Pronunciamento de Abdias Nascimento em 12/03/1997
Discurso no Senado Federal
INTERFERENCIA NO PROCESSO ETNOCULTURAL DOS DESCENDENTES DE AFRICANOS PELOS FORMULADORES DA IDEOLOGIA OFICIAL BRASILEIRA, VISANDO A MANUTENÇÃO DA HEGEMONIA BRANCA, QUER SEJA ATRAVES DA PROIBIÇÃO DE SUAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS OU NEUTRALIZANDO-AS PELA COOPTAÇÃO E ESVAZIANDO-LHES O CONTEUDO ETNICO. DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E INTOLERANCIA DE EXPRESSIVA MAIORIA DE NOSSA SOCIEDADE CONTRA OS AFRO-BRASILEIROS. OPINIÃO DE CERTO COLUNISTA, A RESPEITO DE SUA INTENÇÃO DE USAR ROUPAS AFRICANAS EM VEZ DE TRAJES EUROPEUS NAS DEPENDENCIAS DO SENADO, DIREITO ESTE RECONHECIDO PELO PRESIDENTE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES.
- Autor
- Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
- Nome completo: Abdias do Nascimento
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
- INTERFERENCIA NO PROCESSO ETNOCULTURAL DOS DESCENDENTES DE AFRICANOS PELOS FORMULADORES DA IDEOLOGIA OFICIAL BRASILEIRA, VISANDO A MANUTENÇÃO DA HEGEMONIA BRANCA, QUER SEJA ATRAVES DA PROIBIÇÃO DE SUAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS OU NEUTRALIZANDO-AS PELA COOPTAÇÃO E ESVAZIANDO-LHES O CONTEUDO ETNICO. DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E INTOLERANCIA DE EXPRESSIVA MAIORIA DE NOSSA SOCIEDADE CONTRA OS AFRO-BRASILEIROS. OPINIÃO DE CERTO COLUNISTA, A RESPEITO DE SUA INTENÇÃO DE USAR ROUPAS AFRICANAS EM VEZ DE TRAJES EUROPEUS NAS DEPENDENCIAS DO SENADO, DIREITO ESTE RECONHECIDO PELO PRESIDENTE ANTONIO CARLOS MAGALHÃES.
- Publicação
- Publicação no DSF de 13/03/1997 - Página 5568
- Assunto
- Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
- Indexação
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- ANALISE, TENTATIVA, INTERFERENCIA, CULTURA, CONTINENTE, EUROPA, PROCESSO, ETNOLOGIA, NEGRO, BRASIL, RESULTADO, FORMA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PAIS.
- PRETENSÃO, ORADOR, UTILIZAÇÃO, VESTUARIO, IDENTIFICAÇÃO, CONTINENTE, AFRICA, AREA, AMBITO, SENADO, OBJETO, APROVAÇÃO, ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, PRESIDENTE, CONGRESSO NACIONAL.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT/RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, começo esta minha fala.
Uma das características dos grupos humanos é o processo de construção de sua identidade a partir de necessidades específicas determinadas por motivos geográficos, climáticos e históricos, evoluindo para os valores culturais e éticos, para se chegar, a partir daí, por variados meios interativos, a um estágio em que esses elementos se incorporam ao senso comum.
A forma mais cruel de se eliminar um povo é privá-lo de sua identidade. Conscientes desse fato, os formuladores da ideologia oficial brasileira de há muito perceberam que, ante a impossibilidade de eliminar fisicamente os descendentes de africanos, a melhor maneira de manter a hegemonia branca era intervir no processo etnocultural desse grupo humano, seja proibindo claramente certas manifestações - como ocorreu por muito tempo com o candomblé e a capoeira -, seja neutralizando-as pela cooptação e esvaziando-lhes o conteúdo étnico, como no caso das escolas de samba.
Embora costume apresentar-se como país que se orgulha de ser plurirracial e multiétnico, o Brasil possui uma face intolerante que sempre vem à tona quando os segmentos sociais objetos do preconceito e da discriminação - dentre eles, em especial, os afro-brasileiros - ousam reivindicar o direito à diferença. Marcado essencialmente pelo assimilacionismo, o discurso racial brasileiro - mesmo quando se pretende anti-racista - vê o negro tão-somente como ingrediente numa mistura que, ao fim e ao cabo, deverá gerar uma "raça brasileira" - de pele morena, talvez, mas estética e culturalmente branca, filiada às vertentes da cultura ocidental e calcada em modelos europeus e norte-americanos.
Ao vislumbrar a solução da questão racial apenas num futuro em que todos seriam fisicamente semelhantes, a ideologia racial predominante em nosso País aceita - de fato, pressupõe - a total impossibilidade de respeitarmos quem não se pareça conosco. Por essa visão, só poderíamos conviver em pé de igualdade com quem fosse igual a nós - não apenas cultural, mas também fisicamente. Assim, no limite, só poderíamos aceitar como iguais os nossos próprios clones.
