Carlos Magalhães estaria dando um exemplo de democracia e respeito à cidadania afro-brasileira, num momento em que a questão racial é finalmente celebrada na agenda das grandes questões nacionais. Inclusive, a Constituição de 1988, em seu art. 215, § 1º, reconhece e protege a existência e as manifestações de nossa cultura afro-brasileira, cultura esta que se projeta nas vestimentas tradicionais dos povos africanos e afro-brasileiro e, tenho certeza, imprimirá um toque de beleza e alegria ao decoro e dignidade que se espera e exige do vestuário das Srªs e Srs. Senadores desta Casa.

Axé, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/03/1997 - Página 5568