Pronunciamento de Abdias Nascimento em 20/03/1997
Discurso no Senado Federal
COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
- Autor
- Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
- Nome completo: Abdias do Nascimento
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
- Publicação
- Publicação no DSF de 21/03/1997 - Página 6175
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, ELIMINAÇÃO, FORMA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, MUNDO.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Exmª Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio o meu pronunciamento.
Numa bela tarde de sol, ao pisar na praça onde meninas e meninos negros de Soweto haviam sido assassinados em 1976 por terem organizado pacificamente uma manifestação contra o sistema de ensino racista do apartheid, a emoção que me acometeu foi a mesma que sinto em cada dia 21 de março, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Acompanhado do ilustre jornalista e hoje Deputado Neiva Moreira, da jornalista Beatriz Bissio e da escritora Elisa Larkin Nascimento, visitamos, em 1994, o monumento erguido a essas vítimas, por ocasião da nossa estada em Johannesburg, representando nosso Partido, o PDT, na primeira reunião da Internacional Socialista em terras africanas. Pudemos testemunhar a mobilização febril e entusiasta de uma sociedade ao se livrar dos grilhões seculares do racismo e organizar-se para o exercício da democracia. Entretanto, para mim foi aquele o momento mais significante, pois a homenagem ao martírio daqueles meninos, no próprio instante da ascensão de Nelson Mandela ao Poder, simbolizou o protagonismo e a esperança dos negros, em todo o mundo, na sua justa resistência à opressão racista. Resistência a que, no Brasil e no exterior, dediquei a minha vida e as minhas energias.
Hoje, subo a esta tribuna para dar continuidade a esta luta em defesa dos direitos dos afro-brasileiros, vitimizados de forma cruel e inquestionável pelo racismo, fonte maior das desigualdades neste país. Solto esta minha voz rouca para manter vivo e em estado de alerta o espírito de justiça desta Casa diante de um dos problemas mais graves a ameaçar hoje a construção de uma verdadeira democracia em nosso País: a exclusão, no rol da cidadania, de uma maioria da nossa população.
O que nos traz aqui neste dia é o aniversário do massacre de Sharpeville, ocorrido há 27 anos na África do Sul: tragédia tão hedionda que se transformou em símbolo da luta contra a opressão racial. Naquele dia, foram mortas 69 pessoas e feridas centenas de outras que protestavam pacificamente contra a infame Lei do Passe, pela qual os africanos eram impedidos de circular livremente em sua própria terra.
Se hoje a África do Sul é um Estado democrático dirigido por um homem extraordinário, o grande Presidente Nelson Mandela, encarcerado durante 27 longos e angustiantes anos por se manter sempre fiel aos ideais de liberdade, justiça e igualdade, muito tempo ainda há de passar para que aquele país se recupere plenamente dos traumas causados por séculos de opressão racial e por décadas de apartheid. Esse foi o sistema de segregação racial mais hediondo de que se tem notícia, responsável pela produção de um Estado étnico comparável apenas à Alemanha hitlerista e definido pela ONU como crime contra a humanidade.
Entretanto, muito mais terrível que o holocausto do povo judeu, perpetrado pelos nazistas alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e de proporções muito maiores, foi aquele que os europeus protagonizaram, desde o século XVI, na África e nas Américas. Nesse episódio, aniquilaram povos inteiros e submeteram os remanescentes à condição de objetos ou mercadorias destituídos de sua condição humana. Estimativas falam em 200 milhões de homens, mulheres e crianças capturados e transformados em escravos. Sob grilhões, foram obrigados a atravessar o Atlântico, na maior migração forçada de que se tem notícia. Para cada dez africanos aprisionados, apenas um chegava ao porto de destino. Alguns morriam ainda nas longas caminhadas no território africano. Outros, nos postos de embarque. Um número considerável era atirado ao mar devido a enfermidades, mortos de sede. Por fim, nos mercados de escravos, já no Brasil, outros não resistiam aos sofrimentos da travessia atlântica e descansavam nos braços da morte. Somem-se a isso milhões de habitantes das Américas exterminados pelos conquistadores europeus, ibéricos sobretudo, configurando um quadro aterrador, freqüentemente mascarado sob o idílico título de colonização humanitária ou benevolente.
O racismo, Sr. Presidente e Srs. Senadores, não é um problema apenas de cor da pele. Sua natureza mais profunda reside na tentativa de desarticular um grupo humano pela negação de sua identidade coletiva. Assim, ao rotular de "negros", "kaffirs", "ladinos", "pretos" ou "crioulos" os africanos e seus descendentes, o dominador pretendia arrancar-lhes a referência básica à sua condição humana, simbolizada na referência à sua vida soberana na terra de origem; reduzir sua identidade à cor da pele, feita sinônimo de condenação à inferioridade e à condição de escravo.
Até hoje as comunidades de origem africana nas Américas sofrem a falta de uma referência histórica que lhes permita construir uma auto-imagem digna de respeito e auto-estima. A identidade "negra" fica confinada às surradas categorias do ritmo, do esporte, do vestuário e da culinária, e parece que a atividade intelectual, política, econômica, técnica e tecnológica não está a seu alcance. Assim, a criança de origem africana tende a não identificá-las como áreas de profissionalização ou de aspiração, reproduzindo ela própria a imagem excludente implícita na versão da história que lhe é passada.
A crônica da construção dessa imagem, às custas da falsificação da história africana, é a história do eurocentrismo, que conseguiu erguê-la à condição de verdade dita científica.
Tempos atrás, ninguém duvidava que os africanos construíram as bases da própria civilização ocidental. Heródoto, o Pai da História, descreveu os egípcios como "negros de cabelos lanudos". Eram eles os responsáveis por grande parte do legado creditado à cultura grega: das Artes e da Literatura à Filosofia, Medicina e Matemática, sem esquecer a invenção da escrita, por eles atribuída ao deus Toth. A influência egípcia é assinalada pelos próprios gregos, seja com seu reconhecimento explícito, seja pelo interesse que sempre manifestaram em atravessar o Mediterrâneo para estudar no Egito. Pitágoras e Euclides, por exemplo, passaram décadas aprendendo Matemática no Egito, enquanto a famosa República de Platão - que odiava a democracia ateniense - nada mais é que uma idealização da hierarquizada sociedade egípcia.
Como divorciar a identidade africana da tecnologia, se, há 4.600 anos, médicos egípcios faziam cirurgias para a remoção de cataratas oculares e a extração de tumores cerebrais? A se fazer justiça, aliás, o título de Pai da Medicina não deveria caber a Hipócrates, mas ao cientista e clínico egípcio Imhotep, que quase três mil anos antes de Cristo praticava virtualmente todas as técnicas básicas da Medicina, com profundo conhecimento de assepsia, anestesia, hemostasia e cauterização, além de vacinação e farmacologia. Junte-se o domínio egípcio da Arquitetura, da Metalurgia, da Astronomia, a engenhosidade dos sistemas de irrigação, e se terá a razão do interesse dos gregos por esse povo africano: aprender.
Os ideólogos arianistas do século passado foram obrigados a se lançar a uma árdua e infame tarefa "intelectual": reduzir a importância das matrizes egípcias na formação da cultura grega e descaracterizar a africanidade dos egípcios, valendo-se de interpretações que beiram o grotesco em seu afã de desmentir o óbvio. Criou-se, desse modo, a raça vermelho-amarronzada, ou marrom-avermelhada, como se construções terminológicas fossem capazes de mascarar para sempre a natureza das verdades históricas.
A civilização egípcia teve suas origens na África Central e estendeu sua influência aos quatro cantos do Continente. Todas as regiões da África foram bafejadas, em algum momento da sua história, pelos ventos autóctones da civilização, produzindo uma variedade imensa de culturas dotadas de variados graus de conhecimento e sofisticação tecnológica. Historiadores e antropólogos honestos foram obrigados a admitir o desenvolvimento intelectual dos africanos em diversas áreas.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, palco de uma movimentação constante em busca de novos espaços, de rotas comerciais, de intercâmbio e comunicação internacional, a África jamais se reduziu ao viveiro de povos isolados, perdidos na selva e ocupados somente com a caça e a pesca, retratado pelo eurocentrismo. No século XXII, por exemplo, Estados da África Oriental exportavam ouro e elefantes para a China, utilizando embarcações bem mais sofisticadas do que as caravelas que, mais tarde, transportariam os portugueses em suas jornadas de "descobrimento".
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quando as nossas escolas ensinam apenas que o negro veio da África como escravo, cometem e perpetuam o crime de roubar de nossas crianças a sua própria história, pois a história da África é o retrato do povo que durante quatro quintos de existência do Brasil constituiu mais de dois terços de sua população, e que ainda hoje compõe uma maioria minorizada.
Até hoje, nossos livros didáticos contam balelas como aquela de que o africano aceitava a condição escrava. Ora, a história da escravidão no Brasil é a crônica da constante e multifacetada resistência dos africanos. Individual ou coletiva, essa recusa incluía tudo, desde o suicídio até a luta organizada nos quilombos ou em insurreições como as Revoltas dos Malês.
O Aurélio nos dá quilombo como "valhacouto de negros fugidos". Mais que equívoco, é uma agressão à verdade, pois o quilombo foi uma singular experiência societária e humana, reconstruindo no Novo Mundo a vida soberana dos africanos em sua terra de origem. O maior quilombo do Brasil, a República de Palmares, foi o primeiro Estado livre nas Américas após a invasão colonial.
Início do verdadeiro movimento abolicionista neste país, Palmares durou mais de um século, resistindo à repressão das forças militares e praticando uma agricultura mais sofisticada que as fazendas da região, cujos proprietários desafiavam as leis da Colônia para trocar armas por seus produtos agrícolas.
Destruído em 1694 pelo maior exército reunido no Brasil antes da Independência, Palmares legou-nos aquele que não é apenas o maior herói negro, mas o maior herói brasileiro: Zumbi, o general e líder político que soube conduzir seu povo na mais bela e inspiradora jornada pela liberdade jamais empreendida neste País.
Tão inspirador foi o exemplo de Palmares que ele se espalhou por todos os cantos desta terra que um dia seria o Brasil. Quilombos surgiram em toda parte, assustando os escravocratas, alimentando o sonho libertário dos africanos escravizados e seus descendentes, e contribuindo de forma decisiva para a derrocada final da instituição escravista. A força da mulher negra sintetiza-se na figura de heroínas como Dandara ou Luísa Mahin, lideranças femininas que demonstram a determinação da mulher africana em sua luta pela liberdade.
Ainda hoje Palmares serve de paradigma aos afro-brasileiros identificados na luta contra a discriminação racial. Desde 1980, a Serra da Barriga, onde Palmares existiu, tem sido local de repetidas peregrinações, para render homenagens a Zumbi e a seus comandados. Graças ao esforço e à persistência dos irmãos e irmãs afro-brasileiros, Palmares começa a emergir como fonte inspiradora de todos os brasileiros envolvidos com a causa da justiça, da igualdade e da liberdade. Esperamos agora que o Estado brasileiro, representado pela Fundação Cultural Palmares, assuma sua devida responsabilidade no projeto de desapropriação e reflorestamento da Serra da Barriga, e na concretização do Pólo de Libertação e Monumento a Zumbi naquele local, projetado no convênio já firmado com o Memorial Zumbi.
Ao assinar, a 13 de maio de 1888, a chamada Lei Áurea, a Princesa Isabel cumpria um cronograma que visava colocar o Brasil em condições de participar do sistema econômico mundial transformado pela Revolução Industrial. O principal objetivo não foi absolutamente beneficiar os negros, o que explica ter sido rejeitado o projeto do eminente engenheiro negro André Rebouças, que previa realizar-se, junto com a Abolição, uma reforma agrária para garantir aos recém-libertos condições de sobrevivência. O espectro da cidadania afro-brasileira assustou tanto as elites, que essas aboliram também o voto do analfabeto, até então exercido por iletrados donos de posses coloniais.
Após a imensa ressaca do 14 de maio, os afro-brasileiros acordaram para uma realidade de discriminação, injustiça, humilhação e opressão que se tem mantido, sem muita alteração, nos quase 110 anos que nos separam da Abolição. Longe de encontrar uma sociedade receptiva à sua mão-de-obra, agora livre, os descendentes de africanos tiveram de enfrentar barreiras de toda ordem às suas perspectivas de uma vida digna no País de que foram seus antepassados os principais construtores.
O linchamento físico de que eram vítimas os afro-americanos no sul dos Estados Unidos foi substituído no Brasil por um linchamento cívico, muito mais sutil e eficaz como instrumento de dominação. Mas o espírito de resistência dos afro-brasileiros continuava vivo. Organizavam-se em torno das tradicionais irmandades religiosas e de associações e clubes voltados para a diversão e o lazer. Nasce, em 1915, a imprensa negra de São Paulo e, no início da década de 30, a Frente Negra Brasileira, organização em que praticamente iniciei minha militância. A Frente Negra transformou-se em partido político e foi extinta pelo golpe do Estado Novo, em 1937.
A Frente Negra não retornaria à cena política com a redemocratização de 1945, que propiciou a volta dos antigos partidos políticos, porque a década de 30 assistira à elaboração do mais sofisticado mecanismo de dominação racial que o mundo já conheceu, mais terrível que a segregação oficial do apartheid na África do Sul, ou do Jim Crow no sul dos Estados Unidos. Refiro-me ao mito da "democracia racial", segundo o qual as relações raciais no Brasil teriam uma dinâmica diferente daquela vigente em outros países. Aqui, negros e brancos conviveriam em quase total harmonia, havendo pouco espaço para o racismo e a discriminação, que, por sinal, desapareceriam de morte natural, com o tempo, em decorrência da miscigenação.
Essa teoria fazia parte de uma vertente ideológica que compreende José Vasconcellos e sua raza cósmica, no México, a teoria do café con leche, na Venezuela, e as idéias do herói cubano José Martí. Em todas elas, a ênfase está, declaradamente ou não, na assimilação dos negros e índios à cultura branca européia e no seu desaparecimento físico por meio da miscigenação, aqui encarada sob fortes tinturas eugênicas.
Finda a Segunda Guerra, em 1945, surgem com a abertura política no Brasil novas organizações e iniciativas com vistas a combater a discriminação racial. Em 1944, fundei, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro, cujo marco histórico foi o casamento da militância no campo artístico com o compromisso na luta política. Até aquele momento, as organizações negras propunham um combate à discriminação racial sem vinculá-lo ao resgate da identidade e dos valores culturais específicos dos afro-brasileiros. O TEN reuniu os dois elencos de objetivos, propondo, já em 1946, que a Assembléia Nacional Constituinte aprovasse um dispositivo constitucional definindo o racismo como crime de lesa-humanidade. Ao lado do protagonismo artístico teatral, a atuação do Teatro Experimental, nesse campo sociopolítico, continuou ao longo de toda a sua trajetória.
Os anos 50 e 60 foram sacudidos por lutas travadas na África, pela independência dos regimes coloniais, e, nos Estados Unidos, pela garantia dos direitos civis. Lutas sangrentas revelaram a face altiva de um povo que não aceita a condição de inferioridade.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, geradora de uma profusão de heróis militares e intelectuais engajados, e de gente que unia as duas qualidades, como Agostinho Neto, Samora Machel ou Amilcar Cabral, a luta de libertação africana revitalizava no Brasil as tradições de resistência que aqui se implantaram desde a chegada dos primeiros africanos escravizados. Assim, assistimos, no início dos anos 70, à reorganização dessa resistência, com o surgimento do Movimento Negro contemporâneo, que hoje se faz presente em todas as regiões e cidades importantes do País, constituindo-se numa verdadeira malha nacional de combate ao racismo e à discriminação racial.
Numa Nação que só agora começa a reconhecer a existência do racismo e da discriminação, o Movimento tem desempenhado um papel fundamental: pressionar o Estado e a sociedade civil a responderem ao clamor da população afro-brasileira. Ao mesmo tempo, discute e propõe medidas e políticas públicas para as relações raciais em plano nacional e internacional. Nesse último campo, propõe, cobra e monitora as ações do Governo brasileiro em suas relações com os países africanos, denunciando as tentativas de nossos colonialistas de segunda mão.
No mercado de trabalho nacional, a discriminação impera nos setores da produção e de serviços. Começa no processo de seleção, quando, nos anúncios de jornais e nas exigências de emprego, as empresas se ocultam na famigerada exigência da "boa aparência", senha ou código da política racista de rejeição. Quando um afro-brasileiro consegue furar muralha, entra em jogo outro processo discriminatório: desempenhando as mesmas funções que um trabalhador branco, receberá quase sempre remuneração bastante inferior. Se, ainda assim, esse negro permanecer no mercado de trabalho, terá de conviver com mecanismos de avaliação de desempenho e critérios de promoção utilizados freqüentemente para barrar-lhe a ascensão funcional e salarial. Após um século de vigência desse quadro no País da "democracia racial" com toda a sua legislação dita anti-racista, só agora nos surpreende a inédita decisão do Tribunal Superior do Trabalho, concedendo ganho de causa a um funcionário negro da Eletrosul que havia sido demitido por racismo.
Os homens brancos ganham o dobro da renda dos negros e quase quatro vezes o que ganha a mulher negra. Essa mesma mulher negra, que ocupa o último escalão da pirâmide social, é chefe de família em muito maior número, configurando um quadro de absoluta destituição.