Não é de estranhar, portanto, que grande parte do esforço do Movimento Negro se tenha concentrado na denúncia dessa ideologia, tão mais perigosa quanto sedutora, pois que construída sobre fundamentos supostamente universalistas. O mito da democracia racial, baseado em meias verdades e falácias completas, e transformado em dogma de nosso pensamento oficial, tem como propósito lubrificar as relações raciais em nosso País, tornando confortável a posição do dominador e impedindo o dominado de perceber a origem da opressão de que é vítima.
E essa visão conservadora, racista e intolerante, embora travestida do seu exato oposto, desvela-se toda vez que os afro-brasileiros pretendem criar mecanismos específicos de enfrentamento do racismo e de suas conseqüências em nossa sociedade. Não faltam aqueles que, por exemplo, ao verem nas bancas uma revista dedicada ao público negro, acusam seus responsáveis de serem racistas, esquecidos de que a imensa maioria da mídia costuma veicular uma imagem do Brasil obtida, possivelmente, em algum ponto da Escandinávia, tal o número de pessoas de tipo nórdico que nela aparece. Só isso pode explicar certas reações de que foi objeto a solicitação que fiz ao Exmº Sr. Presidente do Senado Federal, de que desejava freqüentar esta Casa vestindo roupas africanas.
Para nós, africanos e descendentes, o modo de nos vestirmos representa muito mais que uma forma social de estar. Cada cor, cada detalhe do estilo de nossos trajes guarda uma relação direta com o nosso ontológico. Entenda-se: com a nossa identidade, com a nossa ancestralidade e, fundamentalmente, com a forma como lidamos com o mundo.
A fábula em que o rei é levado a caminhar nu pelo seu reino é um bom exemplo para se entender o significado da roupa nos tempos atuais. O Brasil ainda padece de uma subserviência aos modelos ocidentais que remonta aos tempos da Colônia e do Império, quando nobres e cortesãos ostentavam como todo garbo roupas feitas de tecidos grossos e pesados, obedecendo à moda européia da época, alheios ao fato de ser este um País tropical. Tal fato, ainda no século passado, inspirou talvez o melhor exemplo da nossa poesia satírica, "A Bodorrada", escrita pelo grande negro, ex-escravo e herói abolicionista Luiz Gama.
Ao mesmo tempo, os negros, prisioneiros e escravizados, em seu trabalho na lavoura, na mineração e nos serviços domésticos, eram obrigados a usar somente panos mínimos sobre a respectiva genitália, forma não apenas de identificar o escravo, mas sobretudo de lhe desnudar a alma. A essa perversidade se acrescentaria a proibição de os negros, mesmo livres, usarem sapatos, com o que se reforçava o estigma de um grupo étnico acostumado, em sua terra de origem, a fazer da roupa a expressão de um modo de estar no mundo marcado pelo espírito lúdico, refletido na exuberância das formas e das cores.
Creio ter sido essa visão etnocêntrica o que levou certo colunista de frivolidades a emitir sua opinião intolerante, disfarçada sob a capa do sarcasmo, a respeito de minha intenção de usar no Senado roupas africanas em vez de trajes europeus. Essa demonstração de insensibilidade e alienação decerto traduz muito bem a mentalidade das elites brasileiras, aparentemente vivendo o ilusório sonho de ainda sobreviverem agregadas a uma corte imperial...
Têm causado forte impacto, nesta Casa em particular e na sociedade em geral, as medidas que vêm sendo adotadas pelo ilustre Senador Antonio Carlos Magalhães no sentido de atualizar as normas de funcionamento do Senado, dentre elas a permissão - impensável há algum tempo - a nossas colegas Senadoras e funcionárias de usarem calça comprida. Isso revela, sem dúvida, uma mentalidade aberta à mudança e sintonizada com a dinâmica do mundo atual.
Tive, numa visita ao nosso Exmº Presidente Antonio Carlos Magalhães, a oportunidade de manifestar meu desconforto com o terno e gravata dos ocidentais. Evidentemente, não estava buscando paridade com minhas ilustres colegas, que receberam de S. Exª o passaporte para o uso da calça comprida. No entanto, compreendendo o meu desconforto, nosso Exmº Presidente mais uma vez estaria exercendo sua sensibilidade baiana, de há muito familiarizada com as exuberantes manifestantes culturais afro-brasileiras do Pelourinho.
Ao reconhecer meu direito legítimo de freqüentar esta Casa usando roupas identificadas com a estética e a história de nossos antepassados africanos, os verdadeiros construtores deste País, o Senador Antonio Carlos Magalhães estaria dando um exemplo de democracia e respeito à cidadania afro-brasileira, num momento em que a questão racial é finalmente celebrada na agenda das grandes questões nacionais. Inclusive, a Constituição de 1988, em seu art. 215, § 1º, reconhece e protege a existência e as manifestações de nossa cultura afro-brasileira, cultura esta que se projeta nas vestimentas tradicionais dos povos africanos e afro-brasileiro e, tenho certeza, imprimirá um toque de beleza e alegria ao decoro e dignidade que se espera e exige do vestuário das Srªs e Srs. Senadores desta Casa.
Axé, Sr. Presidente.