Em todos os níveis do ensino, o acesso dos afro-brasileiros é muito inferior ao dos brancos. Da população brasileira, 18% são analfabetos, mas entre os afro-brasileiros essa porcentagem sobe a trinta. No outro extremo, 4,2% dos brancos alcançam o ensino superior, contra apenas 1,4% dos afro-brasileiros.
Nossa Constituição estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Para a comunidade afro-brasileira, sobretudo suas mulheres, essa é uma questão de vida ou morte. Sua expectativa de vida é inferior em 7,5 anos à do branco, e sua taxa de mortalidade infantil é de 105 em cada mil crianças nascidas, contra 77 em cada mil crianças brancas nascidas. Até o útero da mulher negra é considerado descartável: a elevada taxa de histerectomias e esterilizações entre elas retrata uma verdadeira mutilação em massa. A anemia falciforme, doença geneticamente específica à população de origem africana, clama por uma efetiva atenção das autoridades da saúde.
A violência, um dos grandes problemas do Brasil, incide em dobro sobre a população de origem africana. Nossos meninos e meninas de rua, covardemente assassinados, são na grande maioria negros. Ainda vale ao pé da letra o ditado: "Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão". Em 1988, quase 11% dos afro-brasileiros sofreram agressão policial, contra 3,9% da população branca. Nas prisões, o número de negros encarcerados é sempre maior que o dos brancos, não por praticarem crimes em maior proporção, mas por serem vitimados por uma justiça racista e pela falta de meios para uma defesa jurídica capaz de encurtar ou encerrar suas penas.
Há poucos anos, a mulata era o "melhor produto de exportação" brasileiro; hoje, as meninas afro-brasileiras estão sendo objeto de uma espécie de "marketing da cor" que as considera "meninas de sangue quente", preferidas pelo nefasto negócio da prostituição infantil e do turismo sexual.
Na Constituição de 1988, o art. 68 das Disposições Transitórias estabelece como dever do Estado a demarcação das terras remanescentes de quilombos. Em fase de implementação e enfrentando os obstáculos interpostos pelos inúmeros interesses em jogo, o art. 68 é objeto de especial atenção do Movimento Negro. Envolvidos nesse processo de demarcação se alinham o Ministério da Justiça, o Ministério da Reforma Agrária e, sobretudo, o Ministério da Cultura, por intermédio da Fundação Cultural Palmares. Tais ministérios têm a responsabilidade, por mandato constitucional, de implementar a demarcação dessas terras.
As comunidades remanescentes de quilombos estão organizadas e, no seu primeiro Encontro Nacional, realizado em Brasília, em 20 de novembro de 1995, dirigiram ao Presidente Fernando Henrique Cardoso uma carta com suas reivindicações, a qual solicito, Sr. Presidente, seja transcrita na íntegra como parte deste meu discurso. Nela, afirmam: "A terra que temos hoje foi conquistada por nossos antepassados com muito sacrifício e luta. E, passados 107 anos do fim oficial da escravidão, essas terras continuam sem o reconhecimento legal do Estado. Estamos, assim, expostos à sanha criminosa da grilagem dos brancos, que são, na atualidade, os novos senhores de tão triste memória. No papel somos cidadãos. De fato, a escravidão para nós não terminou. E nenhum governante da Colônia, do Império e da República reconheceu nossos direitos".
A organização desses autênticos quilombolas contemporâneos representa um fato histórico de grande significação, comparável ao Movimento dos Sem-Terra, porém destituído de semelhante repercussão nacional e internacional junto aos setores que defendem os direitos humanos. Por que esse silêncio? A situação dessas comunidades clama por uma atenção imediata, respaldada em dispositivo constitucional, mas cai nos ouvidos ensurdecidos de uma opinião pública insensível às demandas coletivas do povo afro-descendente.
A evasão escolar entre crianças negras, a agressão às religiões afro-brasileiras por grupos autodenominados cristãos, a criminalização da cor negra pela polícia e pelos tribunais, a perseguição social e policial à juventude negra em seus espaços de lazer, a constante depreciação pela mídia de nossa identidade, de nossas tradições e de nossa imagem, o veto tácito aos afro-brasileiros em certas posições de prestígio, poder e visibilidade: eis alguns dos problemas enfrentados cotidianamente pela população afro-brasileira e que compõem a extensa agenda de luta do Movimento Negro, cuja capacidade de mobilização foi testada e aprovada na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em Brasília, no dia 20 de novembro de 1995, com a participação de trinta mil militantes e simpatizantes.
Diversos são os indícios de mudança na sociedade brasileira, decorrentes da intervenção das centenas de organizações e personalidades que compõem a rede democrática nacional contra o racismo em nosso País. Relevante e exemplar nesse contexto é o inédito reconhecimento oficial do racismo por um Presidente da República, e a instalação de um Grupo de Trabalho Interministerial destinado a propor políticas públicas de combate ao racismo e de valorização da população afro-brasileira. A criação em 1988 da Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura, e a inscrição amanhã, no próprio dia 21 de março, de Zumbi dos Palmares no Panteão dos Heróis Nacionais são também frutos dessa mesma intervenção esclarecida. Esses três fatos somam-se ao processo cumulativo de conquista de órgãos específicos de gestão administrativa e de assessoria em diferentes contextos governamentais. Em nível estadual, destaca-se a iniciativa pioneira do então Governador Leonel Brizola, criando, em 1991, a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-brasileiras (Seafro), da qual tive a honra de ser titular.
Trata-se da única agência de primeiro escalão até hoje criada no Brasil, objetivando a formulação de políticas públicas capazes de atender às necessidades específicas dos descendentes de africanos neste País. Vêm surgindo também, em vários Estados e Municípios, assessorias e órgãos de caráter consultivo, a começar pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de São Paulo, criado em 1984 pelo então Governador Franco Montoro.
Srªs Senadoras e Srs. Senadores, vem ganhando força, nos últimos anos, a reivindicação de medidas destinadas a reduzir a enorme distância que separa negros e brancos nesta sociedade, matéria sobre a qual pretendo apresentar projeto específico. Tais medidas têm sido adotadas em países tão diversos como Índia, China, Canadá, Nigéria, Indonésia, Israel e as antigas Iugoslávia e União Soviética. No caso norte-americano, vêm sendo consideradas um dos fatores que mais contribuíram para a sensível melhoria das condições de vida da população afro-americana, observada nas três últimas décadas, sem falar nos benefícios proporcionados às mulheres de maneira geral. As medidas adotadas não se restringem a cotas, embora, em alguns casos, essas sejam necessárias. Abrangem desde ações legislativas em âmbito federal, estadual e municipal até a política de pessoal das empresas privadas, que as vêm adotando por terem descoberto que fazê-lo é lucrativo, pois aumenta a sua flexibilidade diante de um mercado globalizado.
No Brasil, algumas organizações do Movimento Negro já vêm implementando ações dessa natureza na área da educação, com a criação de cursos pré-vestibulares para alunos negros e carentes, como tem acontecido na Baixada Fluminense, em São Paulo e na Bahia. Ao mesmo tempo, alguns setores do aparelho de Estado e do mundo empresarial têm-se mostrado mais abertos a uma discussão séria a respeito desse tema, o que nos leva a crer que novos projetos a esse respeito venham a ter melhor destino do que aquele que apresentei à Câmara Federal em 1983, e que jamais chegou a ser apreciado pelo Plenário.
Em âmbito internacional, o Projeto Rota dos Escravos, da Unesco, promete constituir mais uma instância de afirmação da magnitude do crime perpetrado contra a África e seus filhos na forma do tráfico mercantil escravista, bem como da contribuição africana à civilização universal.
Todos esses fatos novos têm realimentado de esperança meu coração calejado pelos rigores de uma longa luta sem quartel. Conclamo todos os verdadeiros democratas a assumir, neste 21 de março, o desafio de fazer valer os princípios constitucionais de justiça e cidadania, indispensáveis para que o Brasil, maior país negro fora da África e maior beneficiário da riqueza humana da diáspora forçada do povo desse continente, rompa o Terceiro Milênio tendo ao menos encaminhado a solução de sua questão racial. A resolução dessa questão é o nó górdio a ser cortado, isto é, o fator indispensável para que este País venha a ocupar o lugar que de direito lhe cabe no concerto das nações civilizadas.
Sr. Presidente, ao terminar, quero agradecer a presença do representante da Embaixada de Angola, Conselheiro Quintino Faria; do representante da Fundação Cultural Palmares, Angela da Silva; do Professor Eduardo de Oliveira, Presidente do Congresso Nacional Afro-brasileiro; e da nossa querida amiga e dirigente do movimento do Rio Grande do Sul, Vera Triunfo, que sempre triunfa nas causas que esposa em favor dos negros no Rio Grande do Sul.
Muito obrigado, Sr. Presidente